domingo, 24 de agosto de 2008

Nossa eterna tragicomédia - por Mino Carta (Cartacapital)

Era um dia de março de 1964 e eu me postei na esquina da rua Marconi com a Barão de Itapetininga, centro de São Paulo, para ver passar a Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade. Era ponto elegante de uma cidade ainda bastante civilizada e a marcha ia invadir a tarde até o Largo São Francisco.

O desfile tinha garbo e organização. Vinham na frente os sócios do Clube Harmonia, secundados por fâmulos, amas, aias, quituteiras, jardineiros, mordomos, motoristas. Seguiam-se os sócios do Clube Paulistano, à testa de tropa similar, embora menos consistente. Depois os demais, até a turma do Floresta e do Tietê. Patrões e servos do sexo masculino, todos de terno e gravata de dar gosto.

(Pequena anotação, lateral: hoje em dia, de terno e gravata, só os seguranças).

Do alto sobrevoava a passeata o governador Ademar de Barros, de helicóptero. Levara a bordo, e extraíra da algibeira, um terço, que desfiava sôfrego, para propiciar a proteção da divindade da manifestação. Ali, na esquina, perguntei-me qual seria, e se divindade ou não.

Decorridos 44 anos, leio os textos dos discursos pronunciados no Clube Militar do Rio de Janeiro, dia 7, em sinal de repulsa à tentativa de propor um debate sobre a correta interpretação da Lei da Anistia, escrita e imposta pela ditadura encerrada em 1985. O tom é o mesmo de 44 anos atrás. Poucos sabem que a história só se repete como caricatura. Mas, na moldura da reunião fardada, não faltou a evocação da “família brasileira”, a implorar a intervenção militar para sustar outra marcha, a da subversão, e impedir a comunistização do Brasil.

A qual família aludem os senhores da guerra não nos é dado averiguar e, de qualquer maneira, não são representativas da maioria as que eu vi passar pela Barão de Itapetininga. Quanto à marcha da subversão, cansei de esperá-la. Cabe constatar, enfim, que tudo mudou. Tio Sam está em outras, a CIA já não é aquela, o embaixador Lincoln Gordon foi enterrado com seus cachimbos e artimanhas. Etc. etc.

A ignorância do mundo real cria uma situação chegada ao paradoxo e ao absurdo, e nela se situa uma das falas ouvidas no Clube Militar, a enxergar por trás dos ataques do PCC em São Paulo as mãos das Farc, do ETA, do IRA e de Lula. O toque final da fantasia delirante é executado pelo governo contemporizador e pela mídia, pronta a repropor impavidamente memórias vergonhosas, para ela e para todos nós.

O evento de duas semanas atrás não deveria ser levado a sério, está claro. Só a comicidade exorbitante o torna a seu modo trágico. No entanto, não há notícia de que tenha sido desaprovado pelos chefes da ativa, enquanto o governo, com o aval da mídia, reedita o clássico papel de bombeiro, com a exceção honrosa dos ministros Tarso Genro e Paulo Vannuchi.

O jurista e magistrado espanhol Baltasar Garzón, em visita esta semana ao Brasil, esclareceu em palestra em São Paulo um dos aspectos fundamentais da questão: a punição dos torturadores é uma exigência da democracia sem significar afronta às Forças Armadas. Pelo contrário, elas servem hoje ao regime de liberdade e ao Estado de Direito, aniquilados por uma ditadura feroz que durou 21 anos, não hesitou em praticar o terrorismo de Estado e é nódoa ignóbil, antes de mais nada, na sua própria história.

Garzón, personagem forte e importante do nosso tempo. Campeão dos direitos humanos, primeiro responsável pela condenação final de Augusto Pinochet, fez valer o peso da sua experiência na noite de segunda-feira 18, na presença do ministro Vannuchi e de uma platéia de quatrocentas pessoas, entre as quais professores, magistrados e familiares de vítimas da ditadura, mortos sob tortura ou desaparecidos.

Promovida pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, pela Caixa Econômica Federal, pela Unesp e por CartaCapital, a noite de segunda fica como um momento de lucidez em meio às desventuras patéticas da nossa inesgotável tragicomédia, de um humor negro involuntário e, por isso, tão desolador. A mídia, como sempre, não deixou de ficar à altura da desolação.

O Globo ignorou a visita de Garzón, embora o jornalista Ancelmo Góis anunciasse que o juiz chegaria na terça. O Estadão deu um pequeno registro da palestra enquanto cuidava de não citar CartaCapital, conforme vetustas tradições do jornal. A Folha de S.Paulo permitiu-se registro pouco maior em página interna e citou Caros Amigos em lugar desta revista.

A mídia nativa prima pela desfaçatez, pela hipocrisia, pelo português indigente, pelas omissões e pelos erros de informação. Destes pontos de vista, é exemplo mundial. Nem por isso, cansa-se de proclamar, além de qualidade, seu apego à ética. Mas de que ética a amena turmeta deita falação?

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