segunda-feira, 26 de maio de 2008

Flexibilização ou truque? - por Delfim Netto (Cartacapital)

O transporte de mercadorias em contêineres é recente no Brasil. O impulso transformador veio no início dos anos 80. Sempre fomos exportadores de produtos agrícolas (açúcar, café, cacau). Gradualmente, além de inserir bens de maior valor agregado na pauta de comércio internacional, o Brasil tornou-se líder mundial na produção eficiente de grãos e, mais recentemente, fonte alternativa para atenuar a potencial carência de alimentos no mundo.

Com período suficientemente longo de atuação no comércio de produtos básicos e de origem agrícola, seria de se esperar que cada porto brasileiro exibisse um ou mais terminais voltados para a exportação de granéis de terceiros, ou seja, de produtores individuais e independentes, mas eles não existem. Em cada porto, esses terminais movimentam preponderantemente granéis de seus proprietários e as cargas de terceiros são subsidiárias e bem menos relevantes. Por que não existem? Porque não há estímulo ao investimento privado em concessão pública que propicie retorno adequado ao capital empregado. Minérios e grãos (mais genericamente, granéis sólidos e líquidos) combinam volumes elevados com baixo valor agregado. Um terminal operando com carga de terceiros não permite ao empreendedor a cobrança de preços que remunerem o investimento. Conseqüentemente, os terminais de granéis são essencialmente “verticalizados”, voltados ao manuseio prioritário de carga pertencente ao proprietário. E é bom que seja assim, uma vez que os grandes produtores e exportadores de granéis operam os terminais de modo a assegurar a inserção competitiva de produtos de baixo valor agregado em mercados internacionais, crescentemente exigentes e globalizados.

Assim é com a Cargill, a ADM, a Bunge, a Cosan, a Vale, a Petrobras e tantas outras. E assim deve ser. Sem operar terminais públicos essencialmente voltados ao manuseio de carga própria, ou terminais privativos de uso exclusivo ou misto, elas e outras de mesmo tamanho ou natureza estariam alijadas do mercado internacional. O escopo de sua atuação inclui todo o ciclo logístico: da produção em grande escala ao transporte interno e ao escoamento pelos portos. É a elas que os produtores de menor porte vendem, no Brasil, ou a quem venderiam, no exterior, se aqui funcionasse um porto especializado em granéis de terceiros. Se a pressão inoportuna de certos interesses, escondidos sob a cuidadosa escolha semântica do charmoso nome de “flexibilização”, tiver sucesso e impuser ao governo uma mudança das regras atuais para a instalação de terminais de uso misto no Brasil, ou seja, se for permitido ao empresário que construa e opere terminais eminentemente privados, sem prevalência de carga própria que justifique o empreendimento, nenhum benefício decorrerá para a operação de granéis. Nem um só terminal voltado preponderantemente para granéis de terceiros será instalado. Mesmo porque nada existe que tenha impedido até agora sua presença nos portos. E, entretanto, eles não estão lá.

Na verdade, deve ser outro o objetivo escondido nessa estratégia. “Flexibilizada” a exigência de carga que autorize a instalação de um terminal de uso misto, a este ficaria assegurada a possibilidade de simular a operação de granéis em nível irrelevante. Com ela, ganhariam acesso ao manuseio de contêineres de terceiros, operação de natureza pública. Isso burlaria a legislação, inclusive a exigência de prévia concorrência pública entre diferentes interessados num arrendamento portuário. A conseqüência previsível dessa medida combina a suspensão de investimentos privados no porto público, sua desorganização e seu desaparelhamento.

Foi precisamente a confiança no marco regulatório – agora sob dúvida – que canalizou investimentos privados substanciais para terminais de uso público e de uso privativo. Como resultado, a produtividade nos portos brasileiros cresceu, os preços de movimentação declinaram e o formidável crescimento do comércio internacional do País pode fluir sem obstáculos intransponíveis. Em 2002, ano anterior ao início do primeiro mandato do presidente Lula, a soma de exportações e importações brasileiras registrou 107,7 bilhões de dólares. Em 2007, cinco anos depois, já alcançava 281,3 bilhões de dólares. O aumento da produtividade foi enorme.

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