domingo, 16 de março de 2008

Deus, a bola e a mentira - por CartaCapital

Fé e futebol. Deus e a bola. Há quem aposte que, no país onde menos de 7% dos habitantes se declaram ateus e onde a peleja nos gramados é saudada como a “paixão nacional”, a união dessas duas crenças é suficiente para entorpecer todas as mentes. É esta, ao menos, a certeza dos fundadores da Igreja Renascer, Estevam e Sônia Hernandes.

Condenados pela Justiça dos Estados Unidos por uma falta para lá de terrena (ter tentado entrar no país com dólares não declarados) e alvos de processos no Brasil por “pecados” bem maiores, os pregadores valem-se da confiança dos fiéis e do apoio, por enquanto incondicional, do meia Kaká, titular do Milan e da seleção brasileira, para atacar quem se atreva a questionar os propósitos de seu ministério. Ou, simplesmente, como é o caso de CartaCapital, atenha-se a noticiar os percalços do pio casal. Apóstolo e bispa.

Na sexta-feira 7, advogados e assessores de imprensa da Renascer espalharam uma acusação grave contra a revista. Em nota distribuída à imprensa, a Brickmann & Associados Comunicação, com aval do escritório de Luiz Flávio Borges D’Urso, afirmou que a revista inventou uma reportagem e publicou documento falso. A nota é um espanto não só pela mentira em si, mas pelo tom agressivo e apelativo. Como é difícil defender os crimes dos fundadores da Renascer, a opção foi atacar CartaCapital e tentar angariar simpatia ao abusar da imagem do jogador. Ao título da nota, “Contra Kaká, a baixeza dos mentirosos”, seguiu-se um texto entre malandro e mal-intencionado. “CartaCapital tentou manchar a imagem de um ídolo de todos os brasileiros”, dizia um dos trechos.

Artimanha do capeta. Os serviçais da Renascer incorreram em mais uma mentira. Na edição 478, de 16 de janeiro de 2008, a revista publicou uma reportagem assinada pelo jornalista Paolo Manzo sob o título “Fé, família, dinheiro”. No texto, Manzo conta que o promotor Marcelo Mendroni, do Ministério Público de São Paulo, estava interessado em ouvir Kaká como testemunha nas ações movidas contra a igreja. Queria informações sobre as doações do atleta ao grupo religioso. Como o jogador vive em Milão, o MP preparou uma série de perguntas a ser enviada à Justiça italiana, para que Kaká fosse ouvido na cidade onde mora.

CartaCapital publicou o documento elaborado por Mendroni. Observação: o promotor não foi a fonte da reportagem. No mesmo texto, Manzo descreve também o difícil relacionamento do meia da seleção com a sogra, católica convicta.

O processo contra os fundadores da Renascer corre na primeira instância em São Paulo. Ao ver o documento de Mendroni publicado na revista, os advogados do apóstolo e da bispa quiseram saber do juiz se as perguntas do promotor haviam sido anexadas aos autos do processo.

O juiz respondeu a verdade: não havia nenhuma lista de perguntas endereçadas a Kaká nos autos. Logo, concluíram de má-fé os asseclas da igreja, CartaCapital havia publicado um documento falso. E desencadearam a infâmia.

Eis a malandragem. As perguntas ao jogador não constavam dos autos simplesmente porque Mendroni não as havia enviado ao juiz de primeira instância. Preferiu encaminhá-las, como a lei permite, diretamente ao Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), ligado ao Ministério da Justiça.

Pelos acordos internacionais, qualquer solicitação de informações ao exterior tem de obrigatoriamente passar pelo DRCI. O Ministério da Justiça não só confirmou a veracidade do documento publicado pela revista. Informou ainda que as questões já foram remetidas à Justiça italiana. Kaká terá de respondê-las, mais dia menos dia. Gostem ou não os representantes da igreja.

CartaCapital sabe que a ira dos serviçais da Renascer tem outro alvo, o promotor Mendroni, cujo exitoso trabalho vem permitindo ao MP decifrar o milagre da multiplicação das moedas da igreja. Pelos cálculos, passa de 100 milhões de reais o patrimônio amealhado por Estevam, Sônia e seu núcleo familiar. Tudo em nome da fé.

Sabemos também que havia outro motivo inconfesso. Quando solicitaram informações sobre a existência do documento publicado na revista, os advogados pediram também o relaxamento da prisão do casal expedida pela primeira instância. O pedido foi negado, de forma dura, pelo juiz. Dias depois, na terça 11, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, concedeu habeas corpus ao apóstolo e à bispa. Eles podem regressar ao Brasil assim que cumprirem a pena nos EUA. A farsa pretendia, portanto, encobrir um fato até então negativo para os investigados.

Para não restar dúvidas sobre a ação premeditada dos assessores da Renascer, reproduzimos um e-mail enviado ao jornalista Paolo Manzo por Marli Gonçalves, da Brickmann & Associados. A correspondência foi enviada poucas horas antes de a nota infame ter sido distribuída à imprensa. “Defesa é defesa”, conclui Marli, deixando claro que a assessoria agiu deliberadamente na divulgação de uma mentira.

Quem conhece Carlos Brickmann, dono da Brickmann & Associados, sabe do que ele é capaz. Basta constatar a presença significativa na sua carteira de clientes de notórios condenados pela Justiça, a começar pelos Hernandes. Certamente há quem busque seus préstimos pela disposição do assessor em praticar o jogo sujo, a aceitar tarefas que gente séria no mercado de assessoria de imprensa rejeitaria sem pestanejar. Entre outras, Carlinhos é afeito a denegrir concorrentes e adversários de seus clientes, inclusive por meio do baixo expediente de distribuição de dossiês e fofocas.

Se ele considera o dízimo que lhe é pago pela Renascer suficiente para se prestar a qualquer tipo de ignomínia, é uma opção de vida. Fique claro, porém, que CartaCapital tomará as medidas judiciais cabíveis.

Quanto ao advogado D’Urso, o que dizer? Presidente da OAB de São Paulo, causídico requisitado, D’Urso é mais um exemplo de indignação seletiva ambulante. Quando se trata de seus amigos, seus negócios e seus clientes, vale tudo. Aos inimigos, a lei. Provavelmente alguém dirá que estratégias desse tipo são comuns entre advogados. Mas, então, pergunta-se: diante de moral tão flexível, como D’Urso se arroga o papel de articulador de um movimento contra a degradação dos valores éticos da sociedade brasileira?

O que faz dele diferente daqueles contra os quais o movimento Cansei diz ter se insurgido?

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