quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A atualidade de San Thiago Dantas - por Mauro Santayana

A Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty, comemorou, ontem, o centenário de nascimento de San Tiago Dantas. Poucos brasileiros marcaram o seu tempo, com tanta intensidade e tanto talento quanto o advogado, acadêmico, jornalista, militante político e diplomata. Sua trajetória foi de um relâmpago: formado aos 21 anos, pela Faculdade Nacional de Direito, Francisco Clementino de San Thiago Dantas, como muitos de seus companheiros de geração e de inquietude intelectual e política, se tornou ativo militante integralista. Pouco tempo depois, no entanto, entendeu que o caminho não era aquele, e se distanciou do movimento quando foi tentado o putsch de 1938 contra Vargas. San Thiago se revelou excepcional advogado, e, aos 29 anos obteve a cátedra de Direito Civil na faculdade em que se formara. A partir de então tornou-se trabalhador e militante incansável, ao mesmo tempo que construía uma cômoda fortuna pessoal, o que lhe garantia plena independência. Essa independência autorizou-o a ingressar no PTB e a eleger-se deputado federal por Minas Gerais – uma escolha de sua lucidez política.

Sua memória foi evocada por alguns homens que com ele conviveram mais de perto, como Marcílio Marques Moreira, e outros que não tiveram esse privilégio e só o conheceram um pouco à distância, como o Ministro Antonio Patriota, os embaixadores Samuel Pinheiro Guimarães, Gilberto Sabóia e Gelson Fonseca – e o professor Marco Aurélio Garcia. O advogado Adacir Reis, presidente do Instituto San Thiago Dantas só leu suas obras e dele teve testemunhos alheios.

San Thiago foi a síntese dialética de suas contradições, no tempo em que lhe coube viver e influir na vida nacional. Advogado de grandes empresas, não titubeou em defender a justiça social, a partir de um partido de centro-esquerda, como o PTB; não marxista, promoveu o reatamento de relações com a União Soviética; admirador das instituições políticas anglo-americanas, com seu sistema democrático, não titubeou em defender o direito de Cuba à autodeterminação, e foi ferrenho advogado do princípio da não intervenção nos assuntos internos de qualquer nação. Essa sua posição foi destacada pelos oradores de ontem, no Itamaraty. Se estivesse hoje vivo, San Thiago estaria na irrestrita condenação à posição das grandes potências no caso dos paises árabes. O advogado Adacir Reis considerou que San Thiago era a pura razão, e talvez lhe tivesse sido conveniente um pouco mais de emoção.

Conheci-o, não de perto, mas de alguns encontros pessoais, naqueles meses tumultuados de 1961 a 1964. Tive a impressão de que ele racionalizava a emoção, mas não a perdia; controlava-a com o exercício de uma inteligência dominadora. Enfim, vivia sua emoção, ao subordiná-la aos ditados da realidade pragmática. Nele, a escolha política não era a da paixão, mas a da rigorosa inteligência do mundo e de suas possibilidades.

Ao receber, em 1963, o título de “Homem de Visão” do ano – conferido pela Revista Visão, uma das melhores publicações então existentes – San Thiago resumiu o seu ideário político – extremamente atual – nesse trecho:

“Se me fosse dado partir de duas afirmativas, ou posições, para nelas procurar envolver toda a minha conduta de homem público, procuraria reduzi-las a este traçado essencial: a) a certeza de que a sobrevivência da democracia e da liberdade, no mundo moderno, depende de nossa capacidade de estendermos a todo o povo, e não de forma potencial, mas efetiva, os benefícios, hoje reservados a uma classe dominante, dessa liberdade e da própria civilização; b) a certeza de que a continuidade da civilização, com o seu resultado final que é a reconciliação dos homens, depende da nossa capacidade de preservar a paz, substituindo a competição militar entre os povos por técnicas cada vez mais estáveis de cooperação e de convivência, e caminhando para uma integração econômica que nivele as oportunidades, com a rápida eliminação dos resíduos do imperialismo e das rivalidades nacionais”.

San Thiago conduziu a política externa brasileira nos poucos meses que coincidiram com a presença de Tancredo na chefia do Gabinete Parlamentarista. Mas eles foram suficientes para que, retomando a conduta do chanceler Afonso Arinos, ministro de Jânio, defendesse o direito dos cubanos à autodeterminação e, como já anotamos, consumasse o reatamento de relações com Moscou. No caso de Cuba, como lembrou o embaixador Gelson Fonseca no encontro de ontem, ele estava disposto a renunciar ao cargo se lhe exigissem conduta diferente no encontro de Punta del Este, em que negou aprovação à expulsão de Cuba da OEA. Era de tal forma sua determinação que, temendo outra instrução do governo Jango-Tancredo, submetido às pressões pessoais de Kennedy, não atendeu aos telefonemas de ambos, dando instruções a seus auxiliares para que dessem a desculpa de que ele se encontrava em articulações secretas com alguns outros chanceleres. O Brasil perdeu, por um voto, o do Haiti – o da maioria de 2/3 que consumou a expulsão de Cuba, com as conseqüências conhecidas. Naqueles dias circulou uma frase de San Thiago, a de que tanto os Estados Unidos, quanto Cuba, agiam no episódio como adolescentes despreparados, e era preciso que alguém buscasse conduzi-los ao bom senso.

O mais importante do encontro de ontem foi a constatação de que o múltiplo San Thiago – com sua privilegiada e excepcional inteligência e insuperável erudição, e erudição sem mofo – continua sendo uma referência para a construção da sociedade nacional. Ele – e esta foi outra de suas sínteses admiráveis – sabia que a nossa posição no mundo dependia de nossa realização interna, como sociedade desenvolvida, livre e justa. Não há, e ele soube resumir esta verdade, sociedade soberana e livre no conjunto das nações, se seus cidadãos não forem livres e não usufruírem de justiça interna. Uma nação em que parcela de seus cidadãos oprime a maioria, jamais será respeitada no mundo. Retorno ao discurso de San Thiago, de dezembro de 1963 – poucos meses antes de morrer emblematicamente em 7 de setembro de 1964, poucos meses depois do golpe militar:

“Meus senhores, desejava agora, pedindo desculpas pela extensão deste pronunciamento, encerrá-lo com uma renovação de minha inabalável confiança no futuro do nosso país e sobretudo na vitalidade do nosso povo. Penso, de maneira especial, nas classes populares, cujo apoio solicitei e cujo convívio procurei ao ir pedir-lhes, na terra mineira que tanto amo e a que tanto devo, a outorga de confiança de um mandato legislativo.

“Tomei naquele instante uma posição política e partidária, em que continuo a aprofundar minhas raízes, e que era então, como hoje, a expressão de uma convicção sincera na capacidade das nossas classes populares para impulsionarem, no sentido da renovação, da revolução democrática, o curso de nossa história”.

Comentário
A presença de pessoas do quilate de San Tiago Dantas no governo Jango é apenas uma das demonstrações cabais de que o presidente não perpetraria um golpe
Os filhotes da energúmena ditadura militar sempre argumentam que o golpe militar foi para impedir outro golpe. Bazófia pura.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Jornalismo político volta à Era da Pedra Lascada - por Alberto Dines (Observatório da Imprensa)


“Caso o ministro Paulo Bernardo (Comunicações) fique insustentável, a presidente Dilma tem seu preferido: Franklin Martins”. (“Panorama Político”, O Globo, domingo, 28/8, pg. 2). Três linhas apenas, no pé da coluna. O suficiente, a mídia entenderá o recado.

Há hoje uma metamensagem ou criptojornalismo, cifrado, exclusivo de um seleto grupo de iluminados. O governo manda suas mensagens, a mídia é obrigada a entender. Mesmo não gostando. A réplica pode vir com a mesma sutileza. Profissionais não brincam em serviço. Faz parte do jogo democrático.

O que conspira contra o jogo democrático são as ameaças de rupturas. O presidente Lula não entendeu, não quis ou não teve paciência para entender o tricô das raposas. Subia no palanque e “mandava ver” – ou mandava brasa, como se dizia na Era Jango. Criou impasses, cavou confrontos perigosos.

É o que fez Veja com a sua última matéria de capa sobre o ex-ministro José Dirceu (“O poderoso chefão”, edição nº 2232, data de capa 31/8/2011). Sutil como uma carga de cavalaria – e tão eficaz quanto esta –, produziu um curto-circuito, reintroduziu a imprudência no diálogo governo-imprensa. Repercutiu no exterior. E daí?

Frágil, inconsistente

A verdade é que a matéria recoloca o jornalismo político brasileiro na Era da Pedra Lascada. Traz de volta os vídeos clandestinos, os arapongas, os dossiês secretos jogados no colo de jornalistas ditos “investigativos”.

José Dirceu, mesmo sem cargo ou mandato parlamentar, suspeito de integrar um grupo que está sendo investigado pelo Supremo Tribunal Federal, é um dirigente nacional do partido que ganhou as eleições para a Presidência da República, é também um consultor/lobista. Pode alugar um andar inteiro num hotel dez estrelas em Brasília ou Luanda e nele receber legiões de correligionários, clientes e amigos. Não há nada de ilícito ou malfeito (para usar o dernier-cri dos substantivos).

O texto inteiro de Veja, da primeira à última linha, é customizado, adaptado para servir à tese de que o ex-chefe da Casa Civil está conspirando contra a sua sucessora, atual presidente da República. Não há evidências, apenas insinuações, ambigüidades, gatilhos.

Fernando Pimentel, ministro do Desenvolvimento, é amigo pessoal de Dilma Roussef, não poderia conspirar contra ela. José Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobras cujo maior acionista é o governo, não enfrentaria o seu maior eleitor quando reiniciar sua carreira política. Delcídio Amaral é um petista light, quase-tucano.
A lista dos “conspiradores” é frágil e as possíveis motivações, inconsistentes. O conjunto é disparatado, não faz sentido, carece de lógica. Mesmo enquanto ficção.

Um desserviço

Os encontros gravados duraram em média 30 minutos, tempo insuficiente até para acertar uma empreitada de pequeno porte. Devidamente investigados, os fatos poderiam vincular-se e ganhar alguma dimensão. No estado bruto em que foram apresentados pelo semanário de maior tiragem do país representam um atentado à inteligência do leitor, não renderiam sequer uma nota numa coluna de fofocas políticas.

Este é um jornalismo que não se sustenta, é retrocesso. Não favorece a imagem da imprensa, não ajuda a presidente Dilma, prejudica a oposição. Faz esquecer a faxina moralizadora e degrada o processo político.

Comentário
Uma das diferenças entre a grande mídia daqui e a de países mais avançados é que, quando um fato desta magnitude ocorre, as consequências para a publicação são evidentes (basta relembrarmos os casos da demissão do repórter do The New York Times que inventava notícias, ou um mais recente, do escândalo dos grampos ilegais da publicação do fascista do Murdoch - que, mesmo cá por esta terra tão distante, repercutiu bastante na mídia). Agora, quando a denúncia é no próprio quintal, dão um jeito de silenciá-la.
E estes mesmos, ainda se jactam de serem democratas e defensores da liberdade de expressão (!).
Uma lástima.

Pela privatização da revista Veja - por Altamiro Borges

A ação criminosa da Veja contra o ex-ministro José Dirceu – tentativa de invasão do seu apartamento e filmagens ilegais no hotel – já não surpreende. Há muito tempo que a revista da famiglia Civita não tem mais nada de jornalismo e comete crimes parecidos com os praticados pelo mafioso Rupert Murdoch. O que surpreende é que esta revista ainda abocanhe tanta publicidade de governos – inclusive dos que são vítimas de suas ações levianas. Reproduzo matéria sobre o tema de setembro de 2009.

*****

Numa conversa descontraída no aeroporto de Brasília, o irreverente Sérgio Amadeu, professor da Faculdade Cásper Libero e uma das maiores autoridades brasileiras em internet, deu uma idéia brilhante. Propôs o início imediato de uma campanha nacional pela privatização da Veja. Afinal, a poderosa Editora Abril, que publica a revista semanal preferida das elites colonizadas, sempre pregou a redução do papel do Estado, mas vive surrupiando os cofres públicos. “Se não fossem os subsídios e a publicidade oficial, as revistas da Abril iriam à falência”, prognosticou Serginho.

As “generosidades” do governo Lula

Pesquisas recentes confirmam a sua tese. Carlos Lopes, editor do jornal Hora do Povo, descobriu no Portal da Transparência que “nos últimos cinco anos, o Ministério da Educação repassou ao grupo Abril a quantia de R$ 719.630.139, 55 para compra de livros didáticos. Foi o maior repasse de recursos públicos destinados a livros didáticos dentre todos os grupos editoriais do país… Nenhum outro recebeu, nesse período, tanto dinheiro do MEC. Desde 2004, o grupo da Veja ficou com mais de um quinto dos recursos (22,45%) do MEC para compra de livros didáticos”.

Indignado, Carlos Lopes criticou. “O MEC, infelizmente, está adotando uma política de fornecer dinheiro público para que o Civita sustente seu panfleto – a revista Veja”. Realmente, é um baita absurdo que o governo Lula ajude a “alimentar cobras”, financiando o Grupo Abril com compras milionárias de publicações questionáveis, isenção fiscal em papel e publicidade oficial. Não há o que justifique tamanha bondade com inimigos tão ferrenhos da democracia e da ética jornalística. Ou é muita ingenuidade, ou muito pragmatismo, ou muita tibieza. Ou as três “virtudes” juntas.

A relação promíscua com os tucanos

Já da parte de governos demos-tucanos, o apoio à famíglia Civita é perfeitamente compreensível. Afinal, a Editora Abril é hoje o principal quartel-general da oposição golpista no país e a revista Veja é o mais atuante e corrosivo partido da direita brasileira. Não é de se estranhar suas relações promiscuas com o presidenciável José Serra e outros expoentes do PSDB-DEM. Recentemente, o Ministério Público Estadual acolheu representação do deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) e abriu o inquérito civil número 249 para apurar irregularidades no contrato firmado entre o governo paulista e a Editora Abril na compra de 220 mil assinaturas da revista Nova Escola.

A compra de 220 mil assinaturas representa quase 25% da tiragem total da revista Nova Escola e injetou R$ 3,7 milhões aos cofres do “barão da mídia” Victor Civita. Mas este não é o único caso de privilégio ao grupo direitista. José Serra também apresentou proposta curricular que obriga a inclusão no ensino médio de aulas baseadas nas edições encalhadas do “Guia do Estudante”, outra publicação da Abril. Como observa o deputado Ivan Valente, “cada vez mais, a editora ocupa espaço nas escolas de São Paulo. Isso totaliza, hoje, cerca de R$ 10 milhões de recursos públicos destinados a esta instituição privada, considerado apenas o segundo semestre de 2008”.

O mensalão da mídia golpista

Segundo o blog NaMariaNews, que monitora a deterioração da educação em São Paulo, o rombo nos cofres públicos pode ser ainda maior. Numa minuciosa pesquisa aos editais publicados no Diário Oficial, o blog descobriu o que parece ser um autêntico “mensalão” pago pelo tucanato ao Grupo Abril e a outras editoras, como Globo e Folha. Os dados são impressionantes e reforçam a sugestão de Sérgio Amadeu da deflagração imediata da campanha pela “privatização” da revista Veja. Chega de sugar os cofres públicos! Reproduzo abaixo algumas mamatas do Grupo Civita:

- DO de 23 de outubro de 2007. Fundação Victor Civita. Assinatura da revista Nova Escola, destinada às escolas da rede estadual de ensino. Prazo: 300 dias. Valor: R$ 408.600,00. Data da assinatura: 27/09/2007. No seu despacho, a diretora de projetos especial da secretaria declara “inexigível licitação, pois se trata de renovação de 18.160 assinaturas da revista Nova Escola.

- DO de 29 de março de 2008. Editora Abril. Aquisição de 6.000 assinaturas da revista Recreio. Prazo: 365 dias. Valor: R$ 2.142.000,00. Data da assinatura: 14/03/2008.

- DO de 23 de abril de 2008. Editora Abril. Aquisição de 415.000 exemplares do Guia do Estudante. Prazo: 30 dias. Valor: R$ 2.437.918,00. Data da assinatura: 15/04/2008.

- DO de 12 de agosto de 2008. Editora Abril. Aquisição de 5.155 assinaturas da revista Recreio. Prazo: 365 dias. Valor: R$ 1.840.335,00. Data da assinatura: 23/07/2008.

- DO de 22 de outubro de 2008. Editora Abril. Impressão, manuseio e acabamento de 2 edições do Guia do Estudante. Prazo: 45 dias. Valor: R$ 4.363.425,00. Data da assinatura: 08/09/2008.

- DO de 25 de outubro de 2008. Fundação Victor Civita. Aquisição de 220.000 assinaturas da revista Nova Escola. Prazo: 300 dias. Valor: R$ 3.740.000,00. Data da assinatura:01/10/2008.

- DO de 11 de fevereiro de 2009. Editora Abril. Aquisição de 430.000 exemplares do Guia do Estudante. Prazo: 45 dias. Valor: R$ 2.498.838,00. Data da assinatura: 05/02/2009.

- DO de 17 de abril de 2009. Editora Abril. Aquisição de 25.702 assinaturas da revista Recreio. Prazo: 608 dias. Valor: R$ 12.963.060,72. Data da assinatura: 09/04/2009.

- DO de 20 de maio de 2009. Editora Abril. Aquisição de 5.449 assinaturas da revista Veja. Prazo: 364 dias. Valor: R$ 1.167.175,80. Data da assinatura: 18/05/2009.

- DO de 16 de junho de 2009. Editora Abril. Aquisição de 540.000 exemplares do Guia do Estudante e de 25.000 exemplares da publicação Atualidades – Revista do Professor. Prazo: 45 dias. Valor: R$ 3.143.120,00. Data da assinatura: 10/06/2009.

Para não parecer perseguição à asquerosa revista Veja, cito alguns dados do blog sobre a compra de outras publicações. O Diário Oficial de 12 de maio passado informa que o governo José Serra comprou 5.449 assinaturas do jornal Folha de S.Paulo, que desde a “ditabranda” viu desabar sua credibilidade e perdeu assinantes. Valor da generosidade tucana: R$ 2.704.883,60. Já o DO de 15 de maio publica a compra de 5.449 assinaturas do jornalão oligárquico O Estado de S.Paulo por R$ 2.691.806,00. E o de 21 de maio informa a aquisição de 5.449 assinaturas da revista Época, da Globo, por R$ 1.190.061,60. Depois estes veículos criticam o “mensalão” no parlamento.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Dilma e a guerra que se anuncia – por Leandro Fortes (Brasília, eu vi)



O movimento era previsível e as razões óbvias, mas não deixa de ser perturbadora a investida dos grandes grupos midiáticos ao governo da presidenta Dilma Rousseff, depois de um curto período de risível persistência de elogios e salamaleques cujo único objetivo era o de indispô-la – e a seu eleitorado – com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Digo que era um movimento previsível não apenas por conta do caráter ideologicamente hostil dos blocos de mídia com relação a Dilma, Lula, PT ou qualquer coisa que abrigue, ainda que de forma distante, relações positivas com movimentos sociais, populares e de esquerda. A previsibilidade da onda de fúria contra o governo também se explica pela transição capenga feita depois das eleições, um legado de ministros e partidos de quinta categoria baseado numa composição política tão ampla quanto rasa, e que, agora, se desmancha no ar.

Assim, pode-se reclamar da precariedade intelectual da atual imprensa brasileira, da sua composição cada vez mais inflada de jornalistas conservadores, repórteres raivosos e despolitizados, quando não robotizados por manuais de redação que os ensina desde a usar corretamente o hífen, mas também como se comportar num coquetel do Itamaraty. Mas sobre a indigência do comportamento da base aliada, é tudo verdade, como também é verdade que, ao herdar de Lula essa miríade de ministros-jabutis colocados na Esplanada dos Ministérios, Dilma aceitou iniciar o governo com diversos flancos abertos, a maioria resultado da aliança com o PMDB, e se viu obrigada a fazer essa tal “faxina” pela mídia, embora se negue a admiti-lo, inclusive em recente entrevista à CartaCapital.

Dilma caminha, assim, sobre a mesma estrada tortuosa do primeiro ano do primeiro mandato de Lula, quando o ex-operário chegou a crer, cegado pela venda de inacreditável ingenuidade, que as grandes corporações de mídia nacionais, as mesmas que fizeram Fernando Collor derrotá-lo, em 1989, poderiam ser cooptadas somente na base do amor e do carinho. Dessa singela percepção infantil adveio a crise do “mensalão”, a adoção sem máscaras do jornalismo de esgoto nas redações brasileiras, a volta do golpismo como pauta de reportagem e a degeneração quase que absoluta das relações entre o poder público e a imprensa.

Em 2010, agregados ao projeto de poder do PSDB e de seu cruzado José Serra, os grupos de mídia formaram um único e poderoso bloco de oposição e montaram um monolítico aríete com o qual tentaram derrubar, diuturnamente, a candidatura de Dilma Rousseff. Não fosse a capacidade de comunicação de Lula com as massas e a conseqüente transferência de votos para Dilma, essa ação, inconseqüente e, não raras vezes, imoral, teria sido vitoriosa. Perdeu-se, contudo, na inconsistência política de seus líderes, na impossibilidade de comparação entre os dois projetos de País em jogo e, principalmente, na transfiguração final – triste e patética – de Serra num fundamentalista religioso, homofóbico e direitista, cuja carreira política se encerrou na melancólica e risível farsa da bolinha de papel na careca.

Ainda assim, Dilma Rousseff foi comemorar os 90 anos da Folha de S.Paulo, sob alegada conduta de chefe de Estado, como se não tivesse sido o jornalão da Barão de Limeira o primeiro condutor do circo de mídia montado, em 2010, para evitar que ela chegasse à Presidência. Foi a Folha que publicou, na primeira página, uma ficha falsa da então candidata, com o intuito de vendê-la como fria guerrilheira de outrora, disposta a matar e seqüestrar inocentes, sequer para lutar contra a ditadura, mas para implantar no Brasil uma ditadura comunista, atéia e, provavelmente, abortista. O fim da civilização cristã no Brasil. Dilma sobreviveu à tortura e à prisão, mas não conseguiu escapar dessa armadilha, e foi lá, comemorar os 90 anos da Folha. Agora, instada a fazer a tal “faxina”, talvez esteja recebendo um salutar choque de realidade.

O fato é que o embate entre as partes, haja ou não uma Lei dos Meios, nos moldes da legislação argentina, não é só inevitável, mas também inadiável. A presidenta reluta, naturalmente, em iniciar um conflito entre a lei e os meios de comunicação, não é por menos. Ela sabe o quanto foi dura e a ainda é a vida dos colegas vizinhos da Venezuela, Argentina, Bolívia, Equador e Paraguai com os oligopólios locais. Faz poucos dias, um jornalista brasileiro, encastelado numa dessas colunas de horror da imprensa nativa, chamou a presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, de “perua autoritária”, em resposta a leitores que lhe enviaram comentários indignados com um texto no qual ele a acusava, Cristina, de usar o próprio luto (o marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, morreu em outubro do ano passado) para fins eleitorais. Implícito está, ainda, a questão do machismo (a “faxina” da nossa presidenta), ou melhor, a desenvoltura do chauvinismo, ainda isento de freios sociais eficazes.

Tenho cá minhas dúvidas se o mesmo jornalista, profissional admirado e reconhecido por muitos, teria coragem de se referir ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso como “pavão engabelado”, apenas para ficar na mesma alegoria do mundo animal atribuída a Cristina Kirchner, por ter posado de pai amantíssimo ao assumir, 18 anos depois, a paternidade de um filho da jornalista Miriam Dutra, da TV Globo – e, aos 80 anos, descobrir que caiu no golpe da barriga. Passou dois mandatos refém da família Marinho por conta de um menino que não era dele. Algum comentário sarcástico nas colunas e blogs da “grande imprensa” a respeito? Necas de pitibiriba. Com a presidenta argentina, mulher que enfiou o dedo na cara de um grupo midiático “independente” que sustentou uma ditadura nazista, responsável pelo assassinato de 20 mil pessoas, o colunista, contudo, se solta e se credencia a nos fazer rir.

Duvido que Cristina Kirchner fosse ao aniversário do Clarín.

sábado, 20 de agosto de 2011

A sombra dos anos 30 - por Mauro Santayana

O século passado teve como eixo a década de 30. Ela se iniciou com a crise econômica mundial, que estas últimas horas de angústia nos mercados financeiros fazem lembrar, e se fechou com a conseqüência prevista pelos céticos: o início da Segunda Guerra Mundial. Foram os anos do grande confronto entre a esquerda e a direita, com contradições, idas e vindas, ilusões e tragédias, que os livros registram. Em suma, sinistras lições aos homens, que devem ser meditadas, para que o mundo não volte a ser encharcado de sangue.

Muitas são as teorias que tentam explicar aquela amostra do apocalipse. A mais conhecida é a de que, derrotada e humilhada em 1918, a Alemanha buscava a revanche com Hitler. Para isso, seu líder, encarnando o velho orgulho prussiano, obtivera o apoio da Nação a fim de vingar-se de seus inimigos e expandir o espaço vital, que consideravam necessário à plena realização de seu destino de povo de senhores.

Naqueles anos e meses da República de Weimar, mais do que em outras épocas históricas, as distorções da linguagem serviram para confundir e desorientar os homens. A esquerda buscava construir, na antiga Rússia, uma sociedade socialista. Hitler começou filiando-se a um pequeno partido de trabalhadores, que ele dominaria e o ampliaria no Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Os comunistas e socialistas alemães menosprezaram aquele grupo de bêbados, que se vestiam militarmente e brandiam slogans primários. A Alemanha não é a Itália, declarou, confiante, aos que temiam o totalitarismo no país, Ernst Thälmann, o lendário dirigente do Partido Comunista Alemão, depois de ter sido derrotado nas eleições presidenciais de 1932, por Hindemburg, e da ascensão de Hitler à chefia do governo, à frente da coligação de direita, graças ao apoio dos católicos. Em março de 33, poucas semanas depois, Thälmann seria metido no campo de concentração de Buchenwald, onde foi executado em agosto de 1944.

Os democratas e as organizações de esquerda não souberam unir-se, ali, para a resistência – o que reclamava a construção de uma idéia forte de centro político, a fim de impedir, a tempo, a ascensão dos nazistas. Não souberam unir-se ali, nem em outras nações. O caso mais dramático, fora da Alemanha, foi o da Espanha. Como anotou Salvador de Madariaga, de resto um homem rigorosamente de centro, o malogro da República Espanhola foi o malogro do centro político. Ao crescer o radicalismo tanto na direita quanto na esquerda, não houve espaço para a moderação do centro. Mais poderosa – com a ajuda dos fascistas italianos e dos nazistas, e a total adesão da hierarquia da Igreja Católica – a direita esmagou a República, depois de quase três anos de conflito. De nada valeu a pouca ajuda soviética que conseguia chegar ao país – nem a presença simbólica dos corajosos intelectuais que formaram as Brigadas Internacionais. Madariaga tinha razão: se tivesse havido o entendimento entre os partidos de esquerda, que mal se acomodavam na Frente Popular, e, depois, com as forças de centro, não haveria clima para a insurreição dos generais Sanjurjo, Mola, Queipo de Llano e Francisco Franco. Madariaga foi rigorosamente de centro no eclodir do conflito: como embaixador da República, não tomou partido na guerra, mas se tornou vigoroso opositor da ditadura franquista, e só voltou à Espanha em 1976, depois da morte do ditador.

Menosprezar a direita tem sido, mais do que erro de percepção política, ilusão criminosa. Na mesma Espanha, quando o governo dispunha de informes seguros da conspiração em marcha, o então chefe do governo, Casares Quiroga, recebeu a advertência do serviço secreto republicano com um muxoxo: se eles se levantam, eu vou me deitar. Em 1964 – recordam-se? – as esquerdas, também divididas em nosso país, percorreram as mesmas sendas da ilusão. Não só é vezo da esquerda subestimar as forças adversárias, mas também assustá-las, com os espantalhos da insurreição. Em seu favor milita realmente a ilusão. As Ligas Camponesas, armadas de fé e de espingardas cartucheiras, cresciam seu ilusório poder, diante da classe média em pânico. O mito de Che Guevara empolgava os jovens, da mesma maneira que a invencibilidade cubana, na Bahia dos Porcos, atiçava os ânimos bélicos de muitos de nós, os que vivemos aquele tempo.

Essa excursão ao passado não é por acaso. Estamos em tempo muito parecido aos anos 30. Nos Estados Unidos, um governo que tenta chegar ao centro, o de Obama, é acossado pelo Tea Party e pelos velhos texanos, que sempre estiveram na linha de frente do obscurantismo. Basta recordar que foi em Dallas que a direita eliminou Kennedy, ainda que o jovem presidente, como a história nos mostra, não fosse exatamente um liberal de esquerda. Do Texas vieram Bush pai e Bush filho, e os republicanos agora ameaçam buscar em Rick Perry, seu atual governador, e raivoso direitista, o oponente a Obama nas eleições vindouras.

A Europa caminha rapidamente para a direita, e os governantes buscam justificar a repressão policial como necessária, diante das crescentes manifestações populares contra o desemprego, a redução das pensões, a falta de moradias e de perspectivas para o povo - também comuns nos anos 30. A Espanha recebeu ontem a visita do papa Bento 16, cuja simpatia pela direita é notória. Os espanhóis foram às ruas, protestar contra os gastos governamentais com a recepção ao pontífice, em momento de gravíssima crise econômica interna. Ainda que o papa se tenha declarado contra a lógica do “lucro acima do direito das pessoas”, seus atos não confirmam a retórica. A posição do papa, diante das dificuldades da Península, foi bem exposta em visita anterior a Santiago de Compostela, quando Ratzinger expressou preocupação contra a crescente laicidade dos espanhóis e o seu anticlericalismo, “que lembra os anos 30”, e pediu “nova evangelização” na península. A “evangelização” franquista dos anos 30, apoiada na Opus Dei e no garrote vil, nós já conhecemos. Que outra “evangelização” pretende agora o papa, quando se queixa da liberdade de pensamento na Espanha atual?

A presidente Dilma Roussef atribuiu-se duas missões em seu governo: a de combater a corrupção e a de eliminar a miséria que ainda assola grande parte de nosso povo. E a direita nacional, ainda que com certa dissimulação, começa a articular-se. Isso vai exigir da esquerda, no diálogo com o centro, grande esforço, para a criação de força política de centro, organizada e articulada, firme em sua ação, a fim de dar o suporte da nação, para que possa enfrentar o vendaval internacional – com a crise econômica, o renascimento brutal do racismo na Europa e a reorganização dos nazistas e fascistas.

A Alemanha, contra o otimismo dos comunistas e socialistas, repetiu, em 30, com mais tragédias, o fascismo italiano. Por pouco, os integralistas não se apossaram do Brasil, nos anos 30. Sofremos o que sofremos sob a direita nacional, a partir de 1964. Essas lições dos anos 30 nos exigem acurada vigilância e a visão real do processo histórico. A direita está aí, firme, construindo sua vez e sua hora.

Comentário

Verdade seja dita, não imagino que a situação brasileira seja similar a dos anos 30. É similar, sim, a dos anos 80 e 90 na Europa, e 90 e dois mil no Brasil, em que a esquerda, seguindo uma suposta “lógica”, uma pseudo-atualização de seus ideais, passou a fazer alianças com o centro, a se portar e a defender bandeiras “lights”, a se distanciar dos trabalhadores, a baixar as calças para o deus-mercado, a se privar de defender aquilo em que acredita (quiçá o aborto – que eu particularmente discordo – por exemplo) por motivos eleitorais, a se engravatar e abandonar as utopias (tão e tão necessárias a política), fazendo alianças, ora desviadas ideologicamente, ora eticamente (quando não, em ambos os casos). A tragédia se materializa quando a esquerda passa a ceder, e ceder e ceder, mas cedendo tanto, mas tanto, que a (já denominada) centro-esquerda (!) passou a se portar exatamente igual a quem antes combatia, a direita.

Alguns estultos dizem que a esquerda e a direita acabaram – só quem é de direita pode fazer tal afirmação, claro.
Porém, diversos partidos no mundo (e o PT cá por estas plagas) estão conseguindo, de fato, cristalizar esta equivocada ideia: a de que os partidos no poder apenas diferem entre si devido a sua capacidade de gestão, e não da ideologia.
Difere, sim.
Ou, ao menos eu divirjo de muito do que esta aí sendo implementado.
É mais ou menos a falácia do fim da história de Francis Fukuyama: não, a história não acabou, se fosse conferido aos neoliberais o poder de paralisá-la, de fato, a teriam feito naquele momento (início dos anos 90), porém, a história seguiu, com as catástrofes econômicas e ambientais que eles criaram com esta mesma ideologia.

Para exemplificar especificamente como a antagonização esquerda-direita é extremamente relevante nos dias atuais, observemos o vexame do atual governo: ao mesmo tempo em que é discutida a desoneração das aposentadorias em folha (para os empregadores, claro), é debatida, concomitantemente o aumento do tempo de contribuição para a aposentadoria dos trabalhadores (!). Ao mesmo tempo!!!
Pela proposta apresentada pelo ministro Garibaldi Alves (!!!), nós, trabalhadores, deveremos ter tamanho tempo de contribuição que, como último serviço, devemos cavar a própria cova. Aí, neste exato momento, podemos nos aposentar. E em seguida, morrer, é claro.

Ou seja: há uma clara diferença entre esquerda e direita, sim, como bem diz o Santayana. A questão, e aí discordo dele, é que a direita brasileira não vem crescendo através do combate sangrento: a direita vem ganhando a sociedade ao comer a esquerda por dentro.

domingo, 14 de agosto de 2011

"Brizola foi a única liderança civil a derrotar um golpe militar''. Entrevista especial com Jorge Ferreira (IHU)

“A Campanha da Legalidade traduz seus próprios propósitos: a manutenção da ordem legal, a preservação do sistema político, o cumprimento da Constituição. Essas bandeiras mobilizaram a sociedade brasileira”. A constatação é do professor Jorge Ferreira, da Universidade Federal Fluminense – UFF, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Ele compara o Brasil da legalidade, em 1961, quando “a luta era pela defesa da ordem constitucional vigente, (...) as esquerdas e os setores progressistas e democráticos infligiram grande derrota aos golpistas e direitistas”, com o Brasil de 1964, quando “o movimento das esquerdas foi outro. A luta não era pela defesa da Constituição, mas pela implantação de reformas. Reformas que necessitariam de revisão constitucional – para viabilizar, por exemplo, a reforma agrária. As direitas, de maneira hipócrita, defenderam o lema de que ‘a Constituição é intocável’”.

Ferreira ainda destaca que “Brizola recusou-se a acatar o golpe de Estado. Ele foi a única liderança civil na história contemporânea brasileira a resistir a um golpe militar, dividir as Forças Armadas e derrotar os golpistas”.

Jorge Ferreira é professor de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense e autor de Jango. Uma biografia (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011).

Jorge Ferreira estará na Unisinos, no dia 18 de agosto, no Seminário “50 anos da Campanha da Legalidade: memória da democracia brasileira (1961-2011)”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que aspectos da biografia de Jango são fundamentais para entender o processo da Campanha da Legalidade?
Jorge Ferreira – Creio que duas questões são fundamentais. A primeira, sua formação política fundamentada no regime da democracia representativa. Jango ingressou na política em tempos de grande prestígio da democracia-liberal, em 1945-1946. Esse é um aspecto importante a ser ressaltado. Ele nunca esteve envolvido com propostas de golpes contra as instituições democráticas. Daí sua determinação em tomar posse na presidência da República em cumprimento da Constituição. A segunda, uma característica de sua personalidade. Jango era homem do diálogo, do entendimento, do acordo. Mas acordos que avançassem na questão política e social. Assim, entre aceitar o acordo que implantou o parlamentarismo e o confronto que poderia resultar em guerra civil, ele preferiu a primeira opção.

IHU On-Line – O que significava, naquele contexto, a posse de João Goulart?
Jorge Ferreira – O cumprimento da Constituição e a continuidade do processo democrático. Isso foi conseguido por um amplo acordo no Congresso Nacional e por diversas forças políticas com a implantação do parlamentarismo.

IHU On-Line – Como entender a força da figura política de Brizola no sentido de conseguir levantar o movimento da legalidade aqui do Rio Grande do Sul para todo o país?
Jorge Ferreira – Leonel Brizola despontou na política brasileira, desde 1945, com arrojo político. Ele e Goulart eram amigos, parentes e correligionários do mesmo partido. Criou-se uma interdependência entre eles. Goulart, no plano nacional, apoiava Brizola no Rio Grande do Sul. Brizola, por sua vez, apoiava Jango nos momentos difíceis. Foi o que ocorreu em agosto/setembro de 1961. Brizola recusou-se a acatar o golpe de Estado. Ele foi a única liderança civil na história contemporânea brasileira a resistir a um golpe militar, dividir as Forças Armadas e derrotar os golpistas. Ele convocou a população para a resistência e, inclusive, distribuiu armas ao povo. A causa era justa e legítima: defender o regime democrático. Daí que seus argumentos foram ouvidos e a população se engajou na luta pela posse de Goulart.

IHU On-Line – O que motivou a atitude de solidariedade política ao governador Brizola por parte da multidão de voluntários civis que aderiram à Campanha da Legalidade?
Jorge Ferreira – Havia na sociedade brasileira fortes vínculos com o sistema de democracia representativa. As tentativas de golpes em agosto de 1954, novembro de 1955 e agosto/setembro de 1961 demonstram que os grupos golpistas não conseguiram arregimentar amplos setores sociais – e inclusive das próprias Forças Armadas – para a consumação do golpe. No Rio Grande do Sul, a população da capital e das cidades do interior engajou-se nesse sentido: a defesa da legalidade e da Constituição. Em Goiás, o governador Mauro Borges, também agiu no mesmo sentido, encontrando amplo apoio de estudantes e operários. No Rio de Janeiro ocorreu o inverso: a população foi para as ruas exigir a posse de Goulart e a polícia civil e militar, a mando do governador Carlos Lacerda, reprimiu duramente as manifestações. Em outras palavras, não foi apenas no Rio Grande do Sul que o povo se engajou na defesa da Constituição, embora tenha sido no estado em que o destino do país foi decidido.

IHU On-Line – O que fez com que o exército mudasse de lado e apoiasse o movimento liderado por Brizola?
Jorge Ferreira – Os militares têm seus códigos de conduta baseados na disciplina e na hierarquia. Contudo, eles não são obrigados a obedecer a ordens esdrúxulas ou absurdas. Exemplo disso foi a ordem do ministro da Guerra, Odílio Denys, para que o comandante do III Exército, José Machado Lopes, bombardeasse o Palácio Piratini. O general Machado Lopes tomou uma decisão junto com seu Estado-Maior baseado em cálculos políticos. Para obedecer ao ministro do Exército, teria que matar centenas de pessoas no Palácio Pirantini. Depois, praticar verdadeira carnificina no estado do Rio Grande do Sul. Somente assim ele conseguiria impor a “ordem”. Diante de tamanho custo, ele e seu Estado-Maior preferiram o bom-senso: obedecer à Constituição e à legalidade democrática.

IHU On-Line – Qual o significado político, na época, da mudança de regime de governo para parlamentarismo?
Jorge Ferreira – O parlamentarismo resultou de amplo consenso no Congresso Nacional e entre as forças políticas em conflito. Goulart assumiria a presidência, mas teria seus poderes restringidos.

IHU On-Line – O que caracterizou a resistência popular que levou Jango ao poder?
Jorge Ferreira – A característica marcante daqueles acontecimentos foi a defesa da continuidade do processo democrático. Federações de empresários e associações comerciais, em nota, exigiram o cumprimento da Constituição; sindicatos de trabalhadores em várias partes do país declaram-se em greve, enquanto a diretoria da UNE foi para Porto Alegre; os partidos políticos, inclusive a UDN, defenderam a posse de Goulart, rejeitando a coação dos ministros militares que queriam a votação do impeachment dele; a OAB, a ABI e a CNBB também reiteraram a necessidade do cumprimento da Constituição; as Forças Armadas se dividiram; diversas religiões, de católicos a umbandistas, defenderam a posse de Goulart; até mesmo diretorias de clubes de futebol apoiaram a posse de Jango. O que se observa, nesse momento, é a sociedade brasileira organizada em suas entidades representativas na luta pela continuidade do processo democrático.

IHU On-Line – Como o senhor define a crise política que se abriu com a renúncia de Jânio Quadros e que herança essa crise deixa para a trajetória histórica da política brasileira?
Jorge Ferreira – Jânio Quadros, nos poucos meses na presidência da República, realizou um governo conservador. Nesse sentido, nada de surpreendente. Mas uma única atitude dele foi extremamente negativa para o processo democrático brasileiro: a renúncia. Com o ato, ele desacreditou o sistema democrático, as eleições, os partidos políticos e todo o sistema representativo. Mais ainda, ele apostou na crise institucional, pois sabia que a posse do vice-presidente criaria graves conflitos políticos no país. Jânio apostou no que poderia acontecer de pior no sistema político brasileiro: o colapso das instituições democráticas.

IHU On-Line – Quais eram os bens simbólicos que estavam em jogo na disputa pela autoridade e legitimidade política durante a Campanha da Legalidade?
Jorge Ferreira – O que estava em jogo, em termos simbólicos, era o significado de democracia. Para os conservadores e direitistas, Goulart e o Partido Trabalhista Brasileiro mantinham diálogo constante com os trabalhadores e o movimento sindical. Para o conservadorismo político brasileiro, a participação do movimento sindical na política era uma ameaça às instituições democráticas. As notas dos ministros militares e os pronunciamentos de Carlos Lacerda são claros nesse sentido. Democracia, nessa concepção, era uma prática elitista que excluía os trabalhadores da participação política. Daí o perigo que a posse de Jango representava. Para as esquerdas e amplas parcelas da população, democrático era manter os fundamentos da Constituição de 1946.

IHU On-Line – Quem foi o grande mito político da Campanha da Legalidade?
Jorge Ferreira – Em termos políticos, sem dúvida Leonel Brizola saiu do episódio com a imagem engrandecida. No governo do Rio Grande do Sul, ele havia adquirido a admiração das esquerdas e dos nacionalistas com o projeto desenvolvimentista e a escolarização em massa. Seu prestígio cresceu ainda mais quando nacionalizou duas empresas norte-americanas. Lembro que estatizar multinacionais era o grande programa das esquerdas latino-americanas. Mas com o destemor que enfrentou os ministros militares na Campanha da Legalidade, Brizola alcançou prestígio político difícil de ser mensurado. Ao se candidatar como deputado federal pela Guanabara, obteve votação extraordinária. A partir daí, ele aglutinaria diversas esquerdas sob a Frente de Mobilização Popular, radicalizando cada vez mais à esquerda.

IHU On-Line – Em que medida a Campanha da Legalidade influenciou no cenário que constituiu o golpe militar, três anos mais tarde?
Jorge Ferreira – É muito curioso que a sociedade brasileira, tão ciosa da democracia e da legalidade em agosto/setembro de 1961, tenha assistido, praticamente de braços cruzados, à marcha de recrutas do general Mourão em março de 1964. A Campanha da Legalidade traduz seus próprios propósitos: a manutenção da ordem legal, a preservação do sistema político, o cumprimento da Constituição. Essas bandeiras mobilizaram a sociedade brasileira: em 1961, a luta era pela defesa da ordem constitucional vigente. Nesse sentido, as esquerdas, os setores progressistas e democráticos infligiram grande derrota aos golpistas e direitistas. Em 1964, o movimento das esquerdas foi outro. A luta não era pela defesa da Constituição, mas pela implantação de reformas. Reformas que necessitariam de revisão constitucional – para viabilizar, por exemplo, a reforma agrária. As direitas, Carlos Lacerda em particular, de maneira hipócrita, defenderam o lema de que “a Constituição é intocável”. As direitas aprenderam com os acontecimentos de 1961.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Trinta anos atrás hoje: o dia em que a classe média morreu - por Michael Moore (Opera Mundi)

De tempos em tempos, alguém com menos de 30 anos irá me perguntar: “Quando tudo isso começou, o deslizamento da América ladeira abaixo?”. Eles dizem que ouviram falar de um tempo em que o povo trabalhador podia criar uma família e enviar as crianças à faculdade com a renda de um só dos pais (e que as faculdades em estados como Califórnia e Nova York eram quase gratuitas). De um tempo em que quem quisesse ter um trabalho remunerado decente o teria; em que as pessoas só trabalhavam cinco dias por semana e oito horas por dia, tinham todo o fim de semana de folga e as férias pagas todo verão. Que muitos empregos eram sindicalizados, de empacotadores em supermercados ao cara que pintava sua casa, e isso significava que não importava qual o seu trabalho, pois, por menos qualificado que fosse, lhe daria as garantias de uma aposentadoria, aumentos eventuais, seguro saúde e alguém para defendê-lo se fosse tratado injustamente.

As pessoas jovens têm ouvido a respeito desse tempo mítico – só que não é mito, foi real. E quando eles perguntam: “quando tudo isso acabou?”, eu digo: terminou neste dia: 5 de agosto de 1981.

A partir desta data, 30 anos atrás, o Grande Negócio e a Direita decidiram “botar para quebrar” – para ver se poderiam de fato destruir a classe média, e assim se tornarem mais ricos.

E eles se deram bem.

Em 5 de agosto de 1981, o presidente Ronald Reagan atacou todos os membros do sindicato dos controladores de vôo [PATCO – sigla em inglês], que tinha desafiado sua ordem de retornarem ao trabalho e declarou seu sindicato ilegal. Eles estavam de greve há apenas dois dias.

Foi um movimento forte e audacioso. Ninguém jamais tinha tentado isso. O que o tornou ainda mais forte foi o fato de que o PATCO foi um dos dois únicos sindicatos que tinha apoiado Reagan para presidente! Isso gerou uma onda de pânico nos trabalhadores ao longo do país. Se ele fez isso com as pessoas que votaram nele, o que fará conosco?

Reagan foi apoiado por Wall Street na sua corrida para a Casa Branca e eles, junto à direita cristã, queriam reestruturar a América e mudar a direção da tendência inaugurada pelo presidente Franklin D. Roosevelt – uma tendência concebida para tornar a vida melhor para o trabalhador comum. Os ricos odiavam pagar salários melhores e arcarem com os custos dos benefícios sociais. E eles odiavam ainda mais pagar impostos. E desprezavam os sindicatos. A direita cristã odiava qualquer coisa que soasse como socialismo ou que defendesse o reconhecimento de minorias ou mulheres.

Reagan prometeu acabar com tudo. Assim, quando os controladores de tráfego aéreo entraram em greve, ele aproveitou o momento. Ao se livrar de todos eles e jogar seu sindicato na ilegalidade, ele enviou uma clara e forte mensagem: os dias de todos com uma vida confortável de classe média acabaram. A América, a partir de agora, será comandada da seguinte maneira:

* Os super-ricos vão fazer muito, mas muito mais dinheiro e o resto de vocês vai se digladiar pelas migalhas deixadas pelo caminho.

* Todos devem trabalhar! Mãe, Pai, os adolescentes, na casa! Pai, você trabalha num segundo emprego! Crianças, aqui estão as suas chaves para vocês voltarem para casa sozinhas! Seus pais devem estar em casa na hora de pô-los para dormir.

* 50 milhões de vocês devem ficar sem seguro de saúde! E para metade das companhias de seguro: vão em frente e decidam quem vocês querem ajudar – ou não.

* Os sindicatos são maus! Você não será sindicalizado! Você não precisa de um advogado! Cale a boca e volte para o trabalho! Não, você não pode ir embora agora, não terminamos ainda. Suas crianças podem fazer seu próprio jantar.

* Você quer ir para a faculdade? Sem problemas – assine aqui e fique empenhado num banco pelos próximos 20 anos!

*O que é “aumento”? Volte ao trabalho e cale a boca!

E por aí vai. Mas Reagan não poderia ter levado tudo isso a cabo sozinho, em 1981. Ele teve uma grande ajuda: a AFL-CIO

A maior central sindical dos EUA disse aos seus membros para furarem a greve dos controladores de tráfego aéreo e irem trabalhar. E foi só o que esses membros do sindicato fizeram. Pilotos sindicalizados, comissários de bordo, motoristas de caminhão, operadores de bagagens – todos eles furaram a greve e ajudaram a quebra-la. E os membros do sindicato de todas as categorias furaram os piquetes ao voltarem a voar.

Reagan e Wall Street não podiam crer nos seus olhos! Centenas de milhares de trabalhadores e membros dos sindicatos apoiando a demissão de companheiros sindicalizados. Foi um presente de natal em Agosto para as corporações da América.

E isso foi só o começo. Reagan e os Republicanos sabiam que poderiam fazer o que quisessem, e o fizeram. Eles cortaram os impostos para os ricos. Tornaram a sua vida mais dura, caso quisesse abrir um sindicato no seu local de trabalho. Eliminaram normas de segurança do trabalho. Ignoraram as leis contra o monopólio e permitiram que milhares de empresas se fusionassem ou fossem compradas e fechassem as portas. As corporações congelaram os salários e ameaçaram mudar de país se os trabalhadores não aceitassem receber menos e com menos benefícios. E quando os trabalhadores concordaram em trabalhar por menos, eles exportaram os empregos mesmo assim.

E a cada passo dado nesse caminho, a maioria dos americanos estavam juntos, apoiando-os. Houve pouca oposição ou contra-ataque. As “massas” não se levantaram e protegeram os seus empregos, suas moradias e escolas (os quais costumavam ser os melhores do mundo). Simplesmente aceitaram seu destino e tomaram porrada.

Eu sempre me pergunto o que teria ocorrido se eles tivessem parado de voar, ponto, em 1981. E se todos os sindicatos tivessem dito a Reagan “Dê a esses controladores de voo os seus empregos de volta ou eles derrubarão o país”? Você sabe o que teria acontecido. A elite das corporações e seu boy, Reagan, teriam se dobrado.

Mas nós não fizemos isso. E assim, passo a passo, peça por peça, nos 30 anos seguintes aqueles que estiveram no poder destruíram a classe média em nosso país e, em troca, arruinaram o futuro de nossa juventude. Os salários permaneceram estagnados por 30 anos. Dê uma olhada nas estatísticas e você poderá ver que todo o declínio que estamos sofrendo agora teve seu início em 1981 (eis aqui http://www.youtube.com/watch?v=vvVAPsn3Fpk uma pequena cena para ilustrar essa história, do meu filme mais recente).

Tudo isso começou neste dia, há 30 anos. Um dos dias mais obscuros na história dos EUA. E nós deixamos que isso ocorresse a nós. Sim, eles tinham o dinheiro e a mídia e as corporações. Mas nós tínhamos 200 milhões de nós. Você já se perguntou o que seria se 200 milhões tivessem se enfurecido e quisessem seu país, sua vida, seu emprego, seu fim de semana, seu tempo com suas crianças de volta?

Nós todos simplesmente desistimos? O que estamos esperando? Esqueça os 20% que apoiam o Tea Party – nós somos os outros 80%! Esse declínio só vai terminar quando exigirmos isso. E não por meio de uma petição online ou de uma twittada. Teremos de desligar as tevês e os computadores e os videogames e tomar as ruas (como o fizeram no Wisconsin). Alguns de vocês precisam sair dos seus gabinetes de trabalho local no próximo ano. Precisamos exigir que os democratas tenham coragem e parem de receber dinheiro de corporações – ou as deixem de lado.

Quando será suficiente, o suficiente? O sonho da classe média não reaparecerá magicamente. O plano de Wall Street é claro: a América deve ser uma nação dos que têm e dos que nada têm. Isso está bem para você?

Por que não aproveitar este momento para parar e pensar a respeito dos pequenos passos que você pode dar pela sua vizinhança e em seu local de trabalho, em sua escola? Há algum outro dia melhor para começar a fazer isso, que não seja hoje?

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Onde estava você no golpe militar? - por Emir Sader (Carta Maior)

Os países costumam ter momentos fundamentais, em que se decidem os seus destinos. Nesses momentos cada pessoa, cada força política, cada meio de comunicação, todos, revelam suas posições profundas, os interesses que defendem, de que lado estão. O golpe militar de 1964 foi esse momento decisivo na história do Brasil, quando a democracia foi questionada e finalmente derrubada e destruída por uma ditadura militar.

Daí que faz todo sentido perguntar para cada um: Onde estava você no golpe militar?

Havia dois discursos, antagônicos. Um, o da defesa da democracia e extensão das suas conquistas, com a incorporação de setores cada vez mais amplos aos seus direitos fundamentais. A favor da extensão da democratização do Brasil – da sociedade e do seu Estado.

O outro, assumido por toda a mídia, junto com os partidos de oposição e o governo dos EUA, era de que os riscos à democracia que representaria o governo de Jango, justificariam um golpe militar preventivo. Argumento típico da guerra fria, que mobilizou forças contra a democracia, promovendo golpes militares em muitos países do continente. Foi exatamente o que aconteceu no Brasil.

“Nas palavras do presidente (sic) Castello Branco proferidas na solenidade de posse há uma nítida convocação para que a obra de reconstrução se faça com a colaboração indistinta de todas as classes, das produtoras e das trabalhadoras, das armadas e das civis, das eventualmente saudosistas do antigo regime e das que se regozijaram com a sua deposição.” O ditador é tratado, no título do editorial, como: “O Presidente de todos”, pelo jornal dos otavinhos. A manchete do dia do golpe – primeiro de abril – foi: “Ademar: 6 estados sublevam-se para derrubar Goulart.” Nenhuma menção à palavra golpe, menos ainda a ditadura e à intervenção dos militares, aliados com o grande empresariado, com os partidos de oposição, com a hierarquia da Igreja Católica e com o governo dos EUA.

Nesse momento crucial da nossa história, que mudou a nossa história de forma tão radical na direção da ditadura contra a democracia, de um modelo econômico excludente contra a inclusão social, pela aliança subordinada com os EUA contra a soberania nacional – nesse momento, cada um mostrou sua cara, disse de que lado está. Do lado da democracia ou da ditadura, dos interesses nacionais ou do entreguismo, da inclusão social ou da exclusão social.

É fácil, depois que a resistência popular derrubou a ditadura, tergiversar com a palavra democracia, esconder o passado, tentar embaralhas as coisas, para buscar impedir que se recorde onde estava cada um no dia primeiro de abril. Mas tudo está consignado pela história. O editorial mencionado acima é apenas um dessa empresa e de todas as outras – à exceção da Última Hora, que por isso mesmo não sobreviveu -, de apoio e incentivo ao golpe e à instauração da ditadura militar. Que venham a publico desmentir ou se arrependerem, se consideram que cometeram o pior erro que se pode cometer, de atentado grave e reiterado á democracia.

Todos os que estivemos do lado de cá, de defesa da democracia, não temos nada a esconder, nos orgulhamos disso e seguimos coerentes com essa luta. Estávamos, no primeiro de abril, e seguimos estando, do lado da democracia, dos interesses populares e nacionais.

O tempo exausto (1) - por Mauro Santayana (Jornal do Brasil)

Em todos os séculos houve a percepção de que o mundo chegava a seu fim, com a extinção da vida na Terra, como castigo divino ou inevitável cataclismo. Mas a vida, essa inexplicável rebelião da matéria, que encontra sua perfeição e perversão na existência do homem, consegue impor-se. O preço da sobrevivência é o conflito. Desde que o registro da vida da espécie existe, a existência tem sido a crônica da resistência contra as forças naturais, os outros seres biológicos, feras, bactérias e vírus, e, sobretudo, contra parcelas da própria espécie.

Há uma tese, presente em vários pensadores, e de forma difusa, que explica o conflito básico do homem entre o predador e o solidário. O instinto de caça e de destruição, enfim, de canibalismo direto ou sutil, só consegue ser combatido pela inteligência. A inteligência conduziu o homem a se ver como ser frágil e precário que só poderia sobreviver em comunhão com os outros, multiplicando a força individual, certo de que sua proteção dependia da vida do companheiro. Mas houve o momento em que essa mesma inteligência, que indicava a solidariedade como necessária à existência individual e coletiva, passou a servir ao instinto predador. Ora o homem é o lobo do homem, na definição de Plauto, ora o homem é o anjo do homem, como ocorre, quase todos os dias, no heroísmo de pessoas simples, que chegam a morrer para salvar a vida de outras. Os homens são construtores de sua História. E a História, não obstante a presunção de alguns acadêmicos parvos, como Fukuyama, nunca chegará a seu fim – a menos que o Sol esfrie de repente ou de repente estoure, na impaciência de seus gases comprimidos.

O tempo histórico de vez em quando entra em exaustão. São momentos, que podem durar décadas ou séculos, em que os ritos essenciais da vida são perturbados pelas superestruturas da sociedade, e o indivíduo redescobre a solidariedade, aquele sentimento de que a sua sobrevivência (e sua autonomia como ente, ou aquele que é) só pode ser defendida se contar com o outro. Nesses momentos, para o bem – e, algumas vezes, para o mal – surgem as grandes mudanças, com novas normas de convivência da espécie. Embora possam identificar-se como religiosas ou étnicas, são necessariamente políticas, porque se referem à vida prática dos seres humanos.

Ontem, Londres entrava em seu terceiro dia de tumultos urbanos. Não é a primeira vez que isso ocorre. Além dos protestos sangrentos de Brixton, de há trinta anos, a cidade conheceu o conflito brutal de 1780, em que centenas de católicos foram massacrados pelos protestantes açulados por Lord George Gordon. Vivendo como cidadãos de segunda classe, desde Henrique VIII, os católicos recuperaram sua cidadania de acordo com o Catholic Relief Act, de 1778. Gordon, um nobre frustrado em sua tentativa de fazer carreira no Almirantado, encontrou sua chance para a demagogia, mobilizando os protestantes contra a lei e os levando a queimar propriedades de católicos e a assassiná-los em plena rua. Antes de ser condenado à prisão por rebeldia, Gordon se converteu ao judaísmo. Acabou morrendo na prisão de Newgate.

Há uma diferença entre as agitações urbanas e as revoluções. Como resumia um autor inconveniente, Lenine, sem teoria revolucionária não há revolução. Jean Tulard, um dos melhores historiadores contemporâneos, é seguro quando afirma que as rebeliões populares podem ser facilmente vencidas, seja pela repressão policial, seja pelo engodo por parte do poder. As revoluções necessitam de um esforço intelectual poderoso, de líderes que pensem uma nova ordem e a imponham no exercício da razão. Esses líderes podem surgir no desenvolvimento natural das rebeliões, como ocorreu na França de 1789, depois da Queda da Bastilha, ou em demoradas e pacientes carreiras políticas.

Londres repete, com a mesma impaciência, o que está ocorrendo em várias partes do mundo, e parece provável que virá a ocorrer nas regiões ainda preservadas. O tempo, e nele, os homens, parecem exaustos do modelo da sociedade contemporânea, baseado na competitividade, na voracidade do consumo e do lucro. É uma sociedade contraditória. De um lado, a aplicação tecnológica das descobertas científicas torna a vida mais confortável e mais durável, mas não parece que isso responda aos anseios mais profundos da espécie. E, ainda pior: a tecnologia torna a crueldade mais organizada e mais eficaz. O nazismo foi a mais perfeita utilização da tecnologia para o assassinato em massa de toda a História. Os norte-americanos os repetem, desde a Guerra do Golfo, no Oriente Médio.

Como em outras épocas, a civilização se encontra diante de uma ruptura. O sistema econômico, submetido ao domínio do capital financeiro, entra em crises sucessivas, com a criminosa especulação dos operadores no mercado de capitais. Os indignados, com razões maiores ou menores, se multiplicam. A internet substitui – é outra das surpresas da tecnologia – os agitadores de rua, na condução dos protestos. Falta apenas a ideologia, a que se referem, entre outros, Lenine e Tulard.

Comentário
1.500 postagens neste blog, o mais prolífico dos três. Nada mal.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O abandono da base política - por Luis Nassif

Não estão claros, ainda, os movimentos políticos da presidenta Dilma Rousseff.

Em breve ela começará a enfrentar uma oposição inédita das centrais sindicais. O afastamento da Força Sindical é apenas um primeiro sinal. O sinal mais preocupante será da CUT e dos sindicatos filiados a ela. A continuar a dinâmica política atual, é questão de tempo.

Começou com estranhamento, em função da aproximação de Dilma de seus antigos adversários. Continuou com mágoas, pelo que consideram falta de atenção continuada. E está transbordando para raiva.

Um preço que o governo Dilma estará pagando de graça.

Movimentos iniciais

Ela foi eleita por uma base de apoio dos sindicatos, movimentos sociais, blogosfera, base criada por Lula e ampliada pela adesão de grandes grupos e da classe média satisfeita com os rumos da economia.

Teve por adversários, ferozes, o tea party de José Serra, a chamada opinião pública midiática, embalados pela velha mídia, manipulando preconceitos, espalhando boatos, recorrendo a um denuncismo inédito na moderna história política brasileira - similar ao modelo Rupert Murdoch.

Foi uma guerra épica, que deixou mortos e feridos de lado a lado.

Eleita, tendo a maior base de apoio parlamentar que um presidente já dispôs, tratou de se aproximar dos adversários e de reduzir a fervura política - no que agiu corretamente. Tem que investir em ser a presidente de todos os brasileiros.

Aí avançou o sinal.

Para mostrar que não era a "terrível" Dilma retratada pela mídia, afastou-se dos sindicatos. O Plano Brasil Maior, lançado ontem, conseguiu apresentar um pacto de competitividade do qual as centrais sindicais sequer participaram.

É um retrocesso inédito. Nem Fernando Collor foi tão longe. Com toda resistência que provocava nos trabalhadores, ensaiou o primeiro pacto produtivo da história brasileira, com as câmaras setoriais da indústria automobilística, conduzidas pela Ministra Dorothea Werneck, Lá, pela primeira vez - vindo de um governo ferozmente liberalizante - se concluía que a preservação da produção nacional era de interesse direto de empresários e trabalhadores.

A detente abriu espaço para programas de qualidade, para diversos pactos ao longo dos anos 90 que modernizaram as relações trabalhistas no país.

Denúncias e denuncismo

Dilma não apenas se distanciou dos sindicatos, mas passou a endossar denúncias da velha mídia.

É evidente que denúncias fundamentadas precisam ser apuradas e as distorções resolvidas. Mas há maneiras e maneiras. Há informações de investigações em curso na Polícia Federal que justificariam a razia ocorrida no Ministério dos Transportes. Em vez de uma ação objetiva, discreta e fulminante - que carcaterizaria uma vitória do governo - permitiu-se um show midiático que vai estimular a volta do denuncismo.

A lógica é simples. As denúncias fazem as primeiras vítimas - mas num alarido que pega gregos e troianos nas mesmas acusações. Depois, abre espaço para o festival de mágoas dos demitidos. O ápice de uma denúncia midiática é a demissão do acusado. O jornalismo brasiliense vive em função de dois sonhos: derrubar autoridades (primeiro secretários, depois ministros até o auge de presidentes) e pacotes econômicos.

Ontem o Jornal Nacional dedicou maior tempo ao desabafo do ex-Ministro Alfredo Nascimento do que ao Plano Brasil Maior. Na sua última edição, Veja abriu amplo espaço a um sujeito demitido da Conab por corrupção explícita, para que pudesse "denunciar" seus colegas que o demitiram, sem a necessidade de apresentar provas. Época enceta uma campanha contra a Agência Nacional de Petroleo em cima de informações que lhe foram passadas pela própria ANP dois anos atrás.

A comunicação do governo está restrita ao mundo das sucursais brasilienses; os contatos de Dilma com o mundo das associações empresariais - que tem e devem ser consultadas, mas não com exclusividade.

O que parecia um movimento tático - de se aproximar dos adversários e diminuir a fervura - a cada dia que passa ganha contorno de mudança estrutural do leque de alianças. Correta ou não, é essa a percepção cada vez mais forte em setores sindicais e do leque de aliados da campanha de 2010.

Lula costumava caçoar da ingenuidade do "Palocinho" (como o chamava), que sempre acreditava que ganharia o título de sócio remido do clube principal.

No final do ano passado, Palocci garantiu a Lula que Veja estaria preparando uma edição finalmente reconhecendo os méritos de seu governo. Na semana anunciada, a capa em todas as bancas: "O governo mais corrupto da história".

A Globo vai partir pra cima de Amorim: isso prova que Dilma escolheu bem! - por Rodrigo Vianna (Escrevinhador)

Acabo de receber a informação, de uma fonte que trabalha na TV Globo: a ordem da direção da emissora é partir para cima de Celso Amorim, novo ministro da Defesa.

O jornalista, com quem conversei há pouco por telefone, estava indignado: “é cada vez mais desanimador fazer jornalismo aqui”. Disse-me que a orientação é muito clara: os pauteiros devem buscar entrevistados – para o JN, Jornal da Globo e Bom dia Brasil – que comprovem a tese de que a escolha de Celso Amorim vai gerar “turbulência” no meio militar. Os repórteres já recebem a pauta assim, direcionada: o texto final das reportagens deve seguir essa linha. Não há escolha.

Trata-se do velho jornalismo praticado na gestão de Ali Kamel: as “reportagens” devem comprovar as teses que partem da direção.

Foi assim em 2005, quando Kamel queria provar que o “Mensalão” era “o maior escândalo da história republicana”. Quem, a exemplo do então comentarista Franklin Martins, dizia que o “mensalão” era algo a ser provado foi riscado do mapa. Franklin acabou demitido no início de 2006, pouco antes de a campanha eleitoral começar.

No episódio dos “aloprados” e do delegado Bruno, em 2006, foi a mesma coisa. Quem, a exemplo desse escrevinhador e de outros colegas na redação da Globo em São Paulo, ousou questionar (“ok, vamos cobrir a história dos aloprados, mas seria interessante mostrar ao público o outro lado – afinal, o que havia contra Serra no tal dossiê que os aloprados queriam comprar dos Vedoin?”) foi colocado na geladeira. Pior que isso: Ali Kamel e os amigos dele queriam que os jornalistas aderissem a um abaixo-assinado escrito pela direção da emissora, para “defender” a cobertura eleitoral feita pela Globo. Esse escrevinhador, Azenha e o editor Marco Aurélio (que hoje mantem o blog “Doladodelá”) recusamo-nos a assinar. O resultado: demissão.

Agora, passada a lua-de-mel com Dilma, a ordem na Globo é partir pra cima. Eliane Cantanhêde também vai ajudar, com os comentários na “Globo News”. É o que me avisa a fonte. “Fique atento aos comentários dela; está ali para provar a tese de que Amorim gera instabilidade militar, e de que o governo Dilma não tem comando”.

Detalhe: eu não liguei para o colega jornalista. Foi ele quem me telefonou: “rapaz, eu não tenho blog para contar o que estou vendo aqui, está cada vez pior o clima na Globo.”

A questão é: esses ataques vão dar certo? Creio que não. Dilma saiu-se muito bem nas trocas de ministros. A velha mídia está desesperada porque Dilma agora parece encaminhar seu governo para uma agenda mais próxima do lulismo (por mais que, pra isso, tenha tido que se livrar de nomes que Lula deixou pra ela – contradições da vida real).

Nada disso surpreende, na verdade.

O que surpreendeu foi ver Dilma na tentativa de se aproximar dessa gente no primeiro semestre. Alguém vendeu à presidenta a idéia de que “era chegada a hora da distensão”. Faltou combinar com os russos.

A realidade, essa danada, com suas contradições, encarregou-se de livrar Dilma de Palocci, Jobim e de certa turma do PR. Acho que aos poucos a realidade também vai indicar à presidenta quem são os verdadeiros aliados. Os “pragmáticos” da esquerda enxergam nas demissões de ministros um “risco” para o governo. Risco de turbulência, risco de Dilma sofrer ataques cada vez mais violentos sem contar agora com as “pontes” (Palocci e Jobim eram parte dessas pontes) com a velha mídia (que comanda a oposição).

Vejo de outra forma. Turbulência e ataques não são risco. São parte da política.

Ao livrar-se de Jobim (que vai mudar para São Paulo, e deve ter o papel de alinhar parcela do PMDB com o demo-tucanismo) e nomear Celso Amorim, Dilma fez uma escolha. Será atacada por isso. Atacada por quem? Pela direita, que detesta Amorim.

Amorim foi a prova – bem-sucedida – de que a política subserviente de FHC estava errada. O Brasil, com Amorim, abandonou a ALCA, alinhou-se com o sul, e só cresceu no Mundo por causa disso.
Amorim é detestado pelos méritos dele. Ou seja: apanhar porque nomeou Amorim é ótimo!
Como disse um leitor no twitter: “Demóstenes, Álvaro Dias e Reinaldo Azevedo atacam o Celso Amorim; isso prova que Dilma acertou na escolha”.

Não se governa sem turbulência. Amorim é um diplomata. Dizer que ele não pode comandar a Defesa porque “diplomatas não sabem fazer a guerra” (como li num jornal hoje) é patético.

O Brasil precisa pensar sua estratégia de Defesa de forma cada vez mais independente. É isso que assusta a velha mídia – acostumada a ver o Brasil como sócio menor e bem-comportado dos EUA. Amorim não é nenhum incendiário de esquerda. Mas é um nacionalista. É um homem que fala muitas línguas, conhece o mundo todo. Mas segue a ser profundamente brasileiro. E a gostar do Brasil.

O mundo será, nos próximos anos, cada vez mais turbulento. EUA caminham para crise profunda na economia. Europa também caminha para o colapso. Para salvar suas economias, precisam inundar nosso crescente mercado consumidor com os produtos que não conseguem vender nos países deles. O Brasil precisa se defender disso. A defesa começa por medidas cambiais, por política industrial que proteja nosso mercado. Dilma já deu os primeiros passos nessa direção.

Mas o Brasil – com seus aliados do Cone Sul, Argentina à frente - não será respeitado só porque tem mercado consumidor forte, diversidade cultural e instituições democráticas. Precisamos, sim, reequipar nossas forças armadas. Precisamos fabricar aviões, armas. Precisamos terminar o projeto do submarino com propulsão nuclear.

Não se trata de “bravata” militarista. Trata-se do mundo real. A maioria absoluta dos militares brasileiros – que gostam do nosso país – não vai dar ouvidos para Elianes e Alis; vai dar apoio a Celso Amorim na Defesa, assim que perceber que ele é um nacionalista moderado, que pode ajudar a transformar o Brasil em gente grande, também na área de Defesa.

O resto é choro de anões que povoam o parlamento e as redações da velha mídia.

Comentário
Coitados dos anões, serem comparados a tais seres!

Falando sério, sem-querer-querendo a Dilma vai tirando as chagas de seu ministério.
Como um todo o governo é muito aquém do que poderia. Porém, neste ponto, a presidente escolheu muito bem. Celso Amorim é um grande brasileiro.
Ponto para o governo (é bom destacar, já que são tão poucos).