sábado, 29 de novembro de 2008

Aquele santo padroeiro dos conservadores - por Argemiro Ferreira

Desde que foi canonizado - na unanimidade dos obituários feitos pelos políticos e pela mídia, no próprio dia de sua morte e nos seguintes - Ronald Wilson Reagan (foto ao lado, saiba mais sobre ele AQUI) virou um santo sem mácula, padroeiro do conservadorismo americano. Nunca ouse, por favor, fazer a menor restrição a essa figura inatacável, ainda que seja apenas uma avaliação sensata sobre sua duvidosa vocação de ator.
Um aliado dele - Dan Quayle, que foi vice de George H. W. Bush (o pai) - virou motivo de chacota no mundo (continua a ser, até hoje) porque corrigiu um garoto que escrevera corretamente no quadro negro a palavra potato (batata). Nunca se recuperou. Se tivesse acontecido com Reagan, imagino que as mais altas autoridades da língua mudariam prontamente a grafia da palavra para adaptar a realidade ao erro dele.
Uma vez o influente colunista James Reston, do New York Times, afirmou que durante os oito anos de Reagan “a Casa Branca viu-se forçada a fazer mais correções de declarações públicas dele do que já tinha feito até então em relação a qualquer outro presidente”. Reagan não mentia cinicamente como Richard Nixon, mas dizia mais asneiras - e com mais regularidade e frequência - do que qualquer outro.


Realidade, fantasia e fraude


Alguns dos escorregões eram embaraçosos mas pouco relevantes - ao menos para quem já fizera no cinema até papel de psicólogo de macaco - no filme Bedtime for Bonzo, da foto à direita (veja o DVD abaixo e saiba mais AQUI). Coisas como o brinde “à Bolívia” embora estivesse no Brasil (no fundo, para Reagan, não havia diferença entre os dois). Ou chamar Samuel Doe, então chefe de estado da Libéria, na África, de “Chairman Moe” - obviamente confundido, não se sabe bem porque, com o “Chairman Mao” do livrinho vermelho. E mais coisas parecidas.
Esses seriam tropeços inocentes, meio infantis, de gente acostumada a decorar o papel (para um filme) ou ler o texto (no noticiário da TV) sem entender direito de que se tratava. Como Cid Moreira no seu tempo de “Jornal Nacional” - ou, talvez, o Seu Boneco atual, William Bonner. Dá perfeitamente para conviver com isso, mas não com os erros mais sérios de Reagan - exageros, inverdades explícitas, estatística inventada, histórias fabricadas.
Na atual discussão sobre a indústria automobilística nos EUA repete-se todo dia que o ganho médio do trabalhador é US$72 por hora - conta falsa, pois tal número refere-se ao total da despesa dos salários dividida pelo número dos empregados e horas trabalhadas. Mas ao total está somado ainda o pagamento das pensões dos aposentados. É o clássico estilo Reagan, que nunca admitia estar errado. Faz até lembrar as histórias dele sobre o que chamava de “rainhas do welfare“.


Aquelas rainhas de Cadillac


Durante uns seis anos, já depois de ter cumprido os dois mandatos como governador da Califórnia mas antes de se tornar presidente, Reagan repetia como real sua história destinada a desacreditar o welfare (benefícios oficiais, semelhantes ao bolsa-família). Segundo ele, “rainhas do welfare” (welfare queens) viviam no luxo às custas do Estado, desfilando em Cadillacs - tudo graças a fraudes.
No início os relatos podiam parecer verdadeiros. Mas Reagan passou a aperfeiçoar um caso específico com requintes mais suculentos. Falava de certa “rainha de welfare em Chicago”, que usava 80 nomes, 30 endereços e 12 carteiras de Social Security para receber benefícios por quatro maridos mortos que, na verdade, nunca tinham existido. No total, dizia, ela embolsava mais de US$ 150 mil por ano.
Alguns jornais investigaram a história e concluiram que ele só podia estar se referindo a uma mulher condenada em Chicago por usar dois nomes e receber US$ 8 mil. Era o único caso real parecido. Ainda que a verdade fosse inteiramente diferente, Reagan preferiu ignorá-la. Insistiu na própria ficção e continuou a repetir a história absurda e falsificada. Fazia mais sucesso - e funcionava melhor no discurso contrário à ajuda oficial a necessitados.


O presidente fora de controle


Como tinha conquistado o direito de criar a própria realidade, nos seus últimos anos de vida - dentro e fora do governo - Reagan passou a fantasiar mais. Em novembro de 1983, ao receber na Casa Branca o premier israelense Yitzhak Shamir, contou a ele que servira como fotógrafo numa unidade do Exército encarregada de filmar a libertação de um campo de extermínio nazista na II Guerra.
Em fevereiro do ano seguinte contou a mesma história a Simon Wisenthal, o célebre caçador de nazistas. Não mentia: apenas tornara-se incapaz de distinguir a ficção da realidade. De fato serviu ao Exército, como outros atores, durante o período da guerra (veja-o acima no uniforme de capitão, quando achava estar lutando na guerra). Limitava-se a narrar ou interpretar filmes de treinamento militar. Em Hollywood. Não saiu dos EUA, apesar de se convencer depois de que tinha até libertado campos de concentração.
Essa conduta dele foi analisada em 1987 pelo cientista político Michael Rogin no livro Ronald Reagan, the Movie - and Other Episodes in Political Demonology (veja a capa ao lado e saiba mais AQUI). Mais tarde, foi pior. Reagan passou a falar de filmes como se fossem fatos acontecidos com ele. Em discurso solene relatou a tragédia do piloto heróico que preferiu morrer no avião a abandonar sua tripulação. Era um episódio de A Wing and a Prayer, um filme com Dana Andrews. Terá Reagan sido mesmo um santo? Pode ser. Mas quem governava o país enquanto ele “viajava” no Alzheimer?

Comentário: Para ver as fotos, ver o blog do Argemiro Ferreira (que é fenomenal).

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