terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O movimento Occupy Wall Street e os democratas de Obama - por Andrew Levine (Counter Punch - blog do Nassif)

O que representa o Occupy Wall Street

Nassif, traduzi o texto abaixo. Veja se lhe apraz. Os trechos em colchetes são inserções minhas com o objetivo de introduzir clareza em algumas passagens. O elo para o original está no fim.Do Counter Punch
Não se trata apenas de justiça

O movimento Occupy Wall Street e os democratas de Obama - por Andrew Levine

A justiça igualitária (ou justeza) tem sido o tópico número um para filósofos políticos desde até antes de 1971, quando John Rawls publicou seu monumental Uma teoria da justiça. Rawls é amplamente aclamado como o mais importante filósofo político em língua inglesa desde John Stuart Mill. Se esta avaliação resistirá o teste do tempo não nos cabe dizer, mas não se questiona que, nas últimas quatro décadas, sua influência nos círculos acadêmicos não encontra rival. Seria justo dizer que, como resultado, temos hoje uma compreensão mais profunda do que antes sobre o que está envolvido nos conceitos de justiça e eqüidade e por que esses conceitos importam. Seria igualmente justo dizer que esses avanços [em nosso entendimento do tema] não tiveram impacto político algum no mundo real.

Na medida em que a visão filosófica de Rawls reflete uma orientação política, ela se classifica como social-democrata, embora com um matiz estadunidense – conseqüência do acordo liberal do New Deal e as aspirações dos democratas de inclinação esquerdista (mas, infelizmente, também pró-imperialista e anticomunista no espírito da Guerra Fria) do período que vai da presidência de Truman à Grande Sociedade de Lyndon Johnson e além. Em outras palavras, ela representava uma orientação política que já começava a se esvanecer da política do mundo real exatamente quando se tornava hegemônica nos círculos acadêmicos.

A partir dos anos oitenta, o trabalho de Rawls passou a se concentrar tanto em questões de legitimidade política e da teoria da democracia quanto no domínio da justiça igualitária, e novamente ele atraiu outras mentes para sua seara. Essa mudança de curso tão somente ampliou o abismo entre a teoria acadêmica e a política do mundo real. A diferença entre as duas se torna particularmente gritante no que diz respeito às salvaguardas que protegem os direitos e liberdades básicos. Rawls e seus condiscípulos consistentemente propugnavam posições à esquerda daquelas promovidas pela Suprema Corte comparativamente liberal da era Earl Warren, exatamente quando aquele terceiro poder retornava ao seu papel tradicional e hoje firmemente enraizado de defensor de interesses da elite e de legitimador de condutas políticas antidemocráticas e guiadas pelo dinheiro.

Será possível que, graças ao movimento Occupy Wall Street, essa situação assaz anômala – em que um modo de pensar que floresce numa instituição ideológica de escol, a universidade, não encontra quase qualquer eco na cultura política convencional – esteja prestes a mudar? Será possível que um senso de urgência em prol de uma justiça igualitária esteja a se apossar da consciência coletiva dos “99%”? Eu ousaria dizer que sim; que algo semelhante àquilo que Rawl tinha em mente parece estar se metamorfoseando em algo semelhante àquilo que Marx tinha em mente quando ele falou sobre a consciência que se torna uma “força material”.

Isto seria um acontecimento auspicioso, ainda mais agora. Uma exposição filosoficamente educada e liberal-igualitária da justiça e da igualdade, combinada com investigações empíricas consistentes com essa perspectiva, pode iluminar e aprofundar as intuições, do contrário confusas, sobre justiça e igualdade que vicejam em círculos liberais. Nesse sentido, ela pode fornecer uma teoria para a prática dos movimentos Occupy.

Porém, deveríamos ter cuidado para não levar esta teoria ao pé da letra, em vista do fato de que ela, como tantas coisas mais em nossa cultura intelectual, é dissociada de um entendimento mais profundo do contexto econômico, social e político em cujo seio nascem as intuições a que ela dá expressão teórica. As transformações fundamentais que parecem estar em curso não podem ser explicadas apenas em se apontar as desigualdades indefensáveis que, em maior ou menor grau, sempre houve em nosso meio. Por que a percepção dessas desigualdades se torna um fator de importância política apenas agora? A resposta não é difícil de discernir, ao menos em termos gerais: a ascensão e a trajetória do movimento a partir de agora respondem a acontecimentos inerentes à natureza do capitalismo de hoje.

Pode ser difícil apreender este último fato porque, em décadas recentes, as instituições que moldam a consciência popular em grande medida lograram êxito em ocultar a natureza problemática do capitalismo em nosso período histórico e em implantar a idéia de que não há alternativa factível ou desejável a ele. Também têm culpa por este cenário os igualitaristas liberais, a despeito de apoiarem a igualdade; apesar de que, verdade seja dita, questões de economia política, embora nunca trazidas para o cerne da discussão, não foram inteiramente ignoradas em Uma teoria da justiça ou em parte da literatura crítica a que o livro deu origem décadas atrás.

Pelo fato de estarem em falta as ferramentas conceituais necessárias para contextualizar a assertiva de que as desigualdades econômicas estão se tornando profundamente injustas, não é surpresa que, quando os ativistas do Occupy tentam se explicar, eles às vezes se concentrem apenas na injustiça do sistema em vigor sem referência à estrutura econômica que gera essas desigualdades. O que é surpreendente, e também animador, é que eles não o façam com mais freqüência; que, ao contrário, as estórias pessoais geralmente tenham precedência sobre condenações morais de alcance universal. Tal comportamento é característico de esforços para tomada de consciência e é completamente adequado.

E também é sábio. Mais ou menos ao mesmo tempo em que a filosofia política Rawlsiana se tornou hegemônica em círculos acadêmicos, uma inclinação para abordar questões políticas pelo prisma ético também surgiu. Em parte, isso foi uma conseqüência tardia e equivocada de demandas estudantis por “relevância”. Porém, quaisquer que fossem as intenções daqueles que apregoavam a virada ética e “progressista” da academia, ela também foi um meio de dissipar a turbulência política do período precedente.

Na melhor das hipóteses, a abordagem ética ignora o principal; mais freqüentemente, ela disfarça o que é essencialmente uma posição política, e a apresenta de um modo inautêntico que induz a erro. Concentrar-se apenas nas questões éticas levantadas pelo movimento Occupy faz as duas coisas. Essa abordagem pode ser benigna. E, na medida em que gera um bem-vindo engajamento político, ela pode trazer benefícios. Contudo, mesmo quando traz, ela obscurece o que realmente está em jogo, e isso vai provavelmente exercer um efeito debilitante à medida que o movimento se expande e se aprofunda.

O perigo potencial se torna especialmente evidente quando os eticistas insistem que as ocupações nada têm que ver com o que eles, em coro com os defensores do 1%, jocosamente chamam de “conflito de classes”. É revelador que, em seu discurso muito elogiado de Osawotomie, Kansas, o “populista” redivivo Barack Obama tenha adotado essa linha ao invocar o espírito do Square Deal* de Teddy Roosevelt. É um tributo aos movimentos Occupy que Obama tenha considerado tal linha oportuna. Todavia, deveria servir igualmente de aviso àqueles que se concentram apenas na injustiça das desigualdades que nos afligem, e não estendem a ênfase às suas causas subjacentes; em outras palavras, àqueles que pegam leve com o capitalismo.

*Nota do tradutor: já se perguntou por que o New Deal de Franklin Roosevelt era New? Eu jamais me perguntara, mas agora descobri que foi porque houvera um “old” Deal, proposto por seu primo distante, Theodore. O Square Deal, segundo a Wikipedia, se assentava sobre três pilares: conservação do meio ambiente, controle das corporações e proteção ao consumidor.

* * *

É interessante observar como a equipe de Obama abandonou as referências a Franklin Roosevelt de há quatro anos, e agora tenta grudar-se em seu parente distante, Teddy.

Teddy Roosevelt era um imperialista e militarista descarado; Obama é tudo isso também, embora tal comportamento pareça ser contrário a sua natureza. Ele é, portanto, menos ostensivo e mais discreto do que TR, que não era nada menos do que um entusiasta da guerra e do destino imperial reservado aos Estados Unidos. Obama não é um cavaleiro calejado em carga ligeira montanha acima nas colinas de San Juan das regiões produtoras de petróleo deste mundo – ele deixa esse serviço para os conscritos econômicos que ele põe em perigo ou terceiriza a tarefa para mercenários que a ninguém respondem. E os “grandes bastões” que ele carrega – e que brande a qualquer oportunidade! – são aeronaves não tripuladas de controle remoto. Porém, essas diferenças são mais de estilo que de substância, e têm que ver principalmente com as diferenças entre um poder imperial em ascensão de há cem anos e o que hoje está em declínio.

É digno de nota que, no curso de seu mandato, Roosevelt era visto com bons olhos no exterior, e que Obama ainda é. De fato, no caso de ambos os presidentes, a diferença entre reputação e realidade é tão extrema que ambos venceram prêmios Nobel da paz. No caso de TR, pode-se argumentar que o prêmio foi merecido, pois ele de fato ajudou a mediar um fim à guerra russo-japonesa de 1905. Obama ganhou seu prêmio exatamente quando estava mudando o rótulo de uma das guerras de Bush, intensificando outra, e dando início ou aprofundando sabe-se lá quantos mais “conflitos de (mais) baixa intensidade” de sua própria lavra.

Mas as políticas domésticas de TR são outra história. O Square Deal tratava de desfazer trustes, de conservação ambiental e de regular o capitalismo selvagem. Tem-se a impressão que Obama se sente mais à vontade com este aspecto do legado de TR, mas tudo que ele faz nessa seara é falar pelos cotovelos; ou isso, ou sugerir algumas iniciativas a contragosto apenas para recuar assim que os republicanos ou democratas conservadores façam objeções. Roosevelt realmente era um progressista e, como tal, um inimigo de várias formas de capitalismo, embora não do próprio em si. Obama se prostra perante capitalistas. Que ele não tenha sido escorraçado debaixo de risadas do auditório onde TR um dia defendeu seu Square Deal indica quanto mais de tomada de consciência resta por acontecer.

Ainda mais perturbadora foi a reação dos comentaristas liberais ao discurso de Obama em Osawotomie. Será possível que eles ainda estejam tão comprometidos com apoiar os democratas qual líderes de torcida que não tomaram conhecimento dos últimos três anos e meio ou, para falar a verdade, do que está acontecendo diante de seus olhos? Quem poderia imaginar que palavras eloqüentes ainda poderiam cativar a equipe jornalística do noticiário noturno da MSNBC? “Engane-me uma vez”, diz o ditado, “e se envergonhe disso; engane-me uma segunda vez, e eu é que devo me envergonhar.” Os ocupantes entendem a situação bem demais para caírem nessa esparrela. Já os comentaristas semeadores de pânico e as pessoas que eles assustam com a demonstração de quão lunáticos os republicanos são e quão retrógrada é sua base eleitoral, esses são outra história.

Portanto, muito obrigado, Secretária Kathleen Sebelius da Saúde e dos Serviços Humanos, por anular a decisão de tua própria Administração de Alimentos e Drogas (FDA, em inglês) de vender contraceptivos de emergência sem receita. Muito obrigado, uma pinóia, porque, como bem sabes, o mal que causaste é muito maior que o bem de enfiar um pouco de bom senso de volta às cabeças dos comentaristas liberais. Porém, obrigado mesmo assim. Não é apenas o fato de que atendeste ao eleitorado republicano ainda antes que o bafo quente de Obama se dissipasse em Osawotomie. De uma forma que lembrou a capitulação recente do próprio Obama em sua iniciativa de controle de smog, ajudaste-o a irritar seus mais ardentes apoiadores de novo, ao mesmo tempo em que deliberadamente renegaste as políticas expressas de sua administração e sua presumida determinação de deixar que a ciência a guiasse.

E muito obrigado, também, Barack Obama, por fazer coro gratuitamente em apoio a este ultraje com sofismas desonestos sobre a possibilidade de que meninas de onze anos causassem dano a si próprias. É de se admirar de liberais que, após mais essa, ainda sejam lenientes com Obama.

* * *

Ainda antes de Osawotomie, já era evidente que a maioria dos apelos à justiça ou à justeza, hoje, não vêm dos aderentes do movimento Occupy, mas de democratas determinados a cooptar aquele movimento e recrutá-lo em prol da reeleição de Obama.

O pronunciamento de Obama em Osawotomie expandiu um pouco o escopo dos temas inclusos no discurso político, mas ainda persiste o estado original em que, em sua maioria, quando os democratas dizem que algo não é justo, o que eles têm em mente é apenas que os superricos não pagam impostos o bastante. Este é um lado de um “debate” notavelmente raso, mas altamente polarizado, em que o outro lado alega que taxar os que estão bem de vida é dar um tiro no próprio pé – porque os ricos são “geradores de empregos” que precisam poder ficar com tanto quanto for possível da receita e da riqueza que obtêm do mercado, de modo que a prosperidade “escorra” para baixo e beneficie a todos.

Merece menção o fato de que as propostas tributárias que os democratas defendem não são sequer aproximações tênues daquilo que a justiça Rawlsiana exige; elas dificilmente sequer contariam como redistributivas. Elas se resumem apenas a fazer que aqueles que têm lucrado como bandidos nas décadas recentes sejam taxados um pouco mais do que atualmente – talvez de volta aos níveis da era Clinton, mas certamente não àqueles dos dias em que os republicanos ainda gostavam de Ike [Eisenhower].

Para igualitaristas liberais, a taxação redistributiva deveria ter por meta a igualdade exceto na medida em que as desigualdades aumentem a porção que vai para os menos remediados – como talvez ocorra se houver incentivos tributários ao aumento das contribuições produtivas à economia. O argumento principal de Rawls era que isto é o que implica o entendimento prevalente da justiça como justeza. Se ele estava certo, a novidade ainda não chegou ao Partido Democrata.

Conclui-se, portanto, que ou os filósofos interpretaram o mundo de forma tremendamente errada ou os democratas não estão sequer minimamente interessados em mudá-lo. Não é óbvio qual das duas opções é correta? E assim, é tão difícil enxergar que quando os democratas falam de justiça, eles apenas disfarçam suas reais, e muito políticas, intenções?

Obama e seus sequazes querem tributos modestamente mais elevados que incidam sobre os ocupantes do topo da pirâmide de distribuição de renda como forma de legitimar o próprio regime que o movimento Occupy implicitamente (e cada vez mais explicitamente) opõe. Eles acham que podem atingir esse objetivo apenas limando algumas arestas. Nenhuma aresta poderia ser mais áspera do que o passe (quase) livre que foi dado ao 1% que abocanha 25% da receita do país e controla mais de 40% de sua riqueza; ou a quase-imunidade de taxação de que gozam as corporações e instituições financeiras cujo comportamento predatório causou a Grande Recessão [iniciada em 2008] e que, sendo “grandes demais para quebrar”, foram resgatados com dinheiro do contribuinte. O completo ultraje que essa situação representa pode não ser suficiente para enfurecer os cidadãos pertencentes ao “eleitorado pró-valores” que a administração Obama ainda está evidentemente tentando cortejar, mas ofende flagrantemente os sentimentos democráticos dos 99% cujo apoio, ou ao menos cuja aquiescência, é indispensável para manter intocado o status quo.

É relevante que tanto os democratas como os republicanos também pareçam achar que a ordem do dia atualmente é pagar a dívida federal. Que haja um consenso sobre uma postura tão espetacularmente burra exige uma explicação. Note o leitor primeiro, porém, que, rigorosamente, essa convicção deveria atuar em favor do campo que pretende taxar os ricos. Que os democratas ainda não tenham obtido uma vitória clara e cristalina nesse debate para o qual eles tentam desesperadamente canalizar a percepção das falhas do sistema que ajudam a sustentar confirma a eficácia continuada dos mecanismos ideológicos que moldam a forma como se travam as lutas políticas nos Estados Unidos e, é claro, confirma as propensões características do partido que Obama encarna e conduz, repetidas vezes, a capitular primeiro e culpar o outro lado depois.

* * *

Republicanos têm menos necessidade de disfarçar seus objetivos porque, após três décadas em que eles conseguiram que as coisas fossem ao seu modo e com oposição apenas simbólica [dos democratas], os ambiciosos que ainda (mal e mal) comandam o Grande Venerável Partido [GOP, Grand Old Party, como o Partido Republicano é conhecido nos EUA] e os (ligeiramente) menos afortunados membros do 1% que se identificam com eles se tornaram autoconfiantes demais para se importarem, enquanto as hordas de inocentes úteis que eles alistaram para a sua causa são tão devotadas a valores culturais retrógrados e ignorância nativista* que tampouco se importam.

*Nota do tradutor: ignorância nativista traduz o neologismo know-nothingism, uma alusão ao movimento conservador know-nothing do século XIX, marcado pela intolerância e anti-intelectualismo. Seus membros, quando confrontados em argumentação, adotavam o lema “I know nothing” (Eu nada sei). E não, o movimento não tinha inspiração socrática, caso alguém esteja se perguntando.

Porém, ainda há republicanos que, de tempos em tempos, sentem uma necessidade de se justificar, e nem todos eles vão tão longe como o primeiro colocado presidencial do dia, Newt Gingrich, em exemplificar o velho dito de que “quanto menos eles sabem, menos eles se dão conta disso”*. Alguns deles, principalmente estudantes nota C como o muito celebrado Paul Ryan, são apaixonados pelo charlatanismo crasso** da pseudofilósofa Ayn Rand. Porém, há também alguns estudantes nota A, mais notavelmente o filósofo Robert Nozick, que engendraram suas próprias teorias da justiça. Nozick não era um republicano dedicado; ele era apolítico. Ironicamente, no entanto, suas opiniões tiveram mais impacto no mundo real do que as de Rawls, ao menos até agora.

*The less they know, the less they know it. Entendo que se refira a uma situação em que uma pessoa é tão ignorante que não tem noção de tudo que ignora.

**Traduzi como charlatanismo crasso o sintagma inane nostrums. Inane é simples, mas nostrum significa “receita, fórmula, esquema”, com a conotação pejorativa de uma solução mal-ajambrada que não resolve coisa alguma. Por isso, estabeleci a comparação com os remédios vendidos por charlatões.

A descrição de justiça feita por Nozick ressuscitou as defesas, que jaziam adormecidas, que John Locke fez dos direitos de propriedade e das transações de mercado. Os argumentos de Nozick eram inteligentes o bastante para que filósofos políticos de todas as estirpes os considerassem cativantes, e não apenas para propósitos pedagógicos. Ainda assim, a influência de Nozick nos círculos acadêmicos foi limitada e mormente desagradável. Porém, pelo fato de que suas obras realmente parecem suprir um racional para minimizar o poder do estado e taxar os ricos o menos possível, parte de seu conteúdo vazou para o discurso convencional.

Entretanto, a despeito daquilo que supõe a maioria dos libertários, as implicações políticas das teorias da justiça lockeanas estão longe de serem claras. O que Nozick defendia era o capitalismo limpo – em que a propriedade é adquirida e transferida por meios que não violam quaisquer dos direitos que Locke e seus seguidores consideravam invioláveis. O capitalismo real tal como existe hoje não guarda a menor semelhança com esse ideal. Portanto, ainda que a defesa por Nozick da propriedade privada e dos mercados pudesse ser sustentada – o que, eu me arriscaria a dizer, ela não pode – nada do que se seguiria justifica as distribuições geradas pelo mercado que ocorrem no mundo real. As implicações de teorias da justiça neolockeanas são, na melhor das hipóteses, indeterminadas.

É por isso que os estudantes nota B que povoam os centros de políticas públicas da direita e que, portanto, influenciam a formulação de políticas dos republicanos usualmente defendem as desigualdades existentes com base na assertiva de que mecanismos de mercado os produziram e que mercados sempre acertam, desde que os governos não interfiram com a forma como operam.

Na medida em que eles têm motivos para abraçarem tal ponto de vista, estes são inferidos das descrições, por economistas neoclássicos, de como teorias abstratas de mercado operam quando um conjunto de condições impraticáveis (ausência de assimetrias de informação, de economias de escala, de distorções de preços provocadas por monopólios, e por aí vai) é atingido. De acordo com a teoria subjacente, mercados livres – incluindo mercados de futuros para quaisquer instrumentos financeiros que qualquer um possa querer adquirir – acabam por atingir estados de equilíbrio em que a fração distributiva de cada agente econômico reflete com precisão sua própria contribuição produtiva. Nesse sentido, as distribuições do mercado seriam justas. (Elas também atingem, em teoria, eficiência máxima, de acordo com uma definição de eficiência que tem apenas uma relação distante com o que a palavra significa em bom português, mas que confere credibilidade à conjetura de Adam Smith sobre as conseqüências benéficas da “mão invisível” de um mercado livre de qualquer obstáculo.) Contudo, mais uma vez, esses resultados só se aplicam a modelos abstratos de economias que têm tão pouco que ver com o mundo real quanto o capitalismo limpo de Nozick.

Defesas de arranjos de mercado baseados em justiça são racionalizações para posturas adotadas em nome de outras causas, não-racionais; e não propriamente motivos para se ter determinada convicção. Nesse sentido, elas são como teologia. Há uns novecentos anos, Santo Anselmo descreveu como “fé à procura de entendimento” o célebre e impenetrável argumento que criara para estabelecer a existência de Deus. Tal caracterização é também adequada para os teólogos pró-mercado de hoje, embora estes sejam geralmente menos cientes do que Anselmo no tocante ao rumo cognitivo de suas próprias empreitadas esotéricas.

* * *

Para esses ideólogos, a fé que eles defendem se resume a nada mais ilustre do que um apoio à ganância sem limites do 1%. Trata-se de uma empreitada tão tola quanto tentar provar que Deus existe, mas há um mercado para ambas as tolices. Há uma demanda especialmente alta por essa teologia de mercado nos dias que correm porque os plutocratas agora precisam de todo o apoio ideológico que conseguirem angariar – na medida em que, ao contrário de há trinta anos, seus interesses e os de todo mundo mais entraram em flagrante conflito.

Por uma conjunção de fatores fortuita e não reprodutível, foi possível, por cerca de três décadas após a Segunda Guerra Mundial, que aspirações democráticas (com “d” minúsculo) coexistissem em relativa harmonia com os requisitos do desenvolvimento em moldes capitalistas, e que um capitalismo em franca expansão melhorasse as condições de vida de muita gente, ainda que de modo algum de todos. Isso foi uma anomalia histórica; o capitalismo e a democracia normalmente não se bicam – não apenas porque um sistema baseado na propriedade privada e nos arranjos de mercado afasta a esfera econômica do controle popular, mas também porque o controle popular ameaça o domínio que os capitalistas exercem sobre os recursos produtivos; e ameaça o poder dos capitalistas.

Entre meados e o fim da década de 70, havia se esgotado a era de expansão capitalista que tornou possível arregimentar os menos favorecidos e, portanto, que a desigualdade diminuísse e uma aparência de justeza parecesse atingível. Todas as economias capitalistas desenvolvidas então entraram num período prolongado em que, por motivos políticos, a tensão inerente foi disfarçada por uma variedade de artifícios – principalmente pelo endividamento público e privado. Essas manobras evasivas foram, ao cabo, insustentáveis, como se vê hoje. Elas também aumentaram o poder político e econômico daqueles no topo de uma distribuição de renda cada vez mais desigual, ao mesmo tempo em que diminuiu enormemente o poder daquelas instituições, especialmente os sindicatos, que haviam impulsionado a justiça e a democracia nos período pós-guerra.

Agora parece que não restam panacéias, não importam quanto se precise delas para que tudo fique como está. Certamente, aquelas que seguraram a tampa da panela por tanto tempo se encontram completamente exaustas. Assim, encontramo-nos onde o Occupy Wall Street diz que estamos: os 99%, lutando para melhorar a vida de quase todo mundo, e o 1% a usar seu considerável poder – e nosso sistema político progressivamente disfuncional – para manter os primeiros no andar de baixo e assim ter maior chance de manter o que possui. É disso que se trata o movimento bipartidário – na verdade, assim ocorre em todo o mundo – rumo à austeridade.

Então, sim, de fato, as crescentes desigualdades que nos cercam são intoleravelmente injustas; e sim, as ocupações, e não o circo eleitoral que se aproxima, é que correspondem àquilo que se reconhece como democracia. Contudo, isso não é a história completa, ou mesmo a parte principal. O Occupy Wall Street é, ou está se tornando, o principal foco de luta de classes política em nosso tempo; e o que está em jogo é, ao cabo e ao fim, nada menos que o futuro do próprio capitalismo. Se nosso futuro, o futuro dos 99%, finalmente mudar de curso e para melhor, urge que a percepção de tudo isso tenha o alcance devido e que, junto com a consciência do fracasso moral das desigualdades que nos afligem, ela também se torne uma força material nos anos vindouros.

ANDREW LEVINE é acadêmico sênior no Institute for Policy Studies (Instituto de Estudos de Políticas Públicas), e suas obras mais recente foram THE AMERICAN IDEOLOGY (A ideologia estadunidense; Editora Routledge) e POLITICAL KEY WORDS (Palavras-chaves políticas; Editora Blackwell), assim como muitos outros livros e artigos em filosofia política. Ele foi professor de filosofia na Universidade de Wisconsin-Madison e professor-pesquisador de filosofia na Universidade de Maryland-College Park. Ele contribuiu para o livro Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion (Sem esperança: Barack Obama e a política da ilusão), prestes a sair pela Editora AK Press.

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Nota final: escolhi justiça e justeza, respectivamente, para traduzir justice e fairness. Filosoficamente a diferença é sutil, e se eu soubesse explicar a contento em poucas linhas, eu seria exegeta de John Rawls, autor que não li. Porém, arrisco-me a dizer que justice corresponde à expressão formal – leis e regulamentos – das condutas aceitáveis por uma sociedade. Fairness, ao contrário, corresponderia àquilo que atende aos postulados de não-maleficência e bem comum. Pelo que entendi, Rawls afirma que a harmonia social só existe se os dois conceitos se equivalerem. Quem quiser que me corrija.

http://www.counterpunch.org/2011/12/13/its-not-only-about-justice/print

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