terça-feira, 11 de março de 2008

Uma posição e um texto vergonhosos da Marinha do Brasil - por José Dirceu

Como resgate histórico, particularmente de um assunto tabu que praticamente nunca é tratado, constitui um feito extraordinário a reportagem do Marcelo Beraba, na Folha de S.Paulo, no fim de semana, sobre a "Revolta da Chibata" e seu herói, o marinheiro negro João Cândido, que a liderou em 1910. Lamentável, no entanto, sob todos os aspectos e pontos de vista, a nota emitida a respeito pela Marinha do Brasil.

Se a nota é lamentável a posição, tornada pública, é mais que isso - é condenável. Alguém seria capaz de imaginar que, em 2008, primeira década do terceiro milênio, uma instituição tivesse a coragem, como acaba de fazê-lo a Marinha, de considerar "ilegal, sem qualquer amparo moral ou legítimo", a revolta contra a aplicação de castigos com chibatadas ?

Espera aí, Marinha, isso é injustificável em qualquer época - na idade das trevas, da pedra, na idade média. A revolta liderada por João Cândido ocorreu porque ele descobriu que a Inglaterra, por exemplo, abolira os castigos físicos com a chibata 30 anos antes, em 1881. Aqui, em 1910, um marinheiro brasileiro era punido com 250 chibatadas. Estou falando de um tipo de castigo abolido há exatos 129 e que, pasmem, a nossa Marinha acaba de defender em nota oficial!.

Nem agora, nem nunca, se justifica condenar a revolta porque ela representou uma subversão da hierarquia, da lealdade que o subordinado militar deve ao seu superior. Hierarquia e lealdade não têm limites? Superior militar tem poder de agredir até fisicamente o subordinado? Já não é tempo de mudar, abrir a cabeça?

O episódio guarda semelhanças com outros da história do Brasil, de compromissos não honrados, documentos, fatos e até revoltas forjadas. A Revolta da Chibata acabou em poucos dias, com a aprovação pelo Congresso do fim dos castigos físicos e anistia para os revoltosos. Pouco depois nova rebelião, forjada para incriminá-los, levou João Cândido e mais 16 companheiros à prisão. Três dias depois, os outros 16 estavam mortos. João Cândido sobreviveu, mas foi expulso da Marinha e centenas de outros revoltosos foram enviados para trabalhos forçados na Amazônia, de onde poucos voltaram. Foram fuzilados.

O que a Marinha deve propor, imediatamente, é a anistia post mortem, a volta da anistia que lhes foi concedida, para João Cândido e companheiros. O que ela escreveu agora é uma vergonha sem precedentes. Com essa mentalidade podemos esperar qualquer coisa, qualquer mesmo. O que tem a dizer o presidente Lula? Se não der um basta, corrigir isso, daqui a 20 anos os mesmos militares que escrevem uma barbaridade dessas poderão escrever o mesmo sobre ele e as greves que liderou contra a ditadura.

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