segunda-feira, 19 de maio de 2008

Lula não é um pirata - por Gianni Carta (Cartacapital)

No seu livro Piratas do Caribe: Eixo da Esperança, com lançamento previsto para fim de junho pela Editora Record, o anglo-paquistanês Tariq Ali, editor da New Left Review, teoriza que da América do Sul está emergindo “ uma alternativa social-democrata ao capitalismo neoliberal”. Os chamados piratas do continente, influenciados por Fidel Castro (e agora Raúl), são Hugo Chávez e Evo Morales, em Pirates of the Caribbean: Axis of Hope (Londres, Nova York: Verso, 2006). Na versão brasileira, Ali acrescenta o presidente do Equador, Rafael Correa, eleito em novembro de 2006.

Quem encara estes líderes sul-americanos como piratas é Tio Sam, porque “desafiam as certezas da nova ordem e desconsideram os sinais proibidos por Washington”, escreve na edição inglesa, na qual se baseia este texto, Tariq Ali, historiador e prolífico novelista educado em Oxford. Pior: os piratas propõem uma social-democracia “capaz de servir às necessidades dos pobres”, ou seja, da vasta maioria de suas populações.

Em conversa com CartaCapital, Ali, de 64 anos, sublinha não constarem do “Eixo do Bem” (para revidar o “Eixo do Mal” de Bush) outros líderes da América do Sul, a começar pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Segundo Tariq Ali, Lula está longe de ser uma aresta para a chamada globalização. “Eu costumo chamar o Lula de Tony Blair tropical”, diz Ali, na sua casa ao norte de Londres. Vasta cabeleira branca, bigodões da mesma cor, olhos fixos no interlocutor, Ali espera uma reação – e a obtém: risos, aos quais presta contribuição fragorosa. E emenda: “O diário O Globo estampou numa manchete minha frase comparando Lula a Blair, e, ironicamente, alguns assessores do Lula se mostraram, acredite, muito felizes com a comparação”.

Repetindo uma frase de seu livro, Ali oferece o seguinte argumento: “Lula está para Fernando Henrique Cardoso assim como Tony Blair para Margaret Thatcher”. E parafraseando FHC: “O problema do Lula é se comportar como eu no quesito economia; ele deveria tentar ser ele mesmo”.

Em Pirates, Ali escreve: “O abandono do Partido dos Trabalhadores (PT) de seu programa tradicional a favor do capitalismo neoliberal foi uma questão de escolha. Como outros partidos social-democratas, a liderança do PT decidiu ser mais importante chegar ao poder do que a aderência a um programa. Toda a campanha do Lula mesclou um apelo direto aos pobres, incluindo constantes referências ao seu próprio passado social, e sua determinação para criar uma sociedade melhor com repetidas garantias para o FMI e para o Banco Mundial... se eleito, ele não alteraria o sistema implementado pelo seu predecessor”.

As flechadas de Ali não se direcionam somente a Lula, mas tem também como alvo outros colaboradores próximos do presidente, como o ex-ministro Antonio Palocci. Na conversa, Ali acrescenta um palavrão ao pronunciar-lhe o nome. Na breve biografia que tece de Palocci, mostra-o envolvido em esquemas de corrupção do PT na cidade de Ribeirão Preto, onde foi prefeito.

Ex-trotskista, Palocci, apreciado pelas instituições financeiras globais, deu uma guinada para a direita e passou a integrar a facção neoliberal do PT. Vale, porém, a seguinte pergunta: será que o senhor Palocci não foi sempre um neoliberal, ou melhor, aquele tipo de político que rema no sentido da corrente? Por vezes, a confiança de Tariq Ali em determinadas figuras reflete certa ingenuidade, surpreendente em um agitador político global, de mente crítica e pena solta.

Diga-se que seu senso de humor é apurado. Ali conta em Pirates a história do ex-ministro José Dirceu. Esquerdista radical, lutou contra a “brutal ditadura” nos anos 60, teve de se refugiar em Cuba, onde aprendeu táticas de guerrilha, fez cirurgia plástica para mudar suas feições e voltou para o Brasil ainda nos tempos do regime fardado. Observação final: “Os cubanos mudaram seu rosto, mas até mesmo com toda sua avançada tecnologia médica não puderam transplantar um cérebro”.

O editor da New Left Review também coloca pontos de interrogação sobre a morte do petista Celso Daniel, em 2002. Eleito para a prefeitura de Santo André três vezes, Daniel teria em mãos um relatório sobre a corrupção do PT em Santo André, escreve Ali. O irmão do prefeito assassinado João Francisco Daniel, atualmente residente em Paris, sustenta que Celso foi morto devido à sua oposição aos esquemas do PT. Tariq Ali cita João Francisco e lhe dá crédito.

Costumeiro viajante ao Brasil, onde a Record publicou vários dos seus livros, Ali também conta para CartaCapital histórias divertidas sobre suas experiências vividas na Terra Brasilis. Por exemplo. Quando do lançamento de um de seus livros na Festa Literária Internacional de Paraty, “houve um jantar organizado pela elite brasileira e a Record disse que eu estava convidado e precisava ir”. Foi. “E já à mesa, começaram a falar de Chávez.”

“Tema polêmico no Brasil”, interrompo. “Sim, mas polêmica faz parte, caso contrário não há debate”, rebate Ali. “Mas com as elites brasileiras fica difícil debater quando não estão de acordo”, continuo. “É um pouco verdade isso. Lembro-me de que eu apontei em Chávez o único líder latino-americano, ao lado de Morales, capaz de contar com seguidores em todo o mundo. Quando ele veio a Londres, foi como se Giuseppe Garibaldi tivesse lá desembarcado. Havia multidões em todos os lugares aos quais ele comparecia.”

Um sucesso?

“Sucesso total. Mas em Paraty tinham suas dúvidas. Uma senhora disse: ‘Ah, isso não me surpreende, em Londres há muitos cidadãos da Índia, do Paquistão e desses outros lugares’. Perguntei: A senhora está se referindo a gente como eu, de origem paquistanesa? Eu precisava ser explícito, e disse: O fato de crer que as únicas pessoas interessadas em Chávez são de pele escura demonstra como a senhora é doente”. E Ali prossegue, implacável. “E acrescentei: está errada sobre a etnia das pessoas que quiseram ouvir Chávez, em Londres. Várias delas tinham a pele alva, muito mais alva do que a sua. Gente de sangue puríssimo.” E explode a sonora gargalhada de Ali.

O Brasil é racista, mas ele crê que em certos países do continente o racismo é ainda maior. Ele diz “odiar” quando visita Chávez, na Venezuela, e escuta a elite de cor mais clara chamá-lo de macaco. “É deprimente”, constata Ali. Esteve em La Paz, em 1967, pela primeira vez, e observou lá o mesmo problema. Mas ele diz: “No meio dos escassos brancos, eu era outro índio”.

A vitória de Evo Morales em 2005 “marca uma nova fase na história turbulenta da Bolívia”, enfatiza Tariq Ali. “Antes de 2005 nenhum líder indígena chegou perto do poder, e esqueça a Presidência.” De fato, para Ali, a revolução de 1952, na Bolívia, faz parte de um “processo vital” que deu forma ao tablado político hoje encabeçado por um indígena, o presidente Evo Morales. Contudo, estranhamente, diz Tariq Ali, a revolução de 1952 não é relatada com a devida importância nos livros de história mundo afora.

Em Pirates fica claro que Tariq Ali conhece Chávez melhor que todos os outros atuais líderes da América do Sul. Justamente em Caracas, Ali esteve com Morales, em abril de 2003. Morales, “homem seguro se si”, relata Ali, “explicou calmamente que as condições na Bolívia eram inaceitáveis para a maioria dos cidadãos, e previu que algo tinha de ser mudado e seria... era a elite que seria forçada a realizar concessões maciças, ou ser removida por uma revolução popular”. Cerra os olhos ao recordar e diz que o otimismo de Morales era “contagiante”.

Dois anos após, vencidas as eleições, Morales foi a Cuba para falar com Castro. Na volta, parou em Caracas. “A partir de então, aqueles três governos estavam unidos e tinham como norte uma Federação Bolivariana.” Comenta Ali que para os americanos a decepção não poderia ser maior. E lembra: o Financial Times publicou a seguinte manchete: “Evo Morales se curva diante do chavismo”.

O “conformismo” que toma conta do mundo é incentivado pela mídia, “concentrada nas mãos de meia dúzia de empresários” (cita Rupert Murdoch e Silvio Berlusconi, e esquece os Marinho), eles preferem doutrinar as massas a favor da globalização a criar espírito crítico. Ali cita os casos do semanário Economist e do diário Financial Times, ambos metidos em campanhas para desestabilizar Chávez no golpe que o derrubou brevemente em 2002. Ali também não poupa críticas contra diários ditos liberais, como El País e Le Monde, e redes de tevê como a BBC (para não falar na CNN), que servem, segundo ele, à ordem mundial da globalização.

Já seu espírito crítico permite-lhe colher momentos infelizes de Chávez. Por exemplo, quando comparou Bush a Hitler. “Aquilo não foi necessário. Às vezes, o Chávez não pensa com cuidado antes de falar. Comparar o Bush com o Hitler é tolice, e é uma inverdade.”

No contexto atual da América Latina, argumenta Ali, “Morales faz parte do processo começado por Simón Bolívar no século XIX”. Ou seja, Morales, Chávez, Castro e Correa não são nacionalistas, conforme a onda que varreu o mundo há dois séculos, mas pensam “em termos de continente”. De Correa ele acentua a inteligência “e o refinado senso de humor”.

E Lula? Tariq Ali relata o que lhe contou tempos atrás uma fonte segura: “Chávez e Lula estavam conversando, após a tentativa de golpe para depor o venezuelano, em 2002. Com irônica bonomia, Chávez disse: Lula, sabe qual é seu problema? Os americanos nunca vão tentar te derrubar”.

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