quinta-feira, 10 de abril de 2008

O rabo preso - por Emir Sader

Houve um jornal que já se jactou de dizer que “só tinha o rabo preso com o leitor”. Era importante essa afirmação, para se livrar de um passado em que a empresa teve vínculos com a Operação Bandeirantes – conforme denuncias contidas no livro “Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988” (Editora Boitempo) -, além de ter participado ativamente no coro que pregou o golpe militar para interromper o processo democrático brasileiro e o mandato de um presidente que exercia legitimamente seu cargo, apoio que se estendeu – conforme os editoriais e a atitude tomada diante da repressão – à ditadura militar.

Durante a transição democrática, o jornal tentou se fazer passar como “representante da sociedade civil”, chegando a fotografar a supostos representantes dela em cima do prédio do jornal, querendo fazer passar a imagem de que até fisicamente o jornal era o suporte da oposição democrática à ditadura que ela tinha pregado –tudo isso sem fazer a mínima autocrítica de suas atitudes passadas.

Mais recentemente, o jornal apoiou abertamente o governo de FHC, estabelecendo estreitos vínculos com os tucanos, particularmente os de São Paulo, tendo reiteradamente ao atual governador não apenas como um colaborador usual do jornal, assim como alguém que tem laços estreitos com a direção do jornal, chegando – segundo declarações de uma fonte segura do próprio jornal – a indicar o editor político do jornal em Brasília, entre outras expressões desses laços.

O jornal é dirigido há décadas por membros de uma mesma família, em que o filho herda – como numa monarquia – a direção do pai, constituindo um Comitê Editorial que – ao que se saiba – não decide quem dirige o jornal ou então é composto por membros admiradores da perpetuação da mesma direção – problema que apontam em regimes com os quais o jornal não simpatiza, como os de Cuba e da Venezuela, entre outros. Trata-se portanto de uma dinastia familiar que, no entanto, se acha no direito de dizer e tentar influenciar a opinião pública sobre quem é democrático e quem não o é, em São Paulo, no Brasil e no mundo.

Colunistas, editorialistas, redatores pretendem ser impávidos defensores das liberdades – de mercado, dos indivíduos, das empresas, etc. No entanto, suas preferências seletivas ficam claras quando colocam as ênfases diárias, reiteradas, nos casos que afetam ao governo – do qual é feroz e obscurantista opositor -, omitindo os casos que afetam a oposição e o próprio jornal.

Dois casos recentes confirmam inquestionavelmente isso: quando Paulo Henrique Amorim foi mandado embora do IG, por um jornalista com evidentes preferências tucanas, o primeiro ombudsman desse jornal, com tentativa – frustrada pela ação da Justiça –de se apropriar de todo o material publicado por PHA quando trabalhava nesse portal. Nenhum colunista – esses impávidos defensores das suas liberdades, mas não das alheias – se pronunciou denunciando a arbitrariedade. O silêncio cúmplice soou ruidosamente.

Poucos dias depois, não foi renovado o mandato do melhor ombudsman que o jornal havia tido, Mario Magalhães, que sistematicamente denunciava a opção claramente tucana do jornal, privilegiando ao governador de São Paulo – candidato da preferência clara do jornal para tentar recuperar para os tucanos a presidência da República -, assim como o tratamento dado ao governo Lula em comparação com a complacência dada ao governo de FHC. Este, protagonista dos maiores escândalos da história brasileira, entre eles a privatização acelerada do patrimônio púbico através do processo de privatizações e a compra de votos para modificar a constituição e conseguir a reeleição durante o seu mandato (denunciando enfaticamente eventual possibilidade de Lula apelar para mecanismo similar como totalitário, inadmissível, etc., quando antes havia sido conivente com mecanismo similar de FHC).

O ombudsman não teve seu mandato renovado, porque o jornal queria retirar da internet as criticas diárias que ele fazia ao jornal, com o que ele não concordou. Claramente incomodada, a direção do jornal – que tem no filho do antigo proprietário sua autoridade máxima, portanto pode-se supor que seja ele o responsável pela decisão ou seria o Comitê Editorial, nenhum esclarecimento foi dado a respeito aos leitores, com os quais o jornal se orgulhava de ter o rabo preso) – optou por não renovar seu mandato, por ele não concordar com essa censura que queriam impor aos leitores do jornal. Estes – cada vez mais escassos, a metade do que foram há uma década, seguindo em acentuado declínio, rumo à intranscendência – protestaram com cartas, sem que nenhuma apoiasse a direção do jornal, mas em vão. O rabo está preso em outro lugar, não com os leitores.

Inútil olhar as colunas dos impávidos defensores das liberdades – supostamente colocadas em risco pelo governo Lula – para ver alguma linha de solidariedade com o colega, que teve sua excelente atuação como ombudsman cerceada pela direção do jornal. Nem é preciso mencionar nomes, todos caíram na vala comum da complacência com a repressão a Paulo Henrique Amorim e depois ao próprio colega da redação. Nem uma palavra, ainda que fosse para justificar sua posição, nada. Vários deles aparecem como membros do Comitê Editorial. Aprovaram a medida? Ou estas foram tomadas sem sequer consulta a eles? Em qualquer dos casos, saem eticamente manchados definitivamente na sua trajetória como jornalistas.

Covardia? Medo de perder o emprego? De cair em desgraça com o dono do jornal? Cada um julgue como queira. Mas é evidente que o jornal e seus colunistas, editores e redatores, confirmaram sua opção de rabo preso com os proprietários e, através destes, com os tucanos e com tudo o que eles representam – a mais rançosa direita brasileira, aquela que produziu o país mais desigual do mundo e que agora resiste ferozmente a um governo que, pela primeira vez – depois de tantos governos apoiados pelo jornal terem reproduzido essa situação – melhorar significativamente a situação do pobres, contra os interesses daqueles com quem o jornal tem seu rabo preso.

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