domingo, 11 de maio de 2008

Nova velha república - por Antonio L. M. C. da Costa (Cartacapital)

Desde que a chegada de Evo Morales à Presidência mostrou que as elites tradicionais não conseguiriam manter a submissão das massas indígenas no conjunto do país, a chamada autonomia, na prática secessão, é a única bandeira explícita da “Nova República” reivindicada pela oposição. Trata-se, a rigor, de manter o antigo regime, ainda que apenas em uma parte do país.

O “estatuto autonômico” submetido a referendo transferiria 44 competências aos governos departamentais, incluindo a administração dos recursos naturais, o manejo dos impostos, a reforma agrária, o controle dos transportes rodoviários, ferroviários, fluviais e aéreos (incluindo a vigilância aérea por radares), o controle das telecomunicações e a salvaguarda da ordem pública.

O governo departamental teria competência exclusiva “para exercer o poder legislativo, o poder regulamentário e a função executiva”, sobre saúde e educação e o poder de criar novos impostos sem a mediação de uma lei do Congresso Nacional, o único órgão ao qual a Constituição dá poderes para inventar novos tributos. Santa Cruz também se arrogaria o poder de decidir se funcionam ou não as “fundações, associações, cooperativas e ONGs com atividades no Departamento”, atribuindo-se o poder de pôr fora da lei organizações indígenas e camponesas contrárias ao movimento crucenho, que contam em vários casos com apoio de instituições nacionais e internacionais.

Um artigo determina a criação do “Organismo de Segurança Departamental”, que tiraria as atribuições da Polícia Nacional. Outro regulamenta a propriedade da terra: “Os tamanhos, características e parâmetros de cumprimento da função social e econômico-social para cada forma de propriedade agrária serão estabelecidos por Lei Departamental”. Pelo artigo 20, o Departamento apropria-se até das relações exteriores, ao mencionar as atribuições da futura Assembléia Legislativa Departamental, inclusive “aprovar os acordos ou convênios nacionais e internacionais de interesse departamental”.

Trata-se de autonomia ainda mais ampla que a dos estados brasileiros na República Velha, com Tarija e Santa Cruz pretendendo os papéis de Minas Gerais e São Paulo e os banzeristas da ADN e os partidários de Sánchez de Lozada (MNR) querendo garantir o café-com-leite – ou soja-com-café. Quer-se reduzir a Bolívia a uma confederação de republiquetas quase independentes, internamente autoritárias e centralistas, mas frouxamente ligadas entre si.

Republiquetas, aliás, com instituições que simplesmente não existem. Nunca houve, e ainda não há, um corpo legislativo departamental. Em Santa Cruz, seu papel está sendo ocupado por um “Comitê Cívico” autonomeado, nada mais que um partido regionalista liderado por Branko Marinkovic, empresário milionário descendente de croatas refugiados na América do Sul depois da derrocada da ditadura fascista de Ante Pavelic na Segunda Guerra Mundial. Seu interesse pessoal é óbvio: segundo o Instituto Nacional de Reforma Agrária, o clã Marinkovic possui ilegalmente mais de 26 mil hectares, parte deles em disputa com a comunidade indígena dos guarayos.

A Reforma Agrária da revolução de 1952 deveria ter redistribuído as terras em todo o país. Na vida real, foi aplicada na região andina, mas em Santa Cruz e nos demais departamentos do Leste o poder dos latifundiários deixou suas terras intocadas na prática. Ainda hoje, os funcionários do Vice-Ministério de Terras não podem entrar nas fazendas para constatar a legalidade dos títulos de propriedade e avaliar se é cumprida a Função Econômico-Social (FES), que obriga todo proprietário a trabalhar certa porcentagem da sua terra.

Segundo proclama esperançosamente Marinkovic, “acabou-se a contagem de vacas. No tema terras, o importante não é quantos hectares tem o proprietário. O que importa é que a terra produza e se paguem impostos ao município. Hoje a arrecadação vai a La Paz e é redistribuída pelo governo central. Esse dinheiro tem de ir aos municípios crucenhos”.
O irônico é que, durante 180 anos de independência, as elites bolivianas nem sequer admitiram que os prefectos (governadores) dos departamentos, como o atual Rubén Costas, de Santa Cruz, fossem eleitos. A eleição só foi improvisada em 18 de dezembro de 2005, para diluir o significado da inevitável vitória de Evo.

Ao longo desses quase dois séculos, a autonomia local – em formas muito mais moderadas – foi reivindicação de movimentos populares e indigenistas, como na traída Revolução Liberal de 1899. Naquele tempo, como ao longo de quase todo o século XX, as jazidas de prata e estanho e o trabalho dos operários indígenas da região andina sustentavam o país e sua classe dominante, e na segunda metade do século XX, também subsidiaram a colonização e o crescimento dos demais departamentos hoje separatistas.

A partir do ditador crucenho Germán Busch (1937-39), o desenvolvimento da região foi prioridade nacional. Proporcionaram-se incentivos generosos aos produtores de arroz e açúcar e aos fazendeiros de gado de Beni. Os empréstimos agrícolas concentraram-se em Santa Cruz e seu entorno. La Paz construiu a estrada de Cochabamba a Santa Cruz e várias estradas vicinais ligando esta às pequenas cidades da planície. De 1971 a 1978, Hugo Banzer, outro ditador crucenho, privilegiou ainda mais a região, que só em meados dos anos 1990 passou a contribuir com mais do que recebia em recursos públicos.

Contra esse oportunismo conservador e racista que quer manter o velho centralismo autoritário com o artifício da fragmentação, uma autonomia propriamente dita, na forma moderada tradicionalmente defendida no país, está contemplada no projeto de Constituição redigido no ano passado.

Não a autonomia de senhores feudais em relação à nação e seu povo, mas autogoverno democrático de baixo para cima, incluindo autonomia das comunidades camponesas, municipal, regional (de regiões formadas por uma ou mais províncias, unidades intermediárias entre os municípios e os departamentos) e também dos departamentos, que terão um Conselho eleito democraticamente e dotado de poderes deliberativos, normativo-administrativos e fiscalizadores. Mas não poderes legislativos: só as comunidades indígenas poderiam criar instituições jurídicas locais próprias.

De início hostis ao referendo de Santa Cruz, as autoridades de La Paz depois recuaram e tentaram negociar com o governo local, sendo rechaçadas. Que não o tenham simplesmente proibido e impedido é sintoma de que a Bolívia ainda vive a dualidade de poder que se instalou desde a eleição de Gonzalo Sánchez de Lozada em 2002. Antes, a elite estava em La Paz e as lideranças indigenistas formavam o poder paralelo. Hoje, é o contrário.

O governo central não está, porém, inerme. Continua a tocar o processo que levará a seus próprios plebiscitos, um para aprovar a Constituição redigida no ano passado, outro para que o povo boliviano decida sobre o tamanho máximo das propriedades rurais – 5 mil ou 10 mil hectares.

No 1º de Maio, nacionalizou grande parte das telecomunicações (80% do mercado de longa distância e 70% da telefonia celular) ao recomprar à Telecom Italia (cuja filial brasileira é a TIM) o controle da Entel, que, privatizada em 1996, não vinha cumprindo com o plano de expansão da rede telefônica nem com suas obrigações fiscais.

Além disso, Evo Morales completou, como previsto, a nacionalização do setor petrolífero, readquirindo a maioria das ações das empresas Andina (filial boliviana da Repsol-YPF), Chaco (da estadunidense Pan American Energy e British Petroleum), Transredes (da britânica Ashmore) e Compañía Logística de Hidrocarburos Boliviana (de capitais peruanos e alemães), todas também privatizadas nos anos 90.

Além disso, apesar das comemorações dos “autonomistas”, o resultado do referendo de Santa Cruz em 4 de maio, no fim das contas, foi ambíguo. Dos 935 mil eleitores do departamento, 570 mil participaram. Se 85% votaram a favor da autonomia, a abstenção – equivalente, nesse clima de polarização, a boicote – foi de 39%, o que significa apoio de apenas 52% dos eleitores.

Isso apesar do engajamento dos meios de comunicação locais a favor da autonomia, comparável à da mídia venezuelana contra Hugo Chávez em 2002. Um telejornal falou do aumento do preço do pão – e a única explicação é a de uma senhora no mercado, esbravejando que para se ter pão é preciso mudar o governo, porque o governo é comunista – fim da edição e volta aos estúdios. No maior jornal de Santa Cruz, um colunista acusou a OEA, contrária ao referendo, de estar a serviço do populismo de ativistas financiados por Chávez. Outro garantiu que, com a autonomia, La Paz continuará a ser a capital do governo, mas “o centro das definições e decisões do rumo da economia nacional será, sem dúvida, Santa Cruz”.

Durante a realização do plebiscito, três pessoas tentaram denunciar uma fraude no hotel onde se instalara a imprensa internacional, mas assim que os organizadores perceberam que eram partidários de Evo, expulsaram-nos. Um homem branco lhes gritou: “Não deixamos vocês trabalharem, não os ensinamos a ler, não lhes demos de comer? Collas (índios) de m..., mal-agradecidos!” Na rua, separatistas mais exaltados tentaram incendiar a caminhonete com os “índios de m...” dentro e agredir a polícia que os protegia. Só se ouviu falar, porém, de intimidações aos partidários da autonomia.

O cardeal-arcebispo de Santa Cruz, Julio Terrazas, abandonou a neutralidade e votou no plebiscito. Por outro lado, províncias inteiras do departamento, tais como as habitadas pelos indígenas chiquitanos, o boicotaram. Tratou-se, é bom notar, de iniciativa inconstitucional não só em relação ao texto apresentado pela Constituinte em 14 de dezembro e ainda não referendado, mas também quanto à Constituição ainda em vigor, que é a de 1967, com as emendas aprovadas por Carlos Mesa até 2005. Se consulta análoga fosse promovida por um governo local separatista da Espanha, Itália, Canadá, Reino Unido ou de qualquer democracia do Norte, seria legitimamente bloqueada, recorrendo se necessário à polícia ou às Forças Armadas.

Até onde pode chegar o movimento separatista? A presença na embaixada estadunidense de Philip Goldberg, que dirigiu a missão dos EUA no Kosovo e tem feito contatos com os oposicionistas, cria ansiedade em La Paz, mas as chances de reconhecimento de governos autônomos pelos países vizinhos são nulas, como já explicitou o governo brasileiro. Para o Brasil, como para a Argentina, o gás boliviano é crucial – e ainda que o gasoduto atravesse o território de Santa Cruz, é inútil sem a cooperação do governo central. Sem esse reconhecimento, os latifundiários crucenhos também não teriam como vender sua soja, ainda que os militares decidissem cruzar os braços.

O que é impensável: o exército boliviano certamente não tolerará que se queira brincar de Kosovo em seu território. O verdadeiro risco está em que setores militares reacionários usem a “ameaça separatista” para declarar deslegitimado o governo de La Paz e se unir aos empresários “autonomistas” para impor um novo governo central, à maneira da fracassada tentativa de golpe de 2002 na Venezuela. Cabe aos países vizinhos adverti-los de que nenhuma ruptura com os princípios democráticos será admitida.

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