domingo, 27 de janeiro de 2008

Lula - por Fidel Castro Ruz

Lula decidiu visitar Cuba de forma espontânea pela segunda vez como presidente do Brasil, ainda que minha saúde não garantisse que pudéssemos nos encontrar.
Antes, como ele mesmo disse, costumava visitar a ilha quase todos os anos. Fomos apresentados por ocasião do primeiro aniversário da revolução sandinista, na casa de Sergio Ramírez, então vice-presidente da Nicarágua. Gostaria de acrescentar que Ramírez de certa forma me enganou. Quando li seu livro "Castigo Divino", uma excelente narrativa, cheguei a acreditar que se tratasse de um caso real acontecido na Nicarágua, com todas as complicações legais que são comuns nas antigas colônias espanholas; mas ele me contou certo dia que a história era pura ficção.
Também me encontrei lá com Frei Betto, hoje crítico mas não inimigo de Lula, e com o padre Ernesto Cardenal, militante sandinista de esquerda e atual adversário de Daniel (Ortega). Os dois escritores eram adeptos da Teologia da Libertação, uma corrente progressista na qual sempre vimos um grande passo para a união entre os revolucionários e os pobres, para além de suas filosofias e crenças, e ajustada às condições concretas de luta na América Latina e no Caribe.
Confesso, ainda assim, que via no padre Ernesto Cardenal, diferentemente de outros líderes da Nicarágua, uma estampa de sacrifício e privações semelhante à de um monge medieval. Ele era um verdadeiro protótipo de pureza. Deixo de lado outras pessoas menos conseqüentes que foram um dia revolucionários, até mesmo militantes de extrema esquerda na América Central e outras áreas, e depois se bandearam de armas e bagagem para as fileiras do império, à procura de bem-estar e dinheiro.
O que a história mencionada acima tem a ver com Lula? Muito. Ele nunca foi de extrema esquerda, e tampouco ascendeu à posição de revolucionário com base em posições filosóficas. Era um operário de origem humilde e fé cristã, que trabalhou com afinco na criação de mais-valia para os outros. Karl Marx via nos operários os coveiros do sistema capitalista: "Proletários do mundo, uni-vos", ele conclamava. Marx arrazoava e demonstrava a situação com lógica irrebatível; expunha com gosto e humor o cinismo das mentiras empregadas para acusar os comunistas. Se as idéias de Marx eram justas então, quando tudo parecia depender de da luta de classes e do desenvolvimento das forças produtivas, da ciência e da técnica, que daria sustentação à criação de bens indispensáveis à satisfação das necessidades humanas, hoje existem fatores absolutamente novos que confirmam que ele estava certo, e ao mesmo tempo se opõem aos seus nobres objetivos.
Surgiram novas necessidades que podem frustrar o objetivo de uma sociedade sem exploradores nem explorados. Entre essas novas necessidades está a sobrevivência humana. Ninguém sabia das alterações climáticas, na era de Marx. Engels e ele sabiam bem que um dia o sol se apagaria depois de consumir toda sua matéria. Poucos anos depois do Manifesto nasceram outros homens que se aprofundariam no campo da ciência e nos conhecimentos das leis químicas, físicas e biológicas que regem o universo, então desconhecidas. E em mãos de quem estariam esses conhecimentos? Ainda que eles continuem a ser desenvolvidos, e superem, e contradigam e neguem parcialmente as teorias vigentes, os novos conhecimentos não estão nas mãos dos povos pobres, que hoje respondem por três quartos da população mundial. Estão em mãos de um grupo privilegiado de potências capitalistas ricas e desenvolvidas, associadas ao mais poderoso império que já existiu, construído sobre a base de uma economia globalizada e regida pelas leis do capitalismo que Marx descreveu e analisou a fundo.
Hoje, porque a humanidade está sofrendo essas realidades em virtude da dialética dos acontecimentos, precisamos fazer frente a esses perigos.
Como se comportou o processo de revolução em Cuba? Nossa imprensa escreveu muito sobre diferentes episódios dessa etapa, nas últimas semanas. As datas históricas são celebradas a cada cinco ou 10 anos. Isso é justo, mas devemos evitar que, em meio à soma de tantos textos publicados por tantos veículos de acordo com seus critérios, se perca de vista o contexto do desenvolvimento histórico de nossa revolução, apesar dos magníficos esforços dos analistas de que dispomos.
Para mim, unidade significa compartilhar do combate, dos riscos, dos sacrifícios, objetivos idéias, conceitos e estratégias, aos quais chegamos por meio do debate e da análise. Unidade significa a luta comum contra os entreguistas, os vendedores da pátria, os corruptos, que nada têm a ver com um militante revolucionário. A essa unidade em torno da idéia de independência e de combate ao império que avança contra os povos da América é que sempre me referi. Alguns dias atrás voltei a ler a respeito quando o 'Granma' publicou, nas vésperas de nossas eleições, e o 'Juventud Rebelde' reproduziu em fac-símile, meu texto manuscrito sobre a idéia.
A velha idéia pré-revolucionária de unidade nada tem a ver com o conceito de que falo, pois em nosso país não existem hoje organizações políticas buscando o poder. Devemos evitar que, no enorme mar dos critérios táticos, as linhas estratégicas se diluam e imaginemos situações inexistentes.
Em um país sob intervenção dos Estados Unidos, em meio à sua luta pela independência como última colônia espanhola em companhia do irmão Porto Rico -'um pássaro de duas asas'-, os sentimentos nacionais eram muito profundos.
Os produtores reais de açúcar, que eram escravos recém-libertados e camponeses, muitos dos quais combatentes do exército de libertação convertidos em meeiros ou totalmente desprovidos de terras, se viam lançados ao corte da cana em grandes latifúndios criados por empresas norte-americanas ou proprietários rurais cubanos que herdavam, compravam ou roubavam terra. Esses trabalhadores eram matéria-prima propícia para as idéias revolucionárias.
Julio Antonio Mella, fundador do Partido Comunista em companhia de Balino -que conheceu José Martí e com ele criou o partido que conduziria à independência de Cuba- tomou a bandeira, somou a ela o entusiasmo que emergia da revolução soviética e deu por essa causa sua vida de jovem intelectual conquistado pelas idéias revolucionárias. O sangue comunista de Jesús Menéndez se somou ao de Mella, 18 anos mais tarde.
Nós, adolescentes e jovens alunos de colégios particulares, nunca ouvíramos falar de Mella. Nossa procedência de classe ou grupo social com maior renda que o restante da população nos condenava, como seres humanos, a sermos a parte egoísta e exploradora da sociedade.
Tive o privilégio de chegar à revolução pelas idéias, e de assim escapar ao tedioso destino ao qual a vida me estava conduzindo. Expliquei os motivos em outros momentos. Agora os recordo apenas no contexto daquilo que estou escrevendo.
O ódio a Batista por sua repressão e seus crimes era tão grande que ninguém reparou nas idéias que expressei em minha defesa diante do tribunal de Santiago de Cuba, entre as quais incluí um livro de Lênin impresso na União Soviética -proveniente dos créditos de que eu desfrutava na livraria do Partido Socialista Popular de Carlos III, em Havana. O livro foi encontrado entre os pertences confiscados aos combatentes. 'Quem não lê Lênin é ignorante', eu provoquei em meio ao interrogatório do julgamento, quando os promotores exibiram o livro como prova da acusação. Eu continuei sendo julgado em companhia dos demais prisioneiros sobreviventes.
Será difícil compreender o que afirmo sem levar em conta que, no momento que atacamos o quartel de Moncada, em 26 de julho de 1953, uma ação que surgiu depois de esforços de organização de mais de um ano para os quais contamos apenas com nossos recursos, prevalecia na União Soviética a política de Stálin, que havia morrido repentinamente alguns meses antes. Era um militante honesto e consagrado que mais tarde cometeu erros graves que o conduziram a posições sumamente conservadoras e cautelosas. Se uma revolução como a nossa tivesse obtido sucesso naquela era, a URSS não teria feito por Cuba o que viria a fazer uma direção soviética posterior, liberta dos métodos obscuros e tortuosos e entusiasmada com a revolução socialista que eclodiu em nosso país. Isso eu compreendi bem, apesar das críticas justas que fiz a Khruschev posteriormente, por motivos sobejamente conhecidos.
A URSS tinha o mais poderoso exército entre todos os combatentes na Segunda Guerra Mundial, mas sua liderança havia sido expurgada e as tropas estavam desmobilizadas. O líder do país subestimou as ameaças e as teorias belicosas de Hitler. Da capital japonesa, um importante e prestigioso agente soviético havia anunciado a iminência do ataque, em 22 de junho de 1941. Mas o país não estava em alerta de combate e foi apanhado de surpresa. Havia muitos oficiais de licença. Muitos dos líderes mais experientes haviam sido substituídos; se estivessem presentes, e alertas, os nazistas teriam confrontado forças poderosas desde o primeiro em instante e não teriam destruído em terra a maior parte da aviação de combate soviética. Mas pior que os expurgos foi a surpresa. Os soldados soviéticos não se rendiam quando informados de que havia tanques inimigos em sua retaguarda, como foi o caso com os exércitos da Europa capitalista. Nos momentos mais críticos, com temperaturas abaixo de zero, os patriotas siberianos faziam funcionar os tornos das fábricas de armas que o previdente Stálin havia transferido a regiões remotas do território soviético.
Segundo me contaram os dirigentes mesmos da URSS quando visitei aquele grande país em 1963, os combatentes revolucionários russos, experimentados em função da luta contra a intervenção estrangeira que enviou tropas ao país para combater a revolução bolchevique, deixando o país isolado e bloqueado posteriormente, haviam estabelecido relações e trocado experiências com oficiais alemães, de tradição militarista prussiana, humilhados pelo Tratado de Versalhes, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial.
Os serviços de inteligência da SS produziram intrigas contra muitos oficiais que, em sua imensa maioria, eram leais à revolução. Movido por uma desconfiança que se tornou patológica, Stálin expurgou três dos cinco marechais, 13 dos 15 comandantes de exército, oito dos nove almirantes, 50 dos 57 comandantes de corpos de exército, 154 dos 186 generais de divisão, 100% dos comissários de exército e 25 dos 28 comissários de corpo de exército da União Soviética, nos anos que antecederam a Grande Guerra Patriótica.
Esses graves erros custaram à URSS imensa destruição e mais de 20 milhões de vidas -27 milhões, segundo alguns.
Em 1943, a última ofensiva de primavera dos nazistas foi lançada, com atraso, contra o famoso e tentador saliente de Kursk. Os alemães tinham 900 mil soldados, 2,7 mil tanques e dois mil aviões. Os soviéticos, conhecedores da psicologia inimiga, montaram uma armadilha para aguardar o ataque, empregando 1,2 milhão de soldados, 3,3 mil tanques. 2,4 mil aviões e 20 mil peças de artilharia. Comandados por Zhukov e por Stálin mesmo, eles destroçaram a última ofensiva de Hitler.
Em 1945, os soldados soviéticos avançaram sem que nada os pudesse deter e chegaram ao topo da sede do governo alemão em Berlim, onde içaram a bandeira vermelha, tinta do sangue de tantos mortos.
Observo por um momento a gravata vermelha de Lula e perguntou se foi presente de Chávez. Ele sorri e responde que vai enviar algumas camisas ao colega, porque ele se queixa de que o colarinho das suas é duro demais. 'Vou comprar camisas de presente para ele na Bahia', diz Lula.
Ele me pediu algumas das fotos que tirei.
Quando comentou que estava muito impressionado com minha saúde, eu respondi que me dedicava a pensar e escrever. Nunca pensei tanto, em minha vida. Contei que, depois de encerrar minha visita a Córdoba, Argentina, onde participei de uma reunião com numerosos líderes, entre os quais ele, havia regressado e participado de dois atos pelo aniversário do 26 de julho. Contei que estava revisando o livro de Ramonet, e respondido todas as suas perguntas, mas sem muito entusiasmo. Acreditei que fosse algo de bem rápido, como as entrevistas com Frei Betto e Tomás Borge. Mas logo fiquei escravizado ao livro do escritor francês, que estava a ponto de ser publicado sem revisão minha e com parte das respostas tomadas de maneira improvisada. Naqueles dias, quase não dormi.
Quando adoeci gravemente, na noite de 26 e madrugada de 27 de julho, pensei que o fim havia chegado, e enquanto os médicos lutavam por minha vida o chefe de gabinete do Conselho de Estado lia o texto, por exigência minha, e ditava as devidas correções.

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