sexta-feira, 21 de maio de 2010

Como Lula deu a volta por cima - por Cristiano Romero e Raymundo Costa, de Brasília (Valor Econômico)

O depoimento de Duda Mendonça levou a crise do mensalão para dentro do Palácio do Planalto e derrubou a popularidade do presidente ao nível mais baixo desde que assumiu o cargo

O pior momento político do presidente Lula, em quase oito anos de mandato, ocorreu no dia 11 de agosto de 2005, quando o publicitário Duda Mendonça, instigado pelo senador Antônio Carlos Magalhães, deu um depoimento-bomba à CPI dos Correios. No testemunho, Duda associou a campanha presidencial de 2002 a crimes eleitorais e financeiros revelados no escândalo do mensalão.

Foi ACM quem convenceu Duda a contar “toda a verdade” à CPI dos Correios, uma das três criadas pelo Congresso em 2005 para apurar o mensalão, que eclodiu há exatos cinco anos. Duda não fora convocado pela CPI para depor. Em 11 de agosto, no entanto, após várias conversas com ACM, o publicitário decidiu ir à comissão. Antes, pediu proteção.

Num depoimento de quase dez horas de duração, Duda confessou ter recebido R$ 15,5 milhões do PT em 2003, em recursos de caixa 2, como pagamento da campanha presidencial do ano anterior. Do total, R$ 10,5 milhões foram depositados numa conta no exterior.

O depoimento levou a crise do mensalão para dentro do Palácio do Planalto e derrubou a popularidade do presidente ao nível mais baixo desde que assumiu o cargo – 28%, segundo as pesquisas do Datafolha em outubro e dezembro de 2005, índice impensável para o Lula de hoje em dia (de acordo com pesquisa de abril, o presidente é aprovado por 73% da população).

Nos últimos três meses, o Valor conversou com os principais personagens da crise do mensalão para investigar por que a oposição desistiu de levar adiante a proposta de impeachment, que passou a ter “prova material”, segundo avaliação de integrantes do próprio governo, após o depoimento de Duda; como o presidente Lula atuou politicamente no seu pior momento; que fatos passaram ao largo das três CPIs; quem foram e como atuaram os “bombeiros” da crise.

Além da participação decisiva de ACM para o depoimento de Duda, novos fatos vieram à tona, como a proposta de renúncia ao cargo e à candidatura em 2006 feita a Lula por aliados; a tentativa de Delúbio Soares, então tesoureiro do PT, de beneficiar um banco estrangeiro em troca de auxílio financeiro ao partido; a peregrinação do empresário Marcos Valério, apontado pelas CPIs como o operador do mensalão, no Banco Central (BC), para tentar mudar a lei de liquidação bancária.

Thomaz Bastos confidenciou a Fernando Henrique que informara Lula sobre aquele encontro, mas em nenhum momento disse que o presidente lhe pedira para procurá-lo

A apuração revela que o governo acreditou mais na possibilidade de impeachment do que a oposição. Mostra, ainda, como o governo Lula mudou de rumo após aquela crise, dando mais poder ao movimento sindical.

Durante a crise, um grupo de assessores e ministros, batizado de “Grupo das 8″, referência ao horário em que eles se encontravam toda manhã, se reunia, numa sala contígua ao gabinete presidencial, para monitorar as CPIs e bolar estratégias de reação. O grupo era formado por Gilberto Carvalho (chefe de gabinete) e os então ministros Dilma Rousseff (Casa Civil), Márcio Thomaz Bastos (Justiça), Ciro Gomes (Integração Nacional), Tarso Genro (CDES), Jaques Wagner (Coordenação Política) e Antônio Palocci (Fazenda).

O impeachment bate à porta

O governo Lula balançou no dia 11 de agosto de 2005, quando Duda Mendonça deu seu depoimento à CPI. No dia seguinte, após longo e calculado período de alheamento, Lula e o governo passaram a tratar o impeachment como uma ameaça concreta.

A corte de Lula compreendera exatamente a gravidade das confissões feitas por Duda. Além dos participantes habituais do Grupo das 8, apareceram na Granja do Torto outros auxiliares da copa e cozinha de Lula, como Clara Ant (assessora especial e tomadora oficial de notas nas reuniões), Marco Aurélio Garcia (assessor internacional) e o sempre discreto ministro Luiz Dulci (secretário-geral da Presidência), o encarregado, no Palácio do Planalto, de manter a sintonia fina com os movimentos sociais.

Quando Meirelles passa a dizer “não” aos pedidos de suspensão de intervenções bancárias, assunto em que Valério se envolvera, aparecem denúncias contra o presidente do BC

Lula não mediu palavras: o depoimento de Duda fora “um desastre” e era “evidente” que o publicitário havia se acertado com a oposição. O presidente estava certo. Duda fora convencido pelo senador pefelista Antônio Carlos Magalhães (morto em 2007) a contar “toda a verdade” à CPI.

ACM afastara-se do governo após as eleições municipais de 2004. Lula e o oligarca baiano haviam se aproximado em 2002, nas eleições presidenciais, e selaram a união em convescote na casa de praia de Duda, em Salvador. No ano seguinte, José Dirceu, então ministro-chefe da Casa Civil, ajudara o senador a se desvencilhar da acusação de ter mandado “grampear” metade da Bahia. Dois anos depois, a disputa pela prefeitura de Salvador, um feudo carlista, novamente colocou ACM e Lula em rota de colisão.

Senador negociou com Duda

O publicitário, que costumava dizer que na Bahia nunca havia feito campanha contra o senador, tinha interesse em conversar com o deputado ACM Neto, um ponta de lança da oposição na CPI dos Correios. ACM colocou o neto na linha com Duda no dia 9 de agosto, uma terça-feira. A preocupação do publicitário, até aquele momento, era com o depoimento na CPI de sua sócia Zilmar da Silveira, agendado para o dia 11.

Na quarta-feira, dia 10, Duda deu outro telefonema a ACM Neto. Durante a conversa, deixou o deputado com a impressão de que poderia ir à CPI. Perguntou-lhe, por exemplo, se receberia um tratamento hostil.

Na madrugada do dia 11, Duda acordou ACM para informá-lo de que iria à comissão. Mais uma vez, pediu apenas que, pelo menos na Bahia, onde vive sua família, ele tivesse um “tratamento digno”. Antes do telefonema, gastou horas definindo com dois renomados advogados paulistas – Antônio Cláudio Mariz de Oliveira e Pedro Dallari – a estratégia do depoimento.

Eram aproximadamente 5h30 da manhã de quinta-feira quando o telefone de ACM Neto tocou. Do outro lado da linha, seu avô deu a notícia: Duda estaria sentado ao lado de Zilmar no banco de testemunhas.

ACM Neto não perdeu tempo. Naquele dia chegou mais cedo à CPI, para articular o depoimento-surpresa de Duda com os membros mais destacados da comissão, como os deputados Eduardo Paes e Osmar Serraglio e a senadora Heloisa Helena. Conversou também com o presidente da CPI, senador Delcídio Amaral, e tratou de regimento com um especialista – o deputado Arnaldo Faria de Sá. O objetivo era evitar que os governistas da comissão contestassem o depoimento de Duda com base no regimento interno. Com isso, estavam criadas as condições para o publicitário depor.

A iniciativa de procurar ACM foi do publicitário, mas o senador aproveitou a chance para articular o pior momento do governo na CPI. Atormentado, Duda julgava-se o responsável “por tudo isso”. A ACM Neto, nos bastidores da CPI, disse que queria falar “toda a verdade”, pois só assim se sentiria “liberto”. Revelou ainda que não queria ver Zilmar na CPI como “boi de piranha”.

“Vocês não me conhecem”

O clima era de funeral no dia 12 de agosto de 2005, uma sexta-feira. Para os principais integrantes do Grupo das 8, a crise havia chegado ao gabinete do presidente da República. Agora não havia mais como Lula continuar a fazer de conta que a crise não era com ele, como fizera até então.

Poucos dias depois, ainda no calor provocado por Duda, ao fim das reuniões da manhã no Palácio do Planalto, Lula chamou um auxiliar direto à sua sala e disse: “Foram lá ontem à noite falar comigo”, contou o presidente. Segundo Lula, para propor que ele renunciasse publicamente à campanha pela reeleição no ano seguinte. Esse gesto diminuiria o ímpeto da oposição em levar adiante um processo de impeachment.

“Esses caras são gozados. Eles não conhecem a minha ligação com o povo. Isso não vai acontecer! Vou ganhar a eleição desses filhos da mãe!”, disse em seguida um Lula indignado. O assessor, atônito, dirigiu-se a alguns dos integrantes do Grupo das 8 e deu seu testemunho: “Não sei quem foi lá ontem, mas o cara não gostou da sugestão não”.

Esta é uma das passagens mais nebulosas da história do mensalão. Dois dos três personagens que estiveram com Lula naquela noite desmentem categoricamente que tenham proposto ao presidente a renúncia à disputa eleitoral em 2006. Um deles admite, apenas, que Lula pode ter entendido dessa forma o tom da conversa. Agravando um clima que já parecia insuportável, um ministro levara ao conhecimento do presidente, naquele dia, uma pesquisa (um “tracking” telefônico) feita logo após o depoimento de Duda, mostrando nova queda na sua popularidade.

Numa primeira versão da história, contada com rigor de detalhes por um assessor de Lula logo após os acontecimentos, Dilma foi ao presidente, acompanhada de Palocci, para lhe dizer que, depois do que Duda contou ao Congresso, seu governo tinha chegado ao fim da linha e que o melhor a fazer naquele momento seria renunciar, não ao direito de se candidatar à reeleição, mas à própria Presidência. Ao gesto ousado de Dilma, Lula teria reagido com um riso contido e a frase: “Vocês não me conhecem”.

Mais recentemente, uma nova versão do episódio, disseminada pelo próprio Lula entre assessores, fala apenas em renúncia à candidatura. A conversa teria ocorrido na Granja do Torto. O temor do impeachment era muito forte dentro do Grupo das 8, mas a iniciativa de verbalizá-lo ao chefe teria sido tomada por Palocci, Thomaz Bastos e Dilma sem consultar os outros integrantes do grupo.

Ao mesmo tempo em que reagia, irritado, à sugestão de desistência da candidatura, o próprio Lula alimentava essa possibilidade, possivelmente para testar seus aliados. É um velho hábito. Em 1998, quando julgava que tinha poucas chances de derrotar Fernando Henrique Cardoso nas urnas, Lula aventou a ideia de fazer prévias para a escolha do candidato do PT. Imediatamente, três postulantes se apresentaram, entusiasmados: Tarso Genro, Eduardo Suplicy e Cristovam Buarque. A partir dali, Lula ficou sabendo quem eram os interessados em disputar sua hegemonia no partido.

O flerte com Palocci e Ciro

No pior momento da crise, o presidente deu uma missão a Gilberto Carvalho: convocar Palocci para uma conversa urgente, na Granja do Torto. Antes, orientou o chefe de gabinete a estimular o ministro a lançar sua candidatura à Presidência em 2006. “Se prepara! Você vai ser o candidato. Eu não quero ser candidato”, disse Lula a um incrédulo Palocci. “Só vou ser candidato se a gente não conseguir reverter essa crise porque, aí, eu vou pro pau com esses caras”, acrescentou o presidente.

O então ministro da Fazenda reagiu negativamente. “Não tem hipótese de o senhor não ser candidato. No dia em que anunciar que não é candidato, aí o nosso buraco aumenta”, argumentou Palocci. O raciocínio era que a renúncia à candidatura em 2006 enfraqueceria ainda mais o presidente. Lula decidiu, então, lançar outra carta.

“Se você não for candidato, vou chamar o Ciro, mas eu acho que tem que ser você”, disse Lula. “Presidente, se o senhor achar que é isso, procure o Ciro, mas eu acho que é errado”, insistiu Palocci. Carvalho ajudou a reforçar o suposto plano de Lula. “Estão surgindo os dois nomes, mas nós preferimos você”, disse ele a Palocci, que, uma vez mais, rejeitou a sedução.

Numa viagem oficial a países africanos, pouco depois, Lula levou o então ministro Ciro Gomes na comitiva. O objetivo não foi outro senão fustigar a vontade de Ciro de ser presidente. Nos meses seguintes, à medida que foi se recuperando da crise, não tocou mais no assunto. “Ele queria que eu fosse o candidato no lugar dele”, contou Ciro a amigos, dias mais tarde.

A oposição ficou fora desse jogo. Não propôs, em nenhum momento, um acordo com Lula em torno da eleição de 2006. O único a defender publicamente a ideia da não reeleição foi Fernando Henrique. Ele achava que, se Lula declarasse naquele momento que não seria candidato, voltaria a ter “respeitabilidade” e, eventualmente, até poderia se candidatar. Lula reagiu enfurecido à sugestão. “Se eles estão pensando que vão me tirar daqui no tapetão, nem pensar! Vou pra rua”, afirmou ele numa reunião.

Preocupados com o andamento da crise, que, depois de Duda, chegara às cercanias do Palácio do Planalto, três figuras eminentes da República – um deputado do PT, um ministro do Supremo Tribunal Federal e um funcionário público do alto escalão – decidiriam procurar, separadamente, Thomaz Bastos.

Um dos três sugeriu que o presidente mandasse uma proposta ao Congresso, instituindo o mandato de cinco anos e eliminando a possibilidade de reeleição. Um outro propôs que Lula fizesse um pronunciamento à nação, no qual diria que estava abrindo mão da candidatura à reeleição. O terceiro foi pelo mesmo caminho. Os três tinham em comum a avaliação de que Lula só pacificaria o país, naquele momento, se desistisse de se candidatar no ano seguinte.

Lula contra-ataca

O depoimento de Duda foi uma enorme surpresa para Lula e seus principais auxiliares. Mas, ao contrário do que o presidente deixava transparecer em público, havia muito que o Palácio do Planalto se preparava para o pior. Além do Grupo das 8, armou-se também no Congresso um “bunker” para monitorar permanentemente o trabalho das três CPIs (a dos Correios, a do mensalão e a dos Bingos, também conhecida como “CPI do Fim do Mundo” por tratar de vários temas, entre eles, o assassinato do prefeito petista Celso Daniel). Emissários de Lula mantinham abertos, ainda, os canais com a oposição.

Lula não tinha ilusões: a oposição “mexeria com o impeachment”, como afirmou no dia seguinte ao depoimento, em reunião na Granja Torto. Alguns auxiliares temiam que ele se deixasse abater, mas o presidente não demonstrou a menor disposição de cair sem briga. Dizia que o PT, um partido com base social, não era o PRN, a legenda de aluguel usada por Fernando Collor de Mello para se eleger em 1989. “Nós vamos pra rua defender o mandato que o povo nos deu”, disse.

O presidente em pessoa conversou com José Lopes Feijó, dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), para armar manifestações de rua em defesa do governo.

Essa era a faceta beligerante da reação. A outra, de entendimento com a oposição, particularmente com FHC, prosperava por meio de conversas dos ministros Márcio Thomaz Bastos, que teve um papel destacado nessa costura, e Antônio Palocci e do deputado Aldo Rebelo, do PC do B, que atuou tanto como ministro da articulação política quanto na condição de presidente da Câmara, cargo que ocupou a partir do fim de setembro de 2005. Foram conversas decisivas para conter o ímpeto belicista da oposição, mas não tiveram consequência para uma aproximação entre PT e PSDB após a crise.

Na verdade, a oposição sempre teve dúvidas sobre a conveniência de propor o impeachment do presidente. Seria o segundo em pouco mais de dez anos – Collor foi impedido em 1992. Os oposicionistas temiam a pecha de golpistas. Avaliaram, também, que não tinham rua nem votos e, por isso, não revelavam a mesma disposição para o impeachment que Lula demonstrava ter para se manter no cargo que perseguira durante 13 anos.

Havia no Palácio do Planalto a percepção de que FHC tinha ascendência sobre o PSDB. E de fato era do ex-presidente o discurso mais bem articulado das oposições, moderado diante do que efetivamente achava da situação.

O que no Planalto se achava ser o elemento que a oposição precisava para propor o impeachment, para FHC o depoimento de Duda fora muito além: o publicitário dera a prova material para a Justiça anular a eleição de 2002 e empossar José Serra, o segundo colocado na disputa. Algo como o Tribunal Superior Eleitoral fez recentemente ao anular a eleição de Jackson Lago para o governo do Maranhão e mandar empossar Roseana Sarney, a segunda colocada. Apesar disso, o ex-presidente também estava convencido de que Lula reagiria ao impeachment com o discurso de classe – “o primeiro trabalhador a chegar à Presidência da República ia ser degolado pela elite” – e de que isso poderia dividir o país.

“Eles estão na lona!”

A conversa de FHC com Thomaz Bastos foi um embate entre dois mestres na arte da boa política. O ministro era a pessoa certa para a incursão exploratória de Lula. O advogado ajudara em campanhas eleitorais de FHC, mas, embora não fossem muito próximos, os pais deles – José Diogo Bastos e Leônidas Cardoso, ambos deputados nos anos 1950 – foram amigos. Thomaz Bastos confidenciou ao ex-presidente que informara Lula sobre aquele encontro, mas em nenhum momento disse que o presidente lhe pedira para procurá-lo.

A constatação de FHC foi rápida: “Eles [Lula, o PT e o governo] estão na lona”.

Thomaz Bastos perscrutou como FHC estava vendo “as coisas”. Uma conversa de “cerca-Lourenço”, como contaria depois o ex-presidente aos tucanos. Na prática, o que Thomaz Bastos queria saber era se a oposição iria para o impeachment. FHC entendeu o recado e disse: “O impeachment é um ato político, o jurídico é outra coisa. Você vai para o tribunal. O ato político você tem que ter força para ganhar, não é ter a razão”.

FHC contou para Thomaz Bastos o dilema que rondava a oposição: a CPI dos Correios reunira elementos até para a Justiça anular a eleição. Este era o aspecto legal. Politicamente, a situação era outra: a oposição não tinha força para votar o impeachment. E se tentasse, especulava FHC, dividiria o país. “E eu tenho horror [da divisão] porque vi isso muitas vezes – do Chile de Salvador Allende à Venezuela de Hugo Chávez”, disse ao ministro

A conversa se estendeu por quase três horas. Já na rua, Thomaz Bastos se deu conta de que FHC não assumira nenhum compromisso contra o impeachment. Também constatou a veracidade da fama de pão-duro que carrega o ex-presidente: num dado momento, percebendo que seu marido nada oferecera à visita, Dona Ruth serviu café e água e deixou os dois conversando madrugada adentro.

“Rua não tem regimento interno”

“Nós não queremos fazer o impeachment do presidente. Para nós, basta o impeachment moral do Lula, para ele chegar às eleições sem condições de concorrer”, disse Fernando Henrique a outro representante do governo, Aldo Rebelo. Na ocasião, Aldo pensou: “É do jogo”.

O PSDB queria tirar Lula do poder na eleição e não por meio do impeachment, processo que, àquela altura, o governo denunciava como sendo “golpe da oposição”. Ao se despedir do ex-presidente, no entanto, Rebelo achou prudente fazer uma advertência: “Rua não tem regimento interno”. Uma frase que só confirmou os piores temores de FHC sobre o risco de divisão do país embutido na empreitada do impeachment.

Já Palocci procurou FHC para manifestar preocupação com o que chamou de “repercussões sistêmicas” da CPI dos Bingos. “Olha, Palocci, não estou no dia a dia do Senado, do PSDB, não estou no telefone dando ordens. O pessoal pensa que eu faço isso. Não. Eu não sei como é que o PSDB vai se comportar. Não há interesse em botar fogo no mercado”, respondeu FHC.

O ex-presidente não se comprometeu com os emissários governistas, mas atuou para manter a oposição com os pés no chão. “O problema é o seguinte: temos força?” [para o impeachment], perguntou a Arthur Virgílio, líder tucano no Senado, e a Tasso Jereissati, então presidente do PSDB. Em seguida, contou a história de Josef Stalin, quando o líder comunista russo foi confrontado com o poder da Igreja Católica na reunião dos líderes aliados, no pós-guerra: “Quantas divisões tem o papa?”

A oposição ameaçava, foram apresentadas 30 proposições de impeachment, mas o fato é que os oposicionistas não tinham votos para derrubar Lula. Esteve próxima de tê-los, como se pode depreender da eleição de Aldo Rebelo para a presidência da Câmara, após a queda de Severino Cavalcanti no chamado escândalo do mensalinho, que por quase um mês desviou as atenções e ajudou a esfriar o debate do impeachment.

A presidência da Câmara era uma posição estratégica: cabe a ela dar início ou mandar arquivar todos os pedidos de abertura de processo de impeachment. Severino era um aliado do Planalto. E o PFL teve atuação também decisiva na investigação que levou à denúncia de que Severino recebia propina de um concessionário de serviços da Câmara.

A eleição para a substituição de Severino foi duríssima. No primeiro turno, houve empate em 182 votos entre Aldo e o candidato do PFL, José Thomaz Nonô. No segundo, o governo ganhou por 258 a 243. A eleição de um pefelista, naquele momento, poderia ter mudado o curso da história.

Deixa sangrar

Sem votos no Congresso e sem apoio nas ruas, a oposição se consumia também em dúvidas. Na avaliação de PSDB e PFL, o PT cometera um erro de cálculo político em 1992, ao apostar todas as fichas no impeachment de Fernando Collor – se tivesse mantido o ex-presidente no cargo, mas enfraquecido, provavelmente Lula seria o presidente da República já nas eleições de 1994.

Consumado o impeachment de Collor, o vice-presidente Itamar Franco assumiu e fez um governo de coalizão, do qual só o PT não participou. Após os meses iniciais de hesitação, quando teve quatro ministros da Fazenda, o novo governo decretou o Plano Real, fundamental para FHC derrotar Lula no primeiro turno da eleição de 1994.

Empunhando a bandeira “institucional” durante o mensalão, FHC foi chave nas negociações para evitar o impeachment de Lula. Mas ele não esteve sozinho. Parte de PSDB e do PFL seguia a mesma bússola: a oposição não deveria tomar a iniciativa do impeachment, mas, por outro lado, deixaria correr as investigações nas CPIs. Era a tese do sangramento de Lula.

Àquela altura, faltava pouco mais de um ano para as eleições de 2006. Com maior ou menor grau de blindagem do presidente, o sangramento foi a linha dominante na oposição, do senador Tasso Jereissati ao pefelista Jorge Bornhausen. E também a trilha seguida pelos ex-governadores de São Paulo e Minas Gerais – respectivamente, José Serra e Aécio Neves.

O enterro do impeachment ocorreu numa reunião burocrática de líderes da oposição na segunda-feira seguinte ao depoimento de Duda. Os partidos avaliaram que havia elemento material para o enquadramento jurídico de Lula, mas faltavam votos no plenário e apoio das ruas. Simples assim. “Não há clima político para o impedimento e o pedido, se houver, tem de vir da sociedade”, declarou, depois da reunião, o senador Arthur Virgílio.

Apenas um representante do tucanato – Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-ministro de FHC – foi a público, em artigo na “Folha de S.Paulo”, defender abertamente o impeachment de Lula. “Estamos ante a maior crise moral da história brasileira”, escreveu Bresser-Pereira. Ironicamente, em 2007, no segundo mandato de Lula, ele foi nomeado para integrar o “conselho de orientação” de um órgão do governo – o Ipea.

Cadáveres insepultos

A crise do mensalão já corria solta quando Lula decidiu enviar um emissário para conversar com Delúbio Soares, tesoureiro do PT. Ele queria entender o tamanho do enredo em que o partido se metera. “Gilbertinho, vai a São Paulo e conversa com o Delúbio. Eu quero saber que encrenca é essa”, ordenou Lula ao chefe de gabinete.

Numa sala do diretório nacional do PT em São Paulo, Delúbio explicou que o partido fez muitas despesas na campanha eleitoral de 2002. Com uma franqueza que assustou o interlocutor, disse que esperava a ajuda do governo em “algumas operações” e que esse auxílio nunca veio. Diante disso, foi obrigado a buscar outras fontes de financiamento, o que acabou levando-o a conhecer o empresário Marcos Valério.

Uma dessas operações, só agora revelada, chegou ao Palácio do Planalto, mas foi abortada pelo ministro Palocci e pelo presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. O plano era levantar a liquidação bancária do Banco Econômico, que sofreu intervenção do BC em 1995. Os beneficiários do negócio seriam o antigo controlador do Econômico – Ângelo Calmon de Sá – e o banco português Espírito Santo.

A contrapartida da operação seria a concessão de um auxílio financeiro do Espírito Santo ao PT. “Presidente, isso aí é cadeia! Não vamos fazer um negócio desse de jeito nenhum”, disse um ministro durante reunião para tratar do assunto. Sem pestanejar, Lula mandou encerrar o assunto ali mesmo. Antes de chegar à cúpula, no entanto, o tema, que não dizia respeito apenas ao espólio do Banco Econômico, mas também ao de outros bancos sob intervenção do BC, correu meses dentro do governo.

Os bancos liquidados na primeira fase do Plano Real, quando a queda abrupta da inflação subtraiu grande parte das receitas que eles apuravam com a perda diária de valor da moeda nacional, tornaram-se cadáveres insepultos. As intervenções começavam, mas nunca terminavam. Os ex-controladores dos bancos sempre alegaram que, concluída a liquidação, eles teriam dinheiro a receber do BC. Este, por sua vez, sustenta que isso é fantasia, uma vez que a União injetou bilhões de reais nas instituições para honrar compromissos com os correntistas e cobrir outros buracos.

No início do governo Lula, banqueiros cassados pelo BC fizeram intenso lobby em Brasília para amolecer o coração da autoridade bancária. Em 2004, conseguiram, por exemplo, que a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado criasse uma subcomissão para tratar exclusivamente das intervenções. Durante os debates, acusou-se o Banco Central de abuso de poder. Depois, tentou-se limitar legalmente o prazo do processo de liquidação, mas a proposta nunca foi adiante.

Em outra frente, Marcos Valério, apontado pela CPI dos Correios como o operador do mensalão, começou a circular com grande desembaraço dentro do governo, representando os interesses do Banco Rural, que, como revelou a comissão, fez empréstimos para salvar o PT da bancarrota. Detentor de 22% do capital do Banco Mercantil de Pernambuco, também liquidado em 1995, o Rural queria uma solução rápida para a intervenção, de forma que, ao fim da operação, pudesse assumir o espólio do banco.

As visitas de Valério ao BC

Valério não economizou visitas à sede do Banco Central, em Brasília. Esteve lá 14 vezes, segundo registros da instituição. Na primeira ocasião, foi informado das restrições legais para o levantamento de liquidação bancária nos moldes exigidos pelos ex-banqueiros. Não satisfeito, contratou um advogado para instruí-lo na elaboração de um projeto que alterasse a lei que rege as intervenções do BC.

O empresário dizia, nos gabinetes de Brasília, que atuava com o conhecimento do então ministro José Dirceu. De fato, ele tinha trânsito livre. No início de 2005, por exemplo, levou o presidente do Banco Espírito Santo, Ricardo Espírito Santo, para uma audiência na Casa Civil com Dirceu. Os laços foram estreitados. Em fevereiro deste ano, por exemplo, o executivo depôs, na Justiça Federal em São Paulo, como testemunha de defesa do ex-ministro no inquérito do mensalão.

Nas andanças pela capital federal, Valério esbarrou num funcionário de carreira do BC – Gustavo Matos do Vale, diretor de Liquidações e Controle de Operações do Crédito Rural. Num dos encontros com Vale, Valério levou-lhe uma proposta de medida provisória que alterava a legislação de liquidação bancária.

Educadamente, o diretor do BC explicou-lhe que, como haveria impacto na Lei de Responsabilidade Fiscal, qualquer mudança teria que ser feita por meio de um projeto de lei complementar. Valério reagiu de forma colérica às ponderações de Vale. Achou que o diretor do BC estava caçoando dele. Afinal, os dois já tinham conversado várias vezes sobre o tema. Funcionário público há 26 anos, Matos do Vale sabia, desde a primeira visita de Valério, que, para seu próprio bem, não deveria levar a sério a prosa do interlocutor.

Nem todo mundo pensava assim em Brasília. A pressão para levantar a liquidação de bancos falidos era tão forte que Henrique Meirelles decidiu fazer uma proposta insólita ao ministro Palocci – a mudança do BC para a Fazenda da diretoria que cuida desse assunto. Palocci argumentou que, se Meirelles estava se sentindo coagido e se isso estava lhe causando um problema de “sustentabilidade”, ele poderia analisar a mudança, embora não a considerasse necessária. O ministro temia que a transferência aumentasse ainda mais o interesse da classe política pelo tema.

Meirelles estava reticente. Quando começou a dizer “não” aos pedidos de suspensão das intervenções bancárias, um jornalista o procurou. “Olha, dr. Meirelles, vem aí onda de denúncias contra o senhor”, disse o interlocutor. Meirelles quis saber o porquê e ouviu que era por causa dos bancos. Nos dias seguintes, apareceram na imprensa as primeiras denúncias.

O próprio Palocci foi alvo de pressões. Certa vez, estiveram em seu gabinete representantes de três gerações da família Monteiro, principal acionista do Banco Mercantil de Pernambuco. Entre eles, Armando Monteiro Filho, ex-ministro do governo João Goulart e amigo de longa data do presidente Lula, e Armando Monteiro Neto, deputado do PTB e presidente da Confederação Nacional da Indústria. Na ocasião, Palocci foi a Lula para explicar o que estava acontecendo. “Não quero nem ver”, desconversou o presidente.

Da conversa com os Monteiro, ficou na memória de uma testemunha a palavra usada pelo deputado durante argumentação em defesa do fim da intervenção no Mercantil de Pernambuco: “anatocismo” (a capitalização de juros acumulados por não terem sido liquidados no vencimento). Apesar da pressão, “a família Monteiro foi institucional”, assegurou Palocci em relato feito ao presidente Lula na ocasião.

Por meio de sua assessoria, o Banco Espírito Santo confirma que, “em 2001 ou 2002″, foi procurado por Calmon de Sá. O ex-banqueiro, segundo a assessoria, queria que o banco português intermediasse, no mercado, a venda de títulos do Econômico. Ocorre que os títulos jamais foram liberados pelo BC. Afinal, o banco estava sob intervenção. Daí o suposto interesse no fim da liquidação. O banco português nega ter cogitado dar auxílio financeiro ao PT, informação confirmada por mais de um personagem ouvido pelo Valor.

Quando Lula chorou

Durante toda a crise do mensalão, apenas um fato levou o presidente Lula às lágrimas: a entrada, no governo, de dois antigos companheiros do movimento sindical – Luiz Marinho, então presidente da Central Única dos Trabalhadores, que assumiu o Ministério do Trabalho; e Paulo Vannuchi, que se tornou titular da Secretaria de Direitos Humanos. Os dois embarcaram no pior momento de Lula. O primeiro, em julho de 2005; o segundo, em dezembro daquele ano.

Marinho, que hoje é prefeito de São Bernardo do Campo (SP), era considerado pelo próprio Lula o seu sucessor no movimento sindical. O presidente trata-o por filho. Vannuchi tem fortes vínculos com o sindicalismo e a esquerda católica. A presença dos dois no governo ajudou Lula a se reaproximar da sua antiga base social, que, em meados de 2005, andava um tanto decepcionada com os rumos de sua gestão, especialmente na área econômica, a mais bem-sucedida.

Durante conversa com Thomaz Bastos, Lula chorou ao lembrar que Marinho e Vannuchi encararam o desafio de entrar para o governo naquela situação. Sua popularidade estava no patamar mais baixo de toda sua trajetória na Presidência da República. O índice daqueles que consideravam seu governo “ruim” ou “péssimo” também era recorde – 29% em dezembro de 2005.

A inflexão de Lula foi calculada. Como achou que tinha perdido apoio das elites, que na sua visão estavam interessadas em apeá-lo do poder, o presidente concluiu que chegara a hora de fazer acenos em direção a antigos apoiadores. Ao colocar Marinho no Trabalho, iniciou um processo de forte recuperação do salário mínimo, até então evitado por causa dos impactos negativos nas contas da previdência social.

No segundo mandato, Lula aprofundou a inflexão, passando a conceder aumentos salariais generosos ao funcionalismo público, categoria com a qual havia rompido parcialmente em 2003 ao propor a reforma da previdência. No pós-mensalão, o presidente manteve o tripé da política econômica herdado de FHC – superávit primário, metas para inflação e câmbio flutuante -, mas desistiu de regulamentar aquela reforma e também de propor novas mudanças constitucionais. Trouxe, finalmente, o PMDB para o governo e montou no Congresso uma espécie de frente anti-impeachment, composta de 14 partidos, da esquerda à direita.

Na nova fase do governo, Lula deu força à ideia de uma “República Sindicalista”. De alguma maneira, fez o que se dizia que o presidente João Goulart (1961-1964) quisera implantar 40 anos antes e que provocou a sua queda. Os sindicalistas passaram a se sobrepor no PT e no governo, em detrimento dos outros grupos fundadores do partido – a esquerda católica, os ex-guerrilheiros e os intelectuais.

“Põe no cofre, Gilberto”

Além do Grupo das 8, durante a crise foi montado um “bunker” na liderança do PT na Câmara, no qual o deputado e advogado Luiz Eduardo Greenhalgh monitorava os depoimentos nas CPIs, ao mesmo tempo em que enchia caixas e mais caixas com denúncias contra os adversários de Lula.

Os parlamentares do “bunker” registraram que havia algo de errado na movimentação de Duda, mas foi tranquilizado pelo Grupo das 8 – que também participava das reuniões dos congressistas – sobre a lealdade do publicitário.

No domingo anterior ao depoimento de Duda, houve uma reunião no apartamento de Greenhalgh para acertar a agenda de trabalho da semana nas CPIs. “Gente, eu estou preocupado. Quem é que está controlando o Duda?”, perguntou o deputado. José Dirceu tomou a iniciativa de responder: “Pode ficar tranquilo. O Duda está sob controle”. Ciro Gomes, que também estava presente, esgueirou-se até a beira do sofá: “Estou de acordo. O Duda está sob controle, tem mantido contato”.

Estavam todos enganados. Duda não só foi à CPI, como deu à oposição o elo que havia entre a eleição do presidente e a contabilidade fraudulenta do PT. Durante toda a crise, Lula tentou separar uma coisa da outra. O próprio Grupo das 8 tem origem numa ordem do presidente para tentar desvincular inteiramente o governo do escândalo. “Não quero reunião na hora do expediente (a partir das 9h), não quero encontrar ninguém conversando sobre isso quando eu chegar ao palácio”, advertira Lula.

No apartamento de Greenhalgh, a extensão da crise era medida pelo consumo de bebida e comida. Havia dias em que Jaques Wagner enxugava sozinho uma garrafa de uísque. Bebia também rum e vinho, mas sempre manteve a compostura e a língua afiada. O nacionalista Aldo Rebelo preferia cachaça.

Lula recebeu de Greenhalgh, advogado das causas mais importantes do PT, a famosa “lista de Furnas”, matriz do processo que mais tarde levaria o carimbo de “mensalão do PSDB”. O PT, enfim, fazia prevalecer a tese segundo a qual eram “todos iguais”. O presidente conferiu cada nome da lista, de cima até embaixo. Em seguida chamou Gilberto Carvalho e ordenou: “Põe no cofre, Gilberto. Põe no cofre”.

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