terça-feira, 12 de abril de 2011

O ocaso dos velhos exércitos?

O sociólogo argentino Pablo Bonavena analisa os recentes fracassos militares dos EUA – e enxerga um mudança no padrão de guerra que marcou as sociedades por séculos. No Pagina 12, com tradução pelo Cepat

Bonavena coloca o foco nos conflitos bélicos, o que grande parte da sociologia não faz. Analisa desde as mudanças nas formas de guerra até os monumentais orçamentos destinados a esta atividade, e como irradiam estes fenômenos para todo o planeta, chegando inclusive até as sociedades mais afastadas dos centros do conflito. A guerra como parte da cultura na história e na atualidade das sociedades humanas.

Pablo Bonavena é professor de Sociologia na Universidade de Buenos Aires e pesquisador da Área de Conflito Social. Diretor de Beca Estímulo. Atualmente, dirige, junto com Fabián Nievas, a Cátedra de Sociologia da Guerra. Além disso, é membro da equipe do Programa de Pesquisas sobre Conflito Social no Instituto de Pesquisas Gino Germani (Faculdade de Ciências Sociais – UBA) e secretário de redação da Revista Cuadernos de Marte.

Eis a entrevista.

Você menciona em seu texto “As mudanças na forma da guerra a partir dos anos 1990” que, com o orçamento militar dos Estados Unidos, se poderia garantir o acesso universal à água e, além disso, reduzir em dois terços a mortalidade infantil.
Interessa-nos enfatizar, na sociologia, que grande parte do esforço humano, uma enorme quantidade de recursos, destina-se à guerra e que, sem dúvida, pelo menos no campo da sociologia, não se chama atenção para o peso que a guerra tem em nossa sociedade. Assim como também constantemente assinalamos como, estimativamente, se poderia solucionar grande parte dos problemas da humanidade com uma porção não muito grande dos orçamentos militares. Também vimos assinalando como quase tudo, ou grande parte, do que se consome ou dos bens se adquire no mercado com naturalidade, como um celular ou o desenvolvimento dos medicamentos ou a internet, foi inicialmente concebido como armamento para a guerra. E tratamos de ir mostrando com esses dados que você assinalou o peso que o esforço bélico tem na história da humanidade e que, de algum modo, é um convite, esse tipo de contraste, a pensar o que se poderia fazer com o que se destina atualmente à guerra. Ou evidenciar que grande parte do que consumimos nos é disponibilizado quando já perdeu eficácia ou efeito surpresa no campo militar. Com tudo isso também se quer chamar a atenção e abrir um debate político para ver em que se usa, ou se dilapida, o esforço humano. A guerra é uma atividade que consiste em tentar introduzir fragmentos de metal no corpo de outra pessoa para tirar-lhe a vida. E é impressionante o peso que isso tem na sociedade, e, às vezes, não estamos suficientemente conscientes do esforço que se despende nessa atividade em detrimento de um monte de outras coisas, como a fome, a água ou tudo o que poderia melhorar as condições de vida do planeta.

Em seu texto, você também assinala que todo este esforço econômico e produtivo não rende seus frutos a uma potência como os Estados Unidos. Ao menos proporcionalmente aos bilhões de dólares investidos em relação ao pequeno orçamento dos seus adversários.
De fato. Desde a queda do Muro de Berlim para cá, desde o fim da União Soviética e do fim da Guerra Fria, a guerra vai adotando novas formas, mais avançadas do que daquelas que teve durante a dissuasão nuclear. No contexto da Guerra Fria, dessa luta entre os Estados Unidos e o mundo ocidental que enfrentavam o comunismo, com a União Soviética à frente. Superada essa situação de certa polaridade, pelo menos militar, abre-se uma nova etapa onde se começa a ver que, em algum grau, o enorme esforço militar das grandes potências, sobretudo os Estados Unidos, tem uma eficácia bastante pobre em relação aos investimentos nos campos reais de batalha. O que se nota é uma disparidade de forças que não surte os resultados que, em princípio, se esperaria racionalmente frente a essa disparidade. É assim que uma das discussões mais importantes na teoria da guerra, no debate doutrinário militar e técnico-militar, passa por aquilo que conceitualizamos como o problema da assimetria de forças. E transforma-se em um problema porque uma força militar enorme, de poderio impressionante, não gera os resultados concretos esperados frente ao que seriam esforços sumamente artesanais. A assimetria constitui-se como um problema porque, justamente, os menos poderosos conseguem efeitos na ação militar, e, evidentemente, também política, sumamente importantes. Basicamente, à assimetria de forças corresponde uma assimetria estratégica. Quem não pode responder frontalmente, responde de outra maneira. Exércitos muito importantes com baixa eficácia diante de forças que, como se diz em parte da doutrina militar, não cooperam estrategicamente. Quer dizer, que combatem de uma maneira totalmente diferente. E em que sentido? Não é mais um Estado diante de um outro Estado com certa previsibilidade no desenvolvimento da guerra, senão que há formas em que o tempo e o espaço, por exemplo, mudaram a maneira de combater. Assim como um ataque no Oriente Médio pode ser respondido na cidade de Buenos Aires ou na cidade de Nova York, e não imediatamente, mas um tempo depois. E esses são elementos que depois serão conceitualizados como não-cooperação estratégica, porque não são dois iguais que lutam mais ou menos sob as mesmas regras. Isto não exclui, e com isso também há um debate muito importante, que em algum ponto alguns setores da sociedade norte-americana de grandes capitais não tirem proveito destes exércitos porque, em suma, são grandes consumidores. Por exemplo, o maior consumidor de antibióticos da humanidade é o exército norte-americano, que possui enorme quantidade de medicamentos para suas tropas.

E o negócio das armas?
Obviamente, também pesa a questão do armamento, onde grandes empresas, como a Boeing ou a Lockheed Martin, que fabricam mísseis, são empresas que não subsistiriam sem este tipo de conflitos. As novas formas de guerra são acima de tudo policialescas. De fato, uma coisa tão absurda como a guerra ao terrorismo, que significa caçar civis, supõe também tarefas de inteligência e polícia. Um exército com tanques de guerra, aviões, porta-aviões e submarinos, não tem utilidade. Mantém-se porque suprimir esse tipo de armamentos representaria uma crise fenomenal da indústria armamentística, sobretudo a norte-americana, ainda que não seja a única. É, por um lado, um grande negócio sustentado em grande parte da economia norte-americana porque grandes empresas vivem disso, e, por outro lado, há o pessoal militar que combate no terreno contra o terrorismo, a guerra irregular e assimétrica no Oriente Médio, o talibã, a resistência ou a insurgência iraquiana, Somália, etc. Então se produz uma espécie de choque de interesses: os que efetivamente estão em combate e, inclusive, muitos altos quadros do exército norte-americano analisam como derrota de suas forças armadas a baixa eficiência de suas intervenções frente aos altos gastos no emprego de enorme capacidade de destruição, mas que não pode se consolidar em vitória militar. E, evidentemente, tais níveis de destruição transformam inevitavelmente em muito hostil, as populações que eles venham, entre aspas, libertar. A força invasora não é simpática por causa das destruições que os constantes bombardeios provocam. Então, altgas patentes militares norte-americanos, como aqueles que atuam no próprio campo de batalha dizem que, de modo geral, os Estados Unidos têm um exército impressionante, mas para uma guerra que não acontece, para guerras que não acontecem de verdade. E sugerem adaptar essas forças armadas à nova forma da guerra, que é uma luta assimétrica. Mas logicamente isso implicaria, seguramente entre outras coisas porque têm muitas implicações, em desfazer muitos contratos com empresas que financiam armamentos para guerras de Estado contra Estado e firmar outros contratos, a custos menores, para outro tipo de batalhas. Esse é em grande parte o pano de fundo.

Um exército invasor não é simpático porque os bombardeios atacam civis, o que chamam de danos colaterais. São realmente danos colaterais?
Não são danos colaterais; apresentam-nos dessa forma, mas não são. Uma prática que surgiu na Segunda Guerra é que o alvo é a população civil. Calcula-se que, nos conflitos dos últimos 20 anos, 95% ou 97% das baixas seja população civil, o que nunca pode ser um dano colateral. Não há danos colaterais. Dano colateral seria algo que deu errado, mas não, isto acontece sistematicamente. Nas guerras dos Balcãs atacavam diretamente cidades de um lado e de outro. Aqui, a imprensa ressoava apenas as ações das tropas sérvias.

O que você diz da imprensa me faz pensar que o bombardeio militar muitas vezes é seguido, ou acompanhado, pelo bombardeio midiático. Sempre se apresentou os coreanos, os japoneses, os vietnamitas como os maus. Michael Moore também demonstrou como muitos norte-americanos acreditavam que seu país havia vencido a guerra do Vietnã.
Os Estados Unidos tem um excelente desempenho militar em Hollywood. Fora daí, têm vários problemas. Pretendem criar uma ideologia de guerra em seu país que lhes dê consenso para suas intervenções militares. Por isso, sempre recomendo, porque me parece muito mais interessante, àquele que quiser saber realmente sobre o Iraque e o Afeganistão, que leia os especialistas militares norte-americanos, e não a imprensa. Porque, quando a imprensa fala de uma intervenção cirúrgica e bem sucedida, com poucos danos colaterais, um general norte-americano publica uma nota na Military Review dizendo: “Fizemos um papelão, matamos um monte de gente que não tinha nada a ver com isso, e que devem estar nos odiando ainda mais, e temos que mudar tudo, porque estamos em crise”. E estamos falando de uma revista oficial do exército norte-americano!

Com os bombardeios a civis mencionados anteriormente se começa o que você chama de círculo bélico, e provoca no resto dos civis que assumam a insurgência e devolvam os ataques a objetivos civis, como as Torres Gêmeas, Londres ou Atocha.
Com Atocha se mudou o rumo de uma eleição na Espanha. Ressalto que, com um reduzidíssimo orçamento, provocam efeitos políticos enormes. Falemos concretamente da quantidade de mortos produzidos pelo chamado “terrorismo”. Houve cerca de 4.000 baixas em todo o mundo por atos terroristas, certamente bem menos que aquelas que um país produz por acidentes de trânsito. Ou seja, que o terrorismo mata menos que a gripe. É a forma de violência política mais moderada. Há um trabalho de propaganda para apresentá-lo como uma monstruosidade. O terrorismo é a forma menos letal de violência. Temos sempre o cuidado de chamar de ataques ao que, geralmente, se conhece como atentado, é uma força que ataca outra força. Aliás, se prestarmos atenção, a acusação de “terrorista” é muito tênue. Houve dois terroristas prêmios Nobel da Paz, entre eles Arafat. E agora você tem o Obama também Nobel da Paz. De fato, agora o inimigo é uma prática, o que é um absurdo. Dizem que o nosso inimigo é o terrorismo: uma formulação ridícula e pobre.

Mas existe…
Certamente existe, mas se nos pararmos para pensar, pode ser um grupo que faz terrorismo, mas não pode ser “o terrorismo” em si mesmo. Não se pode dizer “o bombardeio” é meu inimigo, mas quem bombardeia. Uma das coisas que tratamos de trabalhar e de ver na cátedra são as formas como o fenômeno da guerra se irradia por toda a sociedade e para todas as sociedades. E isso vai tendo efeitos de maior ou menor grau em diferentes níveis em escala planetária. Você dizia que a imagem do terrorismo como inimigo existe. Efetivamente, nos dizem que o terrorista é um ser malvado, cruel, irracional, etc. Que, portanto, deve ser aniquilado. Em outra escala da mesma figura, quem temos? O delinquente. Nem sequer como delinquente, a insegurança. O terrorismo tem um nível mais alto, a insegurança um nível mais baixo. A forma de construir a ideia é a mesma. Quem provoca insegurança o faz de maneira cruel, irracional, não há lógica… Estamos falando de uma sociedade relativamente afastada de conflitos bélicos, e mesmo assim este formato vem adquirindo corpo.

Você falou dos 4.000 mortos pelo terrorismo. Sabe-se qual a quantidade de mortos produzidos pelos exércitos regulares?
Há um estudo feito pela revista The Lancet, uma publicação médica inglesa de muito prestígio, sobre os mortos no Iraque. Publicaram em 2006 uma pesquisa na qual haviam contado 650.000 mortos, somente no Iraque. No artigo, explicam muito bem a metodologia: que utilizaram informes médicos de vários hospitais. Mas há lugarejos, com pequenas aldeias que simplesmente desapareceram; ou os grupos nômades onde todos morreram. Quantos mortos houve em Fallujah? Sabe como podem ser contados? Com o censo, o último foi feito em 1972 ou 1973, e então se conclui quanto era a população, qual era a expectativa de crescimento vegetativo e se vê quantos restaram.

Outro tema interessante mencionado nos textos de Sociologia da Guerra é o surgimento dos exércitos privados, de mercenários. Depois da queda da União Soviética, restou uma grande quantidade de arsenais e de exércitos que existiam para guardar a “Cortina de Ferro”, que ficaram sem trabalho.
A isso se pode somar também, por um lado, a dissolução de exércitos, gente disponível pela redução de forças armadas estatais e pelo efeito do neoliberalismo com a ideia de diminuir o Estado. Há que se privatizar tarefas que antes eram do Estado; mas privatiza-se também a educação e as tarefas de defesa e de inteligência. São os mercenários que formam parte importante das forças invasoras, por exemplo, dos Estados Unidos e seus aliados no Iraque, Afeganistão e outros lugares do mundo, com as vantagens de que este tipo de empresa livra os Estados de algumas responsabilidades. Se há torturas, diz-se que eram empresas privadas que estavam cuidando dos prisioneiros, ou com a incumbência da informação. Além disso, minimizam custos políticos, porque quando estes soldados morrem parece que morreram constam como mortes civis. São contratistas, mas também são forças armadas. Dados: já em 2008, as principais forças de ocupação no Iraque eram empresas privadas. No século XXI, participaram em todos os cenários de guerra. Estas empresas também surgem de grupos econômicos que produzem armas ou são petroleiras, como a Halliburton. Na verdade, estas empresas começam a questionar a pretensão do monopólio legítimo da violência que detém o Estado-nação. Mas, ainda que seja surpreendente, até a organização supranacional que são as Nações Unidas contrata estas empresas. Aparecem como pessoal de segurança ou de logística.

http://ponto.outraspalavras.net/2011/04/08/ocaso-dos-velhos-exercitos/

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