segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Sessenta anos depois - por Mino Carta (CartaCapital)

"O petróleo é nosso". Esta batalha os vetustos donos do poder perderam.
Foto: José Vieira Trovão / Ag. Petrobras

Há 60 anos, estudante de Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, cheguei a me sentir pessoalmente atingido pelos editoriais dos jornalões. Mania de grandeza, a minha. A velha e sempre nova academia tornara-se um centro importante das manifestações que agitavam o País consciente à sombra do lema “O Petróleo É Nosso”. Bandeira altiva e justa, desfraldada na perspectiva de um futuro que imaginávamos muito próximo. A mídia reagia enfurecida, clamava contra tamanho atrevimento, forma tola de nacionalismo a ignorar a nossa incompetência e nossos compromissos internacionais.

Os jornalões mastigavam fel diante de um duplo desafio: contra as irmãs do petróleo e, pior ainda, contra o império americano em plena Guerra Fria, contra aquele Tio Sam chamado pelo Altíssimo a nos defender da ameaça marxista-leninista. Era a irredutível vocação de súdito-capacho pronunciada com a pompa do estilo cartorial, próprio dos editoriais daquele tempo, e deste até.

Nos jornais de hoje leio que a direção da Petrobras foi trocada pela presidenta Dilma, insatisfeita com a gestão e determinada a controlar mais de perto o desempenho da estatal. Onde será que os perdigueiros das redações colhem informações? Antes de incomodar meus pacientes botões, anoto a observação de um amigo: “Na própria reunião de pauta”. Ou seja, antes de sair a campo, o perdigueiro sabe, pela ordem da chefia, o que haverá de contar aos amáveis leitores.

Da boca de Lula já ouvi a seguinte consideração: “Se o presidente da República conta no máximo com oito anos de mandato, por que o diretor de uma estatal deveria ter mais?” A troca da guarda na Petrobras estava decidida há tempo, mas a presidenta Dilma não tem motivo algum de insatisfação a respeito da gestão de José Sergio Gabrielli. É do conhecimento até do mundo mineral que, sob o comando de Gabrielli, o valor de mercado da Petrobras fermentou de 14 bilhões de dólares para 160, o pré-sal foi descoberto e o Brasil tornou-se o 11º produtor de petróleo do mundo. Segundo The Economist, por essa trilha chega a quinto até 2020.

As pedras sabem também que Dilma Rousseff, depois de ocupar a pasta de Minas e Energias no primeiro mandato de Lula, ao assumir a Casa Civil passou a acumular a presidência do Conselho de Administração da Petrobras e manteve estreita ligação com Gabrielli. Talvez a mídia nativa continue aquém do mundo mineral. Reconheça-se, contudo, a sua coerência. Ao longo dos últimos 60 anos, o petróleo ficou claramente nosso e a Petrobras tornou-se uma realidade empolgante, mas a mídia não mudou. Em relação a estas questões, a sua contrariedade se mantém, além de transparente, patética.

Por 60 anos a fio, os barões do jornalismo não perderam a oportunidade de tomar o partido do Tio Sam e das irmãs do petróleo até ensaiar a revanche ao propor a privatização da nossa estatal. Devemos atribuir a um milagre o fato de que Fernando Henrique não tenha atendido aos insistentes, poderosos pedidos. Certo é que a tentação o roçou perigosamente. Quem sabe caiba um agradecimento especial a Nossa Senhora Aparecida se os editorialões acabaram por cair no vazio.


Agrada-me recordar 1952 e aquele fervor juvenil. Ali nasceu a Petrobras com a chancela de Getúlio Vargas, figura contraditória de estadista manchada pelo período ditatorial e valorizada pela visão do futuro, partilhada, por exemplo, pela juventude do Largo de São Francisco. Getúlio era então o presidente eleito, empenhado em firmar os caminhos da industrialização inaugurados por obras como Volta Redonda, as Leis do Trabalho, a criação do salário mínimo. A imprensa só enxergava então os riscos da mudança, ameaça para tudo aquilo que representava. A Petrobras seria mais um pecado getulista, a ser pago, juntamente com os demais, pelo tiro que ecoou no Catete na manhã de um dia de agosto de 1954. Ocorre-me que o desespero do suicida tenha aflorado com prepotência ao perceber a resistência insana dos vetustos donos do poder e ao imaginar por isso um futuro bem mais distante do que esperavam os moços do Largo.

domingo, 29 de janeiro de 2012

A justiça e a tragédia de Pinheirinhos

Primeiro, a insensibilidade, a arrogância, e o despreparo da juíza tucana, um dos maiores exemplos da vergonha que é o judiciário brasileiro:


Depois, o que de fato aconteceu (e ela preferiu fingir que não aconteceu):


Não os perdoem: eles sabem o que fazem! - por Gerivaldo Neiva (Blog do Frederico Vasconcelos)

Ao povo do Pinheirinho!

Para o governador, a culpa é da Justiça.

Para toda imprensa, a Justiça determinou, mandou, decidiu, despejou...

Para o Juiz que assinou a ordem, cumpriu-se a Lei e basta: Dura lex sede lex!

Para catedráticos cheirando a mofo, o Estado de Direito triunfou!

Para o Coronel que comandou, ordens são ordens!

Para o soldado que marchou sobre os iguais, idem!

Ei, Justiça, cadê você que não responde e aceita impassível tantos absurdos?

Não percebes o que estão fazendo com teu nome santo?

Em teu nome, atiram, ferem, tiram a casa e roubam os sonhos e nada dizes?

Tira esta venda, vai!

Veja o que estão fazendo em teu nome! Revolte-se!

E o pior dos absurdos: estão dizendo teus os atos do Juiz e do Poder que ele representa!

Vais continuar impassível?

E mais absurdos: estão te transformando em merdas de leis.

Acorda, vai!

Chama o povo, chama o Direito das ruas e todos os oprimidos do mundo e brada bem alto:
- Não blasfemem mais com meu nome! Não sou o arbítrio e nem a ganância! Não sou violenta, nem cínica e nem hipócrita! Não sou o poder, nem leis, nem sentenças e nem acórdãos de merda!
Diz mais, vai! Brada mais alto ainda:

- Eu sou o sonho, sou a utopia, sou o justo, sou a força que alimenta a vida, sou pão, sou emprego, sou moradia digna, sou educação de qualidade, sou saúde para todos, sou meio ambiente equilibrado, sou cultura, sou alegria, sou prazer, sou liberdade, sou a esperança de uma sociedade livre, justa e solidária e de uma nação fundada na cidadania e dignidade da pessoa humana.

Diz mais, vai! Conforta-nos:

- Creiam em mim. Um dia ainda estaremos juntos. Deixarei de ser o horizonte inatingível para reinar no meio de vós! Creiam em mim. Apesar da lei, do Poder Judiciário e das sentenças dos juízes, creiam em mim e não perdoem jamais os que matam e roubam os sonhos em meu nome, pois eles sabem o que fazem!

Gerivaldo Neiva é Juiz de Direito (BA), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD)


O último escárnio no Pinheirinho e o refrão da banda Legião Urbana - por Wálter Fanganiello Maierovitch (Terra Magazine)

Nos EUA, cerca de 40 estados-federados escolhem, pelo voto, os seus magistrados e os seus promotores de justiça.

Os juízes federais e os procuradores federais norte-americanos são escolhidos pelo presidente da República e entram na função depois de aprovação pelo Senado. Idem com relação aos procuradores.

O sistema tem a lógica democrática, pois o juiz é órgão do poder, cujo detentor é o povo. O sistema europeu, que me parece melhor, mistura magistrados concursados publicamente e jurados leigos.

No Brasil, os juízes são concursados, exceção aos que ingressam pelo chamado quinto-constitucional (advogados de notório saber e reputação ilibada e membros do Ministério Público), os escolhidos para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e os participantes do Tribunal do Júri, que julgam apenas os crimes dolosos contra a vida.

Mas uma coisa é certa e incontestável. Qualquer que seja o sistema — americano, europeu ou brasileiro —, um juiz, ao julgar ou dar liminares, atua como representante do povo.

Ontem, um espetáculo grotesco e inusitado foi protagonizado pelo Judiciário no chamado bairro do Pinheirinho. A juíza que concedeu reintegração — precipitadamente, pois não exauriu a via conciliatória nem exigiu dos poderes públicos uma responsável solução para alojar os despojados de suas residências — recebeu, no local e solenemente, o mandado cumprido pela tropa de choque da Polícia Militar.

Essa conduta é inusitada no Judiciário. Como regra, os mandados judiciais cumpridos são comunicados por ofício protocolado no Fórum. E os juízes os recebem pela mão do escrivão ou juntados em autos processuais.

Faltou, lógico, um fundo musical. Com a banda Legião Urbana a perguntar: Que país é esse?

Sim, que país é esse que a Justiça, que decide em nome do cidadão, joga o povo ao léu.

Com efeito. Ontem foi concluída a reintegração na posse, determinada por ordem judicial da 6ª Vara da comarca de São José dos Campos, no chamado bairro Pinheirinho, com 1,3 milhão de metros quadrados de área ocupada por cerca 6 mil moradores desde 2004.

A reintegração deu-se em favor da massa falida da Selecta Comércio e Indústria S/A, uma holding administrada, até a quebra em 2004, pelo megaespeculador Naji Nahas.

Naji Nahas jamais foi condenado pela Justiça brasileira. A propósito de alguns escândalos noticiados pela imprensa, Nahas não foi responsabilizado criminalmente quando acusado de quase quebrar a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Preso preventivamente, beneficiou-se da liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes em favor do banqueiro Daniel Dantas. E também da decisão, ainda não definitiva, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que anulou a Operação Satiagraha: uma anulação fundada na canhestra conclusão da participação, ainda que burocrática, de agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Contra essa decisão anulatória votaram os ministros Gilson Dipp e Laurita Vaz.

Com a reintegração de posse concluída, restará prejudicado, pela perda de objetivo, o pedido feito ao Supremo Tribunal Federal (STF) de suspensão da operação militar conduzida pela tropa de choque da Polícia Militar de São Paulo e com cerca de 1.500 famílias sem ter onde ir. Mais ainda, a liminar foi indeferida pelo presidente Peluso, do STF.

Como se nota, não houve tempo oportuno para ser apreciado, em sede liminar e pelo STF, o pedido de suspensão da reintegração. Em São Paulo, a decisão foi mantida e o ministro presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) — já acusado de assédio moral a estagiário e de fazer lobby para garantir uma cadeira no STJ para a sua cunhada — entendeu não ser da Justiça federal a competência para suspender a reintegração. Essa decisão de Ari Pargendler foi dada liminarmente, quando a Polícia Militar desalojava, com bombas, balas de borrachas e cães, os moradores do Pinheirinho.

Juntamente com a ação da Polícia Militar, máquinas cuidaram da derrubada de casas de alvenaria e de madeira que abrigaram os antigos moradores e residentes há mais de 8 anos na área.

Num grotesco espetáculo mostrado pelas televisões, a juíza responsável pela decisão de reintegração compareceu ao Pinheirinho para receber, solenemente, a notícia do cumprimento do mandado judicial.

Agora a área esta pronta para ser vendida e a sobra vai para o bolso dos sócios da Selecta, ou seja, de Naji Nahas. Os créditos trabalhistas, que podem já ter sido negociados por valor irrisório, serão quitados. Idem os especiais, que vão para os cofres da Prefeitura de São José dos Campos.

O prefeito de São José dos Campos, cuja insensibilidade chegou a ponto de não se preocupar em alojar as famílias tiradas violentamente do Pinheirinho, vai ter um bom caixa para promover o populismo. Enquanto isso, com o ritmo de "lesma reumática", o governador Geraldo Alckmin afirma que cuidará de verbas para a locação de casas aos expulsos do Pinheirinho, pois não existem casas populares disponíveis. Os radicais do PSTU, que apostavam numa tragédia maior, certamente contabilizam futuros ganhos eleitorais.

Pano rápido. "QUE PAÍS É ESSE ?"

Wálter Fanganiello Maierovitch

Comentário
Eu ainda queria postar aqui o "e-mail explicativo" da polícia militar paulista sobre o desastre ocorrido para rebatê-lo, porém, sinceramente, falta-me estômago. 
Por fim, então, vai uma bela exposição do Ricardo Boechat:
http://www.divshare.com/download/16651684-faa

Já falamos sobre isso - e é ótimo para Israel que o mundo não pare de falar sobre “Irã nuclear” - por Robert Fisk (The Independent)

É muito difícil, no jornalismo, voltar atrás na história – e raras vezes pode ser mais difícil que voltar atrás na história, no caso do Irã. Irã, a sombria ameaça da revolução islâmica. Irã xiita, protetor e manipulador do Mundo do Terror, da Síria, Líbano, Hamás e Hezbollah. Ahmadinejad, o Califa Louco. E, claro, Irã Nuclear, preparando-se para destruir Israel numa nuvem-cogumelo de ódio antissemita. Irã pronto a fechar o Estreito de Ormuz – no instante que forças ocidentais (ou de Israel) ataquem.

Dada a natureza do regime teocrático e a repressão à oposição em 2009, para não falar dos vastíssimos campos de petróleo, qualquer tentativa de injetar algum senso comum na cobertura precisa vir com alerta do ministério da saúde: “NÃO, a vida não é possível no Irã.” Mas...

Examinemos a versão israelense, segundo a qual, apesar de repetidas provas de que os serviços de inteligência israelenses são no mínimo tão eficientes quanto os sírios, continua a ser repetidamente trombeteada pelos amigos de Israel em todo o mundo – nenhum deles mais subserviente que os jornalistas ocidentais. O presidente de Israel avisa que o Irã está às vésperas de produzir sua bomba atômica. Que Deus nos proteja. Sim. Mas nenhum jornalista escreve que Shimon Peres, então primeiro-ministro de Israel, disse exatamente as mesmas palavras em 1996. Há 16 anos. E ninguém tampouco escreve que o atual primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu disse, em 1992, que o Irã teria sua bomba atômica em 1999. Deveria tê-la tido há 13 anos. Sempre a mesma velha história.

A verdade é que ninguém sabe se o Irã está ou não está construindo a bomba atômica. E, depois do Iraque, chega a ser engraçado ver que as velhas armas de destruição em massa voltam a pipocar com a mesma frequência com que pipocavam denúncias sobre o titânico inexistente arsenal de Saddam. Para nem falar da questão das datas. Quando tudo isso começou? O Xá. O Xá queria poder nuclear. Chegou a dizer que queria sua bomba “porque EUA e URSS têm bomba atômica” e ninguém reclamou. Os europeus correram a satisfazer o desejo do Xá. Quem construiu o reator nuclear em Bushehr foi a empresa Siemens – não alguma Rússia.

Aiatolá Khomeini
E quando o aiatolá Khomeini, Terror do Ocidente, Apóstolo da Revolução Xiita etc., assumiu o poder no Irã em 1979, imediatamente ordenou que todo o projeto nuclear fosse cancelado, porque era “obra do demônio”. Só quando Saddam invadiu o Irã – com nossas bênçãos ocidentais – e pôs-se a matar iranianos com gás venenoso (feito de componentes químicos que o ocidente lhe fornecia, é claro) foi possível convencer Khomeini a reiniciar o programa nuclear do Irã.

Tudo isso foi apagado dos registros históricos; quem inventou o programa nuclear foram os mulás de turbante negro, associados a Ahmadinejad, o doido. E Israel está obrigada a destruir essa arma terrorista para salvar-se da destruição, para salvar o ocidente da destruição, para salvar a democracia etc. etc.

Para os palestinos na Cisjordânia, Israel é potência brutal, colonial, ocupante. Mas no momento em que se fala do Irã, a Israel brutal, colonial, ocupante é convertida em pequeno estado frágil, vulnerável, pacífico, que enfrenta iminente ameaça de extinção. Ahmadinejad – e aqui, mais uma vez, são palavras de Netanyahu – é mais perigoso que Hitler. Todo o arsenal de bombas atômicas de Israel – absolutamente reais e existentes estimadas hoje em quase 300 – some da cobertura jornalística. Os Guardas Revolucionários do Irã estão ajudando o regime sírio a destruir a oposição. Talvez estejam. Mas até hoje ninguém viu disso uma prova sequer.

O problema central é que o Irã venceu praticamente todas as suas guerras recentes, sem precisar disparar um tiro. George W & Tony destruíram o arqui-inimigo do Irã, o Iraque. Mataram milhares do exército sunita ao qual o Irã referia-se como “o Talibã negro”. E os árabes do Golfo, nossos amigos “moderados”, tremem de medo em suas mesquitas douradas, quando nós, no ocidente, pintamos o quadro de seu destino no caso de uma revolução iraniana xiita.

Não surpreende que Cameron continue a vender armas a essa gente repugnante cujos exércitos, em todos os casos, mal conseguem operar fogões de quatro bocas, imaginem se saberão operar as sofisticadas armas aladas de bilhões de dólares que nós lhes empurramos goela abaixo, sob a sombra do medo de Teerã.

Que venham as sanções. Convoquem também os palhaços


Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O horror e a opção preferencial contra os pobres – por Maria Inês Nassif (Carta Maior)

É o horror. Nada mais precisa ser dito para descrever a operação de despejo de Pinheirinho, em São José dos Campos, e a ação policial contra os usuários de crack no centro da capital, na chamada Cracolândia. Mas existem muitas explicações para a truculência, a desumanidade, a destituição do direito de cidadania aos pobres pelo poder público paulista.

A primeira delas é tão clara que até enrubesce. Nos dois casos, trata-se de espantar o rebotalho urbano de terrenos cobiçados pela especulação imobiliária. O Projeto Nova Luz do prefeito Kassab, que vem a ser a privatização do centro para grandes incorporadoras, vai ser construído sob os escombros da Cracolândia, sem que nenhuma política social tenha sido feita para minorar a miséria ou dar uma opção séria para crianças, adolescentes e adultos que se consomem na droga.

O terreno desocupado com requintes de crueldade em São José dos Campos, de propriedade da massa falida do ex-mega-investidor Naji Nahas, que já era de fato um bairro, vai ser destinado a um grande investimento, certamente. O presente de Natal atrasado para essas populações pobres libera esses territórios antes que terminem os mandatos dos atuais prefeitos, e o mais longe possível do calendário eleitoral. Rapidamente, a prefeitura de São Paulo está derrubando imóveis; a prefeitura de São José não deve demorar para limpar o terreno de Pinheirinho das casas - inclusive de alvenaria - das quais os moradores foram expulsos.

Até outubro, no mínimo devem ter feito uma limpeza na paisagem, o que atenua nas urnas, pelo menos para a classe média, a ação da polícia. A higienização justifica a truculência policial. A "Cidade Limpa" de Kassab, que começou com a proibição de layouts na cidade, termina com a proibição de exposição da pobreza e da miséria humana.

A segunda é de ordem ideológica. Desde a morte de Mário Covas, que ainda conseguia erguer um muro de contenção para o PSDB paulista não guinar completamente à direita, não existe dentro do partido nenhuma resistência ao conservadorismo. Quando Geraldo Alckmin reassumiu o governo do Estado, em janeiro de 2011, muitas análises foram feitas sobre se ele, por força da briga por espaço político com José Serra dentro do partido, iria trazer o seu governo mais para o centro. A referência tomada foi o comando da Segurança Pública, já que em seu mandato anterior a truculência do então secretário, Saulo de Castro Abreu Filho, virou até denúncia contra o governo de São Paulo junto à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos.

O fato de ter mantido Castro fora da Segurança e se aproximado do governo federal, incorporando alguns programas sociais federais, e uma relação nada íntima com o prefeito da capital, deram a impressão, no primeiro ano de governo, que Alckmin havia sido empurrado para o centro. O que não deixava de ser uma ironia: um político que nunca escondeu seu conservadorismo foi deslocado dessa posição por um adversário interno no partido, José Serra, que, vindo da esquerda, tornou-se a expressão máxima do conservadorismo nacional.

Isso não deixa de ser uma lição para a história. Superado o embate interno pela derrota incondicional de José Serra, que desde a sua derrota vinha perdendo terreno no partido e foi relegado à geladeira, depois da publicação de "Privataria Tucana", do jornalista Amaury Ribeiro Júnior, Alckmin volta ao leito. O governador é conservador; o PSDB tornou-se organicamente conservador, depois de oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) e oito anos de posição neoudenista. A polícia é truculenta - e organicamente truculenta, já que traz o modelo militar da ditadura e foi mais do que estimulada nos últimos governos a manter a lei, a ordem e esconder a miséria debaixo do tapete.

O nome de quem faz a gestão da Segurança Pública não interessa: está mais do que claro que passou pelo governador a ordem das invasões na Cracolândia e em Pinheirinho.

Outra análise que deve ser feita é a da banalização da desumanidade. Conforme a sociedade brasileira foi se polarizando politicamente entre PSDB e PT, a questão dos direitos humanos passou a ser tratada como um assunto partidário. O conservadorismo despiu-se de qualquer prurido de defender a ação policial truculenta, de tomar como justiça um Judiciário que, nos recantos do país, tem reiterado um literal apoio à propriedade privada, um total desprezo ao uso social da propriedade e legitimado a ação da polícia contra populações pobres (com nobres exceções, esclareça-se).

Para os porta-vozes desses setores, a polícia, armada, "reage" com inofensivas balas de borracha à agressão dos moradores que jogam pedras perigosíssimas contra escudos enormes da tropa de choque. No caso de Pinheirinho, a repórter Lúcia Rodrigues, que estava na ocupação, na sexta-feira, foi ela própria alvo de duas balas letais, vindas da pistola de um policial municipal. Ela não foi atingida, mas duvida, pela violência que presenciou, das informações de que tenha saído apenas uma pessoa gravemente ferida daquele cenário de guerra.

A luta contra o despejo do Brasil Pinheirinho pode ser uma inspiração (The guardian)

A fotografia se espalhou pelo mundo rapidamente: mostra os moradores do Pinheirinho, favela no estado de São Paulo, vestindo capacetes, escudos e barricadas para resistir a uma ordem de despejo. (…)

Pinheirinho foi ocupado por oito anos, sem nenhum esforço do governo para regularizar a área ou desenvolver uma infra-estrutura adequada. Lar de cerca de 6.000 pessoas, a terra pertence a um fraudador do mercado financeiro, preso em 2008. Estimulado pelo boom imobiliário do Brasil, a administração local tornou-se recentemente ativo na prossecução do despejo, com a cumplicidade de juízes que pareciam querer que isso acontecesse o mais rápido possível.

Depois da primeira imagem do despejo ser divulgada, o governo federal prometeu intervir através da compra de terra e devolvê-la para os ocupantes. Pelos fundamentos expostos, um juiz federal suspendeu o despejo, apenas para ser rapidamente anulado por um outro, que declarou ser uma questão de estado. O Poder Judiciário estadual, em seguida, agiu rápido antes que os advogados dos favelados ‘ pudessem reagir. No domingo, as redes sociais estavam zumbindo com relatos de guerra, como cenas de brutalidade e contos, incluindo a proibição da mídia e bloqueio de celular na área, além de rumores da possível detenção de um deputado federal e um senador que tentaram intervir (mais tarde foi esclarecido que não foram detidos, mas estavam num local fechado, tentando negociar). Até sete mortes foram relatadas, incluindo um bebê, embora nenhum deles confirmado oficialmente até o momento.

Foi principalmente graças aos meios de comunicação social que informações sobre os despejos pôde ser encontrado. No Twitter, a hashtag # Pinheirinho se tornou um top durante um par de horas. Durante todo o dia, a mídia corporativa do Brasil, que tem ligações históricas ao partido no poder [em SP], tanto em nível estadual e local, relatou a história em tons suaves: manchetes destacando uma van incendiada enquanto relevava as casas das pessoas em chamas.

Em lugares como Irã e Egito, a mídia social tem funcionado como uma ferramenta contra o controle estatal da informação. No Brasil, tem ajudado a contornar um monolítico setor de mídia privada, que é sub-regulamentada e altamente concentrada (90% da indústria está nas mãos de 15 famílias). Como outros meios de produção e circulação de informação tornou-se mais facilmente disponíveis, a mídia corporativa do país começou a perder credibilidade. Os meios alternativos foram veementes em sua condenação do Governo do Estado de São Paulo no último domingo, e com razão. Mas em outra parte da esquerda política há indícios de dissimulação.

O quadro mais amplo por trás da história Pinheirinho é boom econômico do Brasil, em que a construção e a propriedade estão jogando um papel crescente. Este processo foi acelerado pelo Brasil ser escolhido como sede da Copa de 2014 e Olimpíadas de 2016. Um dossiê produzido pela Coordenação Nacional de Comitês Mundial estima que cerca de 170.000 pessoas em todo o país serão expulsas devido à eventos esportivos (os números oficiais nunca foram anunciados). Em última análise, significa o estado entregando áreas públicas – aquelas ocupadas pelos pobres -, enquanto contribuintes bancam todo o processo. Talvez o pior caso até agora tenha sido no Rio , onde os despejos têm sido tão autoritários e unilaterais como a do Pinheirinho, espetacularmente militarizados. Em comparação, as vozes na esquerda têm sido muito mais baixas para denunciar isso.

O desenvolvimentismo que caracteriza o governo de esquerda Rousseff, com sua ênfase no crescimento econômico e indicadores quantitativos em vez de participação, proteção ambiental e redistribuição da riqueza, encontra-se em um impasse político. Muitos na esquerda têm encontrado dificuldade para articular uma crítica desses processos. Há agitações que sugerem que isso pode estar mudando, como as campanhas recentes contra a Petrobrás (empresa estatal de petróleo), Vale do Rio Doce (mineração) e construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Eles são pequenos sinais, até agora ainda um pouco isolados, mas pode ser o começo de algo. Se assim for, Pinheirinho poderia revelar-se uma lição, uma acusação e uma inspiração.

Comentário
Triste é ver um jornal conservador como o The Guardian dar simultaneamente uma embasada lição de moral na velha mídia e na esquerda nativa.
Poderíamos dormir sem esta.
E os habitantes de Pinheirinhos poderiam estar dormindo numa casa, claro.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Os verdadeiros bandidos

 "Justiça" sendo feita
Foto: Roosevelt Cassio - Reuters

 Desocupação "pacífica"

 Os defensores da lei
 Jeito tucano de governar
  Quem poderá defendê-las? O Chapolim Colorado?

 Os bandidos fardados
Democracia e paz na veia

É realmente assustador e revoltante que cenas como esta ainda ocorram no Brasil. Como o país almeja ser uma potência se ainda age como se estivesse na idade média? Como pode uma pessoa eleita para representar o povo, como podem, juízes – árbitros de uma lei que deveria, primordialmente, defender o povo – e, finalmente, policiais que deveriam defender o povo permitir que tais atrocidades fossem cometidas?

O que vemos? A “meritíssima” (quanto mérito, meu Deus!) juíza Márcia Mathey Loureiro, meio que parafraseando outra persona non grata do judiciário brasileiro, literalmente, “não se importa com a turba”. Se há famílias, se há um processo de negociação, se o terreno pode ser desapropriado, quem se importa? A senhora Márcia Mathey Loureiro, esta mui sensível juíza, assemelha-se nas atitudes ao axioma do cômico personagem Justo Veríssimo, de Chico Anísio: “Eu quero que pobre se exploda”. Tudo poderia ser evitado se ela tivesse o mínimo de sensibilidade. Mas quem se importa? É a turba, eles que se explodam.
E não é só ela. A senhora Márcia é o próprio resumo do judiciário brasileiro.

 "A meritíssima"

O senhor Alckmin, um sujeito absolutamente despreparado, arrogante, cínico, despudorado, falso cristão, servo da opus dei, este desastre administrativo que só sobrevive eleitoralmente devido ao grande apoio que a mídia paulista lhe provê, tem um quadro bastante claro a sua frente: ou negocia, ou massacra. Qual será a opção (certamente cristã) que ele escolheu?

Havia duas decisões judiciais uma estadual (que ordenava a desocupação) e outra federal (que permitia a permanência das famílias ali alojadas). Ora, se há duas decisões contraditórias da justiça, o que uma pessoa minimamente sensata faria? Esperaria uma decisão final para poder saber como agir.

Mas, se uma “permite” que se massacre e expulse o povo e a outra permite que as famílias permaneçam com residência, qual seria a opção de um governante do PSDB? A resposta todos já sabem.

É incrível que uma pessoa tão ridícula tenha desejado governar o Brasil inteiro.

Ele enganou outros políticos (entre deputados estaduais, federais, senadores e o ministro da cidades), dizendo que não haveria desocupação, que estava negociando e, quando pressionado pelo Eduardo Suplicy enquanto o massacre já ocorria, disse que a desocupação seria pacífica. Deve ser por isto que enviou milhares de policiais para lá.

Um homem de visão

Por fim, os policiais. A polícia foi criada no Brasil, séculos atrás, com um único objetivo: capturar escravos fugidos. Bem, ao menos não podemos dizer que é uma instituição incoerente: sua missão e atuação continuam as mesmas.

Por muitas vezes na minha vida, me ficou claro qual era o caminho correto e o caminho mais fácil. Sem hipocrisia, sempre que consegui discernir o certo do errado, escolhi o aquilo que julgava correto, suportando as consequências daí oriundas. Os policiais que realizaram a desocupação também tiveram a opção de se recusarem a cometer aquelas barbaridades: mas eles preferiram o caminho mais fácil.

Em países desenvolvidos, onde a polícia é – diferentemente da nossa – honesta e eficiente, a população respeita a autoridade policial, tem grande admiração pelos policiais e, através desta confiança mútua, muitos crimes são resolvidos, devido à colaboração da população para a resolução dos delitos - especialmente por ter o respeito e a confiança para dividir as informações com os policiais. Mas como um cidadão de bem pode confiar nos monstros fardados que cometem brutalidades como as das fotos aqui publicadas?
A polícia, muitas vezes, entra em greve e clama apoio da população para sua situação de penúria. Porém, como se compadecer daqueles que, em todas as oportunidades que possuem, massacram o povo do qual fazem parte?
É uma pena que eles sejam tão machos para enfrentarem populares, famílias inteiras, idosos, crianças e mães. Só não o são para enfrentar bandidos – dado o absurdo índice de criminalidade que o país ostenta.

Os hodiernos capitães do mato  

No fim das contas, mais uma vez chego a constatação de que os grandes bandidos, os bandidos de verdade, vestem fardas, togas e ternos.
Mais é desnecessário dizer: é tudo uma lástima.

Nem por esperteza, Alckmin demonstrou sensibilidade – por Luis Nassif

É trágica a maneira como o PSDB joga pela janela oportunidades políticas.

A vulnerabilidade central do partido é a insensibilidade social. Mesmo no bem avaliado governo Aécio Neves, a crítica central era a falta de preocupação social. Em São Paulo, a arrogância administrativa, das decisões de gabinete, sem nenhuma preocupação em ouvir, planejar ações.

Aí o partido reune sua executiva para pensar o futuro. As únicas fontes de pensamento "novo" são financistas, exclusivamente preocupados em vender o peixe do mercado para o partido.

Curiosamente, foi Geraldo Alckmin o primeiro político de peso do PSDB a perceber a emergência de novos valores. Ainda na campanha, mostrou as vantagens de programas tipo "Minha Casa, Minha Vida" sobre o modelo autárquico do CDHU. Entendeu a importância da colaboração federativa. Percebeu a relevância de reduzir o estado de guerra com o professorado, praticar o relacionamento civilizado com prefeitura e lideranças de bairro. Até ensaiou algumas ações administrativas colaborativas, juntando várias secretarias de governo e a prefeitura.

De repente, surge a grande oportunidade: 6.000 pessoas morando em uma área de disputa jurídica. Não são aventureiros, não são invasores forçando a barra para conseguir imóveis para futura negociação. São famílias que se estabeleceram ao longo de anos, criando uma comunidade com velhos, crianças, mulheres, mães e pais de família, que levantaram suas casas em regime de mutirão, firmaram-se nos seus empregos, colocaram suas crianças nas escolas, criaram uma comunidade sem nenhuma ajuda do poder público.

Seria o momento máximo de inaugurar uma nova era. Um governador minimamente competente teria convocado a Secretaria de Assistência Social, o CDHU, a Secretaria da Justiça e da Defesa, a prefeitura de São José dos Campos, grandes empresas instaladas na região para um plano integrado destinado a encontrar uma solução para a comunidade de Pinheirinho.

Não se espere de Alckmin nenhuma sensibilidade social. Só um amorfo moral para ordenar as ações da PM contra famílias indefesas, em nome da ordem - como se estivesse tratando com marginais do PCC. Mas considere-se que, para quem almeja vôos altos, o exercício da esperteza política é fundamental.

Tivesse tratado o caso com um mínimo de esperteza, Alckmin estaria inaugurando um conjunto habitacional. As televisões mostrariam imagens de crianças brincando nas praças do conjunto, velhos se aquecendo ao sol de São José, pais de família voltando para casa e encontrando os seus em segurança. Estudos acadêmicos, no futuro, analisariam uma comunidade viva, com relacionamentos construídos ao longo desses anos, com a solidariedade dos vizinhos de outros bairros, que se auto-organizou ao largo do poder público. E falariam do governador sábio que impediu que essa riqueza social - uma comunidade que se auto-organizou - se perdesse sob os tratores e os cassetetes da polícia.

No entanto, o que se viu foi um festival de fotos trágicas, de mães carregando filhos ao colo, chorando, tendo ao fundo as fogueiras provocadas por governantes imbecis. Fotos de batalhões da PM, com cassetetes, escudos, capacetes, enfrentando famílias com crianças e velhos. E, como defensores das famílias, políticos do PSOL se legitimando junto a uma rapaziada que ainda acredita na responsabilidade social como fator de mobilização política.

Que as fotos das mães e filhos chorando as casas perdidas sejam uma maldição a acompanhar Alckmin pelo resto da vida política.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Na Europa Oriental, saudades do nazismo - por Rafel Poch (Do La Vanguardia | Berlim / Opera Mundi - traduzido pelo blog Outras palavras)

O parlamento da Estônia aprovará em março, com ampla maioria, a concessão do título de “lutadores da liberdade” aos membros da “Legião SS” estoniana que combateu ao lado de Hitler contra os soviéticos, na II Guerra Mundial.

Os veteranos estonianos da SS, aproximadamente 12 mil homens em 1944, há anos glorificam sua participação na guerra, em atos oficiais aos quais convidam ex-SS e jovens neonazistas de outros países. Mas a primeira lei em favor dos “lutadores pela liberdade” será a de março.

Algo parecido acontece na região ocidental da Ucrânia, onde os combatentes da divisão “Galizia” das SS se glorificam de seus atos há anos.

Em Budapeste, capital da Hungria, grupos de ultra-direita da Alemanha, Eslováquia, Bulgária e Sérvia reúnem-se a cada 11 de fevereiro, para comemorar o chamado “dia de honra”. A jornada recorda o fim da batalha pela cidade, na qual um exército de 100 mil soldados alemães e húngaros, cercados por soviéticos, manteve posição durante 52 dias, em 1945.

;“O ocidente se defendeu das ondas vermelhas das estepes da Ásia com um imenso tributo de sangue e heroísmo”, afirma, neste ano, a convocação de grupos neonazistas alemães para o ato de Budapeste.
Os cerco de Budapeste teve como consequência a aniquilação de grande parte dos judeus que ainda permanecia na cidade, nas mãos dos fascistas húngaros.

“Em muitos países do antigo bloco oriental está se abrindo um caminho para uma versão unilateral da História, construída sob medida pela ultra-direita avança”, constata o jornalista alemão William Totok. O fenômeno supera o meramente histórico para se manifestar em uma crescente hegemonia política direitista, que parece seguir as pegadas dos anos trinta, quando a região esteve dominada por regimes ultradireitistas

Regresso a um passado conhecido

Os países bálticos, Romênia, Bulgária, Hungria, o oeste da Ucrânia e a Polônia católica e conservadora, voltam a se apresentar nos papéis que representaram às vésperas da II Guerra Mundial.

Naquele conflito, seis países europeus foram aliados militares de Hitler: Finlândia, Hungria, Romênia, Itália, Eslováquia e Croácia. Apenas a Finlândia, que não se identificou com a ideologia racista que animava a guerra, manteve um sistema democrático dentro do bloco. Contou, até o final, com soldados e oficiais judeus em seu exército.

Outro grupo de países oficialmente “neutros” ou ocupados, como Espanha, França, Bélgica, Holanda, Dinamarca e Noruega, enviaram voluntários para lutar com Hitler.

Nos países bálticos, no Cáucaso do norte, na Polônia, Ucrânia e Bielorrússia (e mesmo em partes da Rússia), as lembranças históricas do domínio imperial russo, da repressão e deportação stalinistas, da coletivização agrária, além da questão nacional, traduziram-se em lutas ativas contra a União Soviética de Stálin. Hitler usou-as em seu favor de diversas maneiras.

Lançada por Vaclav Havel e outros dissidentes anticomunistas do antigo bloco oriental, a chamada “Declaração de Praga”, de junho de 2008, abriu espaço para que muitas tendências internas, nesses países, equiparassem nazismo e comunismo. O documento foi parcialmente aplaudido pela União Europeia.

Com o pacote do anticomunismo, voltam o antissemitismo e o desprezo pelos ciganos. Na Lituânia, por exemplo, desapareceu de vista a aniquilação de 95% dos 220 mil judeus locais, entre 1941 e 1944. Os alemães davam as ordens, mas a maioria dos executores do extermínio foram voluntários lituanos. A memória dessa colaboração criminosa não existe.

Para construir uma consciência nacional “limpa” e “sem manchas”, os lituanos, que sofreram muito nas mãos dos soviéticos, usam como escudo seus 30 mil concidadãos deportados para a Sibéria, em 1941; e as dezenas de milhares de novas deportações ou execuções, ao final da guerra. Estes fatos lastimáveis, no entanto, não os livram dos 195 mil cadáveres judeus que têm no armário.

No Museu Nacional de Vilnius, a capital, a narrativa salta o período entre 1941 e 44, para não se deter nos anos-chaves do holocausto e colaboração. Desde junho de 2010, o código penal lituano criminaliza o questionamento do “genocídio duplo”.

Em 2008, estabeleceu-se a proibição de símbolos nazistas e comunistas, mas um tribunal de Klaipeda – a terceira maior cidade do país – decidiu, em 2010, que a suástica pertence ao “patrimônio cultural lituano”.
Devido à mesma tentativa de equiparar nazismo e comunismo, na Romênia uma organização não pode se denominar “comunista” sem arriscar-se a ser considerada “ameaça à segurança nacional”. O governo romeno prepara uma lei que proíbe atos públicos que “propaguem ideias totalitárias, ou seja, fascistas, comunistas, racistas ou chauvinistas”.

Na República Checa, o Partido Comunista está ameaçado de cair na ilegalidade pela mesma ideia. A situação na Polônia ficou clara em dezembro passado, quando o jornalista polaco Kamil Majchrzak, redator do Le Monde Diplomatique, pediu, durante uma conferência que ofereceu em Berlim, para não ser fotografado, pois estava ameaçado pela extrema direita em seu país.

Na Hungria, os membros do ex-Partido Comunista, muitos deles agora no Partido Socialista, poderão ser perseguidos judicialmente por “delitos comunistas” cometidos antes de 1989, de acordo com as novas normas introduzidas pelo governo de Viktor Orban.

Revanchismo nacional e questionamento de fronteiras

A nova legislação eleitoral adotada por Budapeste, em favor dos húngaros residentes no estrangeiro – ou seja, as minorias húngaras na Eslováquia, Sérvia e Romênia – é um convite à revisão das fronteiras. Sugere que o país questiona o Tratado de Trianon, que, depois da Primeira Guerra Mundial, tirou do país quase um terço de seu território.

Tal revisionismo é impensável, ou muito difícil, no quadro da União Europeia. Por isso, é preciso acompanhar as tendências anti União Europeia que começam a aflorar ao calor da crise.

A degradação sócio-econômica despertou o sonho da “Grande Hungria”, explica o jornalista e estudioso em cultura nacional, Bruno Ventavoli. “Os valores da democracia, do pluralismo, do diálogo ou da diversidade parecem supérfluos, quando na vida cotidiana não há dinheiro para fazer compras ou pagar as contas. Nasce a tentação de retroceder sobre si mesmos, sonhando com uma Grande Hungria, adornada com a suspeita de vitimização pelas feridas da História; desde as guerras contra os turcos até a invasão soviética, passando pelo Tratado de Trianon”, diz Ventavoli.

Os reveladores critérios da União Europeia

Na sede da União Européia, Bruxelas, não aconteceu muita coisa enquanto o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban, limitava-se a restringir a democracia com medidas e projetos que atentam contra a liberdade de imprensa ou a divisão de poderes. Também não houve queixas enquanto expurgava, do governo e dos meios de comunicação, vozes críticas. O Partido Popular Europeu, a que pertencem os partidos que governam a França e Alemanha, não se incomodou com isso.

O problema começou de verdade quando Orban anunciou medidas como a mudança do sistema fiscal, a nacionalização dos fundos privados de pensões, a concessão, ao Parlamento, de direito de veto sobre a legislação europeia e, principalmente, a submissão do Banco Central ao controle direto do governo. Foi então que Bruxelas afirmou que “os valores europeus” estão em perigo na Hungria e começou a tecer, junto com o FMI, o objetivo de afastar Orban do governo.

Os bancos austríacos estão muito expostos a uma eventual crise da economia húngara, perto de quebrar. Ainda que a Hungria não esteja na zona do euro, essa conexão com a Áustria é vista com enorme temor.
Mas promover um terceiro “golpe tecnocrático” na Europa, depois do grego e do italiano, é complicado, aponta o diário húngaro Népszabadság. “Não é fácil destituir um primeiro ministro do exterior quando foi eleito, conta com dois terços das cadeiras do Parlamento, e a oposição está fragilizada”, observa.

Orban chegou ao poder em 2010, em consequência do desencanto com uma coalizão de governo anterior, encabeçada pelos socialistas. Aquele sentimento também consagrou ao partido fascista Jobbik como terceira força do país. Em 2008, os socialistas e seus aliados haviam iniciado, sob ordens do FMI, duras medidas de ajuste e de desmonte do setor público – que Orban continuou.

O primeiro ministro tem uma sólida maioria apoiando seu projeto retrógrado. Os cem mil húngaros que saíram em 2 de janeiro às ruas de Budapeste contra Orban estão presos entre dois cenários antidemocráticos: o nacional-direitista, de seu governo, e o europeu tecnocrático, de Berlim e Bruxelas. Ambos têm muito em comum – por exemplo, dissolver a democracia e a soberania nacional.

“Além de querer conservar um regime representativo e constitucional, as potências ocidentais e a Comissão Europeia reivindicam que a Hungria adote uma política econômica que não serve aos interesses do povo húngaro”, aponta o filósofo Gáspás Miklós Tamás.

“Decepcionado em muitas ocasiões, o povo húngaro poderia não ver no ‘motivo democrático’ de Bruxelas mais que um mero adorno, algo para disfarçar o peso das medidas de “austeridade” cada vez mais pesadas, impostas pelas potências ocidentais preocupadas com a estabilidade financeira”, diz. Essa contradição torna “muito frágil” a situação da oposição húngara, conclui Tamás.

A extrema direita pode liderar

Questionar a “independência” do Banco Central (ou seja, sua submissão às finanças privadas) e as políticas de “austeridade” da União Europeia é um perigoso precedente de rebeldia, um desafio à democracia submetida ao mercado, propugnada por governantes como Angela Merkel e Nicolas Sarkozy. O paradoxo é que tal precedente está sendo aberto não por um governo de esquerda – mas de extrema-direita. A mensagem não pode ser mais clara: na Europa, a crise está criando buracos negros.

O caso húngaro adverte, da forma mais clara, que a extrema direita, com seu desprezo ao fraco, seu racismo, sua xenofobia e sua propensão ao militarismo, está disposta a rechear esse buraco com programas e propostas perfeitamente capazes de conquistar a rua e a liderança.

Comentário
A União Européia, de fato, vive um momento terrível, liderada por governantes ineptos, medrosos e completamente dominados pelo mercado financeiro.
Deixar que tais insanidades ocorram sob suas barbas é um assombro. Relembro-me do fato histórico, de quando as potências ocidentais permitiram não só que Hitler chegasse ao poder, mas também que se armasse – esperando que ele atacasse a União Soviética. Hitler até o fez, mas depois de ter arrasado vários países e o povo judeu. Da mesma maneira agora, a União Européia permite aberrações como a de se comparar o nazismo ao comunismo, posto que seu ideário econômico é francamente conservador, e quer derrotar a esquerda de todas as formas. Porém, a extrema direita é o que é. Logo, logo, a hidra direciona uma de suas cabeças contra aqueles que se julgavam incólumes.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Os tambores da guerra – por Márcio Sampaio de Castro (CartaCapital)

Duas situações complementares têm caracterizado a cultura norte-americana ao longo dos últimos dois séculos. A primeira é a possibilidade sempre presente de resolver as diferenças à bala, um direito nacional inalienável previsto logo na segunda emenda da constituição daquele país, que garante a posse e o uso de armas de fogo a qualquer cidadão. A segunda é a política do cowboy, por meio da qual cabe ao outro sacar a pistola primeiro. Tudo o que ocorrer depois estará amplamente justificado e creditado na conta do agressor inicial.

'A guerra pela suposta implantação de uma democracia na Líbia terminou de forma pavorosa com o bárbaro assassinato do não menos bárbaro Muamar Kaddafi'

Nesse curto período histórico, os exemplos não faltam. Os índios foram trucidados e confinados em reservas porque atacavam os colonos brancos. Na guerra hispano-americana, tornou-se célebre o caso do proprietário de jornais William Hearst, que forjou alguns factóides, distorceu acontecimentos e exagerou na descrição de outros, imputando aos espanhóis pavorosos arbítrios contra o povo cubano e também a misteriosa explosão do navio de guerra USS Maine no porto de Havana, eventos que não deixaram alternativa ao governo dos Estados Unidos senão intervir na ilha caribenha para libertá-la. Hearst seria o autor da infame frase endereçada a um de seus repórteres: “Você me fornece as imagens e eu fornecerei a guerra”.

Nas duas grandes guerras mundiais, novamente o ônus da ultrajante agressão gratuita caberia sequencialmente a alemães e japoneses, enquanto no Vietnã, o obscuro torpedeamento do USS Maddox, em 1964, pelos norte-vietnamitas no Golfo de Tonkin serviria para que, em linguagem bíblica, a América rasgasse suas vestes, despejando naquele país do sudeste asiático milhares de homens, toneladas de bombas e bilhões de dólares por mais de uma década.

Em todos esses casos é interessante observar que Hearst fez escola e, portanto, nunca esteve sozinho na prática de trombetear as ações ultrajantes dos “inimigos da liberdade”. Não estão em questão aqui a truculência de um império colonial decadente ou as pretensões expansionistas de regimes totalitários, e sim as ações do dândi, que veste sua melhor roupa de domingo e vai passear no valhacouto dos bandidos e, uma vez agredido, ganha a simpatia dos jornais da cidade, que exigem das autoridades locais medidas enérgicas contra os celerados.

O porta-aviões USS John C. Stennis, ao cruzar o estreito de Ormuz, no Golfo Pérsico, no penúltimo dia de 2011, evocou mais uma vez essa figura. Em um misto de demonstração de força e provocação, o navio norte-americano passou sob o nariz dos aiatolás, em pleno exercício militar naval iraniano, e fez o mundo inteiro prender a respiração por um momento.

Mas a escalada que leva aos conflitos, como bem ensina a leitura atenta da história contemporânea, se dá antes de tudo na mídia, que, ao escamotear, distorcer, exagerar ou deliberadamente ignorar versões, contribui de forma decisiva para sancionar a violência coletiva chamada guerra, cuja primeira vítima, como ensina a sabedoria jornalística, é a verdade.

Tem causado espanto nos últimos meses a apresentação noticiosa de fatos, presumivelmente decisivos para o curso do século XXI, como eventos isolados e, consequentemente, desconectados do grande jogo travado no palco de um planeta que se mostra cada vez menor para tantos interesses conflitantes. A guerra pela suposta implantação de uma democracia na Líbia terminou de forma pavorosa com o bárbaro assassinato do não menos bárbaro Muamar Kaddafi. Os esparsos relatos que chegam, pois o país foi rapidamente esquecido pela imprensa internacional, dão conta de um estado de quase anomia, com gangues e grupos rivais travando incessantes tiroteios nas ruas de suas principais cidades.

Da mesma maneira, pouca gente nas redações se interessou em apurar e apresentar o movimento de aproximação, nos meses que antecederam a “ação humanitária” da OTAN, entre Kaddafi e empresas chinesas e russas para a exploração de petróleo da maior jazida existente no continente africano.

É importante lembrar que, enquanto Kaddafi ainda se escondia nos canos de esgoto de Sirte, o presidente do Conselho Nacional líbio, Mustafa Abdeljalil, e o vice, Mahmoud Jibril el-Warfally, homem de confiança do Ocidente por seus laços estreitos com a Universidade de Pittsburgh, visitavam Paris e garantiam aos líderes ocidentais privilégios nos contratos para exploração de petróleo na Líbia democratizada. Russos, chineses e até a Petrobrás ficaram a ver navios.

O caso sírio é igualmente emblemático e segue a mesma lógica discursiva empregada nos meses anteriores à investida contra o regime líbio.

Às denúncias diárias feitas por obscuros grupos de oposição de mortes causadas pelas forças do governo, as agências internacionais de notícias sediadas em Londres, Paris, Madrid e Nova Iorque dão um destaque que faz lembrar a indignação seletiva e tardia – afinal, durante 40 anos, isso não foi um problema para a chamada comunidade internacional – em relação às ações de Kaddafi contra o seu povo.

Um olhar atento revelará que o país do Oriente Médio possui uma importância estratégica sem igual no tabuleiro da geopolítica atual. Através da Síria, o Irã viabiliza a alimentação do Hezbollah, inimigo mortal de Israel e do Ocidente.

No porto de Tartus, banhado pelo Mediterrâneo, a Rússia possui uma base naval com quase mil militares ali alocados, que funciona como centro de manutenção e abastecimento para a sua frota do Mar Negro, constituindo-se na única força militar não alinhada com os interesses ocidentais em pleno quintal da OTAN.

Por fim, a instituição de um governo “democrático”, em substituição à ditadura de Bashar Al-Assad, garantiria uma tranquilidade maior para a ampliação e exploração do Trans-Arabian Pipeline (Tapline), um oleoduto que liga o Golfo Pérsico ao Líbano, contornando eventuais inconvenientes estratégicos causados por um possível bloqueio do Estreito de Ormuz pelos iranianos.

Diante desse quadro, não é difícil atribuir certa razão a Assad quando acusa as ações armadas contra o seu governo, como atentados a bomba em Damasco e o assassinato de policiais e membros das forças armadas, de possuírem patrocínio estrangeiro, com um leque de suspeitos que sai de Riad, passa por Tel Aviv e chega facilmente a Washington. O único problema é que essas alegações são prontamente ridicularizadas e abafadas pela imprensa anglo-saxônica sem merecer por parte de suas redações uma única pergunta a um dos muitos embaixadores ocidentais sempre dispostos a anonimamente corroborar os relatos da oposição.

Voltando à questão iraniana, no início de janeiro, uma edição do The New York Times trouxe como matéria de capa o relato sobre a instalação de uma segunda planta de enriquecimento de urânio nas proximidades da cidade de Qum. O texto, mais uma vez, reforçava a preocupação das autoridades ocidentais quanto ao fato de o novo complexo estar encravado nas montanhas, tornando-o inexpugnável a ataques aéreos (!). Para além da metade da reportagem, porém, aparecia um dado paradoxal: as usinas de enriquecimento de urânio no Irã são regularmente visitadas por especialistas da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) e qualquer aumento na produção levaria, no mínimo, seis meses para atingir quantidades suficientes para a construção de artefatos para emprego militar. Se é assim, então, por que o alarde do jornal.

Para os mais céticos, recomenda-se conferir documentários como Sob a Névoa da Guerra, de Errol Morris, com um depoimento didático do ex-secretário de defesa Robert McNamara a respeito de como são tratados os interesses estratégicos de uma grande potência como os EUA, ou ainda, o inexplicavelmente pouco divulgado The War You Don´t See, dirigido pelo veterano jornalista John Pilger.

Neste último, dentre uma série de eventos históricos recapitulados, merece destaque a reconstituição da farsa das armas de destruição em massa de Saddam Hussein representada bisonhamente pelo secretário de Estado de George Bush Jr no Conselho de Segurança da ONU. Bisonho ou não, o fato é que a pantomima funcionou relativamente e os norte-americanos invadiriam o Iraque em 2003. Mais do que a cena de Collin Powell no CS, Pilger mostra como a participação da mídia do chamado mundo livre foi fundamental para a criação de um senso comum que dava conta da inevitabilidade da existência de tais armas e, portanto, da guerra punitiva contra o ditador iraquiano.

É aterrador constatar que, passada quase uma década da invasão do Iraque e de seus estimados meio milhão de mortos, a pobreza das análises, a deliberada distorção ou ocultação de versões e a ausência de uma visão orgânica do que se passa no teatro geopolítico contemporâneo, proporcionadas por uma mídia altamente conivente com os interesses hegemônicos, caminhamos novamente para um possível desfecho trágico, com consequências imprevisíveis para os anos vindouros.

UDN quiz - por Tia Carmela

https://tiacarmela.wordpress.com/2011/10/31/udn-quiz-1/ 
http://tiacarmela.wordpress.com/2011/12/22/udn-quiz-2/

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

2014: decepção com Aécio desnorteia oposição - do Blog do Josias de Souza (Folha de São Paulo)

Há um ano, Aécio Neves era celebrado como grande promessa da oposição. Hoje, tornou-se um nome duro de roer. Tucanos e aliados viam nele a melhor opção presidencial. Passaram a enxergá-lo como a pior decepção da temporada.

Em qualquer roda de políticos ficou fácil reconhecer um oposicionista: é o que está lamentando a popularidade de Dilma Rousseff e falando mal de Aécio Neves. Nas discussões sobre 2014, o senador mineiro é personagem indefeso.

Para perscrutar as razões do desencantamento com Aécio, o blog ouviu cinco lideranças da oposição. Gente do PSDB, do DEM e do PPS. Um dissidente de legenda governista. O compromisso do anonimato destravou-lhes a língua.

Espremendo-se as opiniões e peneirando-se os exageros, obtém um sumo uniforme. A desilusão dos oposicionistas assenta-se em três avaliações comuns:

1. A atuação de Aécio em seu primeiro ano de Senado foi apagada. Algo incompatível com a biografia de um ex-presidente da Câmara. Ele não aconteceu, disse um dos entrevistados, no melhor resumo do sentimento que se generaliza.

Como assim? Quando Itamar Franco era vivo, a voz de Minas no Senado era a dele, não a de Aécio. O grande feito de Aécio no Senado foi a relatoria do projeto que redefine o rito das medidas provisórias. Proposta do Sarney, não dele. É pouco.

2. Dono de estilo acomodatício, Aécio é uma espécie de compositor da política. Compõe com todo mundo. Governou Minas com o apoio de partidos que, no Congresso, davam suporte a Lula. Em Brasília, o espírito conciliador, por excessivo, foi tomado como defeito.

Aécio exagerou, queixou-se um ex-entusiasta do senador. Esmiuçou o raciocínio: no afã de atrair para o seu projeto pedaços insatisfeitos do bloco pró-Dilma, Aécio esquece que a oposição deve se opor. É improvável que ganhe aliados novos. E está perdendo os antigos.

3. Imaginou-se que, livre dos afazeres de governador, que o prendiam a Minas, Aécio viraria rapidamente um personagem nacional. Por ora, nada. Por quê? A projeção exigiria dedicação e ampliação do horizonte temático, palpita um dos queixosos.

Mas Aécio não é um obcecado pelo Planalto? Sim, mas revelou-se pouco aplicado e esquivou-se das polêmicas. Viajou pouco. No Senado, não foi dos mais assíduos em plenário. Subiu à tribuna só de raro em raro. No geral, esquivou-se das polêmicas.

O crítico citou um exemplo: PSDB e DEM decidiram quebrar lanças contra a DRU, o mecanismo que permite ao governo dispor livremente de 20% do Orçamento. Entre os tucanos, apenas cinco votaram contra. Aécio não estava entre eles.

Ninguém vira alternativa presidencial fugindo dos temas espinhosos, lamuriou-se um expoente do próprio PSDB. Aécio continua sendo alternativa graças à vontade pessoal e à ausência de um sucedâneo. A sorte dele é que a maioria do partido não suporta o José Serra.

Parte da cúpula do PSDB tenta antecipar para depois da eleição municipal de outubro a definição do nome do presidenciável da legenda. Em âmbito interno, a aversão a Serra faz de Aécio um favorito.

Fora daí, é visto pela própria oposição como uma ex-promessa. Uma liderança que se absteve de acontecer. Um candidato que depende do fortuito para livrar-se da condição de favorito a fazer de Dilma uma presidente reeleita.

Comentário:
Na verdade, vindo de um colunista evidentemente tucano, velho serrista frustrado (que dirá o jornal), a fala é um lamento. Ele não quis dizer, mas esta claro para todos que Aécio Never é um playboy, muito mais preocupado com sua vida noturna do que com o estado que governava, ou com sua atual função de senador.
O episódio do bafômetro é emblemático neste sentido.
Mas pra este jornal, o alcoólatra é o Lula, claro.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A grita de Marco Aurélio e o eco pelos R$ 856 milhões movimentados por juízes – por Wálter Fanganiello Maierovitch (Sem fronteiras)

Com apoio em verificações do órgão de inteligência financeira do governo federal que atende pela sigla Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), a corregedora do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Eliana Calmon, soube de movimentações atípicas no valor de R$ 856 milhões, no período de 2000 a 2010, realizadas por magistrados e serventuários do Judiciário.

Em 2008, dois integrantes da Justiça Militar de São Paulo e um do Tribunal de Justiça de São Paulo, movimentaram R$ 116,5 milhões.

Os fatos foram revelados na edição de hoje do jornal Folha de S.Paulo. Sobre a Justiça Militar, até os vestibulandos em Direito sabem, apesar da previsão Constitucional, tratar-se de uma instituição com passado muito conhecido durante a ditadura e nenhum futuro que justifique a necessidade de sua manutenção.

Nesta semana soube-se, por matéria assinada pelo jornalista e repórter especial Frederico Vasconcelos, que um ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo era credor de R$ 1,5 milhão e o embolsou de uma só vez. Pior, tudo graças a um requerimento por ele feito na condição de desembargador e despachado, por ele próprio e favoravelmente, na condição de presidente do Tribunal.

Na história da Justiça paulista nunca se soube de um caso teratológico similar, em que o postulante-requerente e a autoridade-requerida eram a mesma pessoa. Nos mundos da deontologia (ética) e do processo, quer administrativo quer jurisdicional, existe uma situação de impedimento inobservada no caso. Espera-se que tal decisão do ex-presidente Roberto Vallim Bellocchi não vire jurisprudência.
Graças a uma liminar, concedida pelo ministro Ricardo Lewandowsky, todas as apurações correcionais (fiscalizatórias) do CNJ na Justiça paulista estão proibidas. Lewandowsky é ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e já integrou pela classe dos advogados pelo critério do quinto constitucional o Tribunal de Justiça.
Em maior espectro, o ministro Marco Aurélio Mello, escolhido para o STF por meio de nepotismo praticado pelo então presidente Fernando Collor de Mello, proibiu, por liminar dada no apagar das luzes do ano judiciário de 2011, as fiscalizações do CNJ em todo o Judiciário.

As duas liminares foram obtidas pela Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), que continua a contestar a legitimidade das ações do CNJ em geral e a determinação ao Coaf em particular.

De observar que o Coaf, órgão de inteligência financeira, tem, por lei em vigor desde 1998, o dever de vigilância, assim como os bancos, e informar às autoridades movimentações financeiras fora do padrão. Portanto, operações suspeitas que precisam ser verificadas por órgão competente. Exemplo: Alfonso Caruana, residente no Canadá e dado como maior traficante do mundo no final dos anos 90, informava às autoridades fiscais que recebia salário mínimo como empregado de uma empresa de lavagem de automóveis (car wash). O modesto e falso empregado, como levantado pelas autoridades financeiras do Canadá, movimentava milhões nos bancos e era proprietário de mais de 10 gigantescos prédios de apartamentos e escritórios localizados em grandes centros urbanos canadenses. Só para lembrar, Alfonso sempre passava férias no Rio de Janeiro, na casa do tio Giuseppe Caruana (já falecido), condenado na Itália definitivamente por associação à Máfia.

Como a nossa Constituição adota o princípio fundamental de que todos são iguais perante a lei, ninguém está fora da vigilância do Coaf. E não há necessidade, ao contrário do entendimento corporativo do ministro Marco Aurélio, de autorização judicial para o Coaf vigiar juízes. Isto porque o Coaf não é órgão de investigação criminal. Ele só aponta movimentações atípicas, que podem ser lícitas (recebimento de herança ou prêmio de loteria) ou ilícitas (venda de sentenças e liminares).

O Coaf, pelo que se tem notícia, examinou a movimentação financeira de 217 mil funcionários públicos judiciários, incluídos magistrados. Parêntese: juízes são funcionários públicos em sentido amplo e são funcionários do Poder Judiciário, em sentido estrito. Das verificações, o Coaf apontou para 3.400 casos de movimentação fora do padrão habitual. Em síntese, 3.400 servidores públicos que podem, por exemplo, ter ganhado na loteria, recebido heranças, verba de precatório desapropriatório ou vendido decisões, liminares ou de mérito. O ministro Paulo Medina, ex-presidente da AMB, foi afastado das funções, sem prejuízo de vencimentos e vantagens, por vender liminares. No caso, não foi o Coaf, mas o CNJ que apurou por conta própria.

Para Marco Aurélio, cabe às corregedorias estaduais e federais dos tribunais a exclusividade nas investigações, por força do princípio federativo. Só que ele despreza o fato de o CNJ ter nascido em razão da impunidade consagrada nas corregedorias. Mais, o CNJ, pela Constituição, é órgão do Judiciário. Tem poder autônomo para investigar. No sistema federativo, admite-se órgão nacional que se sobrepõe aos estaduais, mas Marco Aurélio ainda não percebeu.

Pano Rápido. Marco Aurélio, no curso de sua trajetória no STF, teve teses vencidas em questões constitucionais. Mais especificamente ficou vencido em 73% dos casos julgados pelo STF. A respeito da falta de poder correcional autônomo do CNJ, que representa a canhestra e socialmente prejudicial tese do ministro Marco Aurélio, espera-se, em proveito da democracia e da sociedade, que seja vencido mais uma vez.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Muralha policial em Higienópolis para preservar silêncio de FHC - por Wálter Fanganiello Maierovitch (Sem fronteiras)

No ano passado, o ex-presidente Fenando Henrique Cardoso, que nos dois mandatos presidenciais se submeteu à política norte-americana de guerra às drogas (war on drugs) de seu guru, o então presidente Bill Clinton, virou casaca, trocou bandeira.

FHC, em busca de um palanque internacional para concorrer com o então presidente Lula, reuniu antigos presidentes e dirigentes fracassados por adesão à guerra às drogas e submissão aos EUA para deitar sabedoria quanto às novas políticas sobre o fenômeno representado pelas drogas ilícitas no planeta.

Assim, FHC subiu ao palanque adrede preparado e vestiu panos de líder progressista, a encampar, como próprio, antigos posicionamentos antiproibicionistas. Até foi preparado um documentário, do tipo laudatório para exibição em cinemas, que não se tornou campeão de bilheteria.

Dentre a turma dos “vira-casaca”, que usam a desculpa do “nós reconhecemos que erramos e agora vamos mudar”, destacam-se:

1) César Gaviria, ex-presidente da Colômbia ao tempo dos potentes cartéis de Cali, Medellín e Vale Norte. Gaviria admitiu que Pablo Escobar construísse, com recursos da venda internacional de cocaína, o presídio onde ficaria e poderia sair para passeios e dirigir, do banco de reservas, o seu time de futebol. O povo chamava o presídio de “A Catedral”, pois era o santuário de Escobar, com obras de arte nas salas de reuniões do “capo da cocaína” e sistema de segurança para evitar bombardeamento por aviões da norte-americana DEA (Drug Enforcement Administration). Mais ainda, Gaviria fazia vista grossa para a Tranquilândia, o megacomplexo onde Pablo Escobar, chefão do Cartel de Medellín, mantinha o maior centro latino-americano de refino de cocaína: o povo deu o nome de Tranquilândia, pois a polícia jamais entrava lá.

2) Ernesto Zedillo, ex-presidente que decretou a falência do México, provocou uma crise econômica internacional até então sem precedentes e assistiu a indústria mexicana das drogas ilícitas obter lucros fabulosos.

3) Kofi Annan, ex-secretário da Organização das Nações Unidas (ONU), e responsável, quando no poder, pela manutenção do proibicionismo criminalizante convencionado na sede das Nações Unidas em 1961: a convenção de Nova York continua em vigor e os estados teocráticos membros da ONU e os EUA são contrários a qualquer tipo de mudança.

Como o tempo se incumbe de revelar farsantes, aquele que se promoveu a líder das causas corretas sobre políticas nacionais e internacionais sobre drogas, FHC mantém-se, passada mais de uma semana da operação iniciada na Cracolândia, em sepulcral silêncio.

Morador do bairro de Higienópolis, popularmente dividido em Higienópolis de Cima e Higienópolis de Baixo depois da luta pela não instalação de uma estação de metrô que levaria à circulação de transeuntes indesejados, FHC foi cobrado pelos vizinhos. Afinal, a ação prevalentemente policial no bairro da Luz, onde estavam confinados os toxicodependentes de crack, resultaria na migração para Higienópolis.

FHC, o novel especialista no fenômeno das drogas proibidas pelas convenções da ONU, não se manifestou sobre o denominado Plano de Ação Integrada Centro Legal, concebido pela dupla Alckmin-Kassab, respectivamente, governador do Estado e prefeito da capital.

Pelo silêncio, nem se sabe se gostou da deferência do governador por destacar um contingente da Polícia Militar para impedir que dependentes químicos de crack, estimados em 1.664 (400 habitam na Cracolândia), ousem, ainda que assutados pela violência policial, migrar para o “aristocrático” bairro de Higienópolis.

Com tal medida protetiva, FHC, certamente, vai poder abrir as janelas de seu apartamento sem risco de assistir a cenas motivadoras de algum pronunciamento.

Pano Rápido. A meta da operação de Alckmin-Kassab é “limpar” a Cracolândia de “indesejados viciados em crack”, antes admitidos quando interessava a política de confinamento.

O “limpa” vai dispersar os dependentes para novo “pogrom” na periferia, já que uma muralha de policiais militares evitará que ingressem nos bairros vizinhos de Higienópolis e Bom Retiro.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Por que Serra é tão detestado? - por Paulo Nogueira (Diário do centro do mundo)

Uma unanimidade

Me chamou a atenção a alegria com que muita gente recebeu as controvertidas denúncias contra Serra no livro A Privataria Tucana. Me parece que para muitos a principal virtude do livro consiste em atacar Serra.

É irônico vê-lo no papel de privatizador, ele que sempre pareceu contrariado com as privatizações e que jamais se identificou com o ideário neoliberal. Serra é o clássico ‘dirigista’, alguém que acha que o país deve ser guiado de cima para baixo por um Estado forte. Há, aí, uma comunhão de idéias entre ele e o que foi o mais esclarecido presidente nos anos militares, Ernesto Geisel.

Os jornalistas não gostam de Serra por um motivo óbvio: se puder, ele liga para os donos para tentar suspender uma reportagem que ele suspeite que não o tratará como herói. Caso saia um artigo que o irrite, ele também responde com ligações privadas para os donos ou os chefes do autor. Até em bobagens. Uma vez, quando trabalhava na Exame, dei a um texto sobre mais uma derrota eleitoral de Serra um título extraído de um poema de Gonçalves Dias: “Ainda uma vez, adeus”. Meu chefe na época, Antonio Machado, me avisou que Serra tinha ligado para se queixar de mim.

Muitos jornalistas atribuem sua demissão a pedidos de Serra. Em minha carreira, só vi alguém com o mesmo perfil: Delfim Netto, o czar da economia em boa parte do regime militar. Os jornalistas sabíamos que Delfim não hesitava em pedir cabeças quando contrariado com algum texto.

Sabemos, então, por que Serra é rejeitado pelos jornalistas. E pelos demais?

Bem, Serra parece reunir todas as características que fazem as pessoas desgostar de alguém. Tem um claro ar de superioridade, sem que haja razões para isso. Serra é, por formação, economista, mas jamais produziu um livro original, com idéias econômicas inovadoras. Sua arrogância se sustenta muito mais num caráter ególatra do que em bases de realidade, e isso incomoda duplamente. Se é difícil suportar um gênio difícil, pior ainda é aturar uma pessoa normal que se comporta como gênio.

Serra é, também, invejoso. Ele não participou da equipe que fez o Plano Real, e por isso jamais reconheceu nele a importância histórica de devolver aos brasileiros uma moeda que não se corroía continuamente.

Também não é grato. Em 2002, em sua campanha fracassada, jamais deixou claro aos brasileiros que se alinhava com o homem que viabilizara sua candidatura: Fernando Henrique Cardoso. Compare com a atitude de Dilma perante Lula. Dilma, numa cartinha recente a FHC, disse muito mais sobre a importância dele como presidente do que Serra em toda uma vida em que ambos estiveram na mesma trincheira.

A todos os atributos negativos, Serra acrescentou na última campanha um outro: a hipocrisia. Ele quis parecer um homem do povo, alguém que gosta de estar no meio das pessoas numa feira comendo pastel e falando do último capítulo de novela.
Não colou.
Nem vou remeter ao farisaísmo presente na patética tentativa de transformar uma bolinha de papel num atentado na última campanha. Numa hipótese benevolente, isso foi fruto ao mesmo tempo do marqueteiro de Serra e de seu próprio desespero diante das pesquisas que já o davam como morto. Foi um horror, é verdade, mas com atenuantes. Por isso passemos por cima do falso atentado. Fiquemos com a essência: antipatizar com Serra é uma das raras coisas comuns aos brasileiros.


Dizer que o brasileiro não sabe votar é um clichê. Mas não ter levado Serra ao Planalto por duas vezes é uma evidência de que o brasileiro sabe pelo menos em quem não votar.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Quando banqueiros se tornam gangsteres - por Mauro Santayana (Conversa Afiada)

Primeiro ministro da França entre l988 e 1991, Michel Rocard é homem respeitável em seu país. Ele, e um economista mais moço, Pierre Larrouturou, publicaram, segunda-feira, em Le Monde, artigo baseado em fontes americanas sobre os empréstimos concedidos pelo Tesouro dos Estados Unidos aos bancos, em 2008. De acordo com as denúncias – feitas pela agência de informações econômicas Bloomberg – os juros cobrados pelo FED aos bancos e seguradoras foram de apenas 0,01% ao ano, enquanto os bancos estão emprestando aos Estados europeus em dificuldades a juros de 6% a 9% ao ano – de seiscentas a 900 vezes mais. De acordo com as denúncias da Bloomberg, retomadas por Rocard e Larrouturou, o montante do socorro por Bush e Henry Paulson, seu secretário do Tesouro, aos banqueiros, chegou a um trilhão e duzentos bilhões de dólares, em operações secretas.

O artigo cita a cáustica conclusão de Roosevelt, durante sua luta para salvar os Estados Unidos depois da irresponsabilidade criminosa dos especuladores que haviam provocado a Grande Depressão: um governo dirigido pelo dinheiro organizado é igual a um governo dirigido pelo crime organizado.

Dentro do raciocínio de Roosevelt, podemos comparar a carreira de Henry Paulson à de qualquer grande boss de Chicago ou de Nova Iorque no crime organizado. Desde 1974 – quando tinha 28 anos – Paulson tem servido ao Goldman Sachs, a cuja presidência chegou em 1999. Nos sete anos seguintes, ele consolidou a posição do banco em sua atuação internacional – e foi convocado por Bush para ocupar a Secretaria do Tesouro dos Estados Unidos em 2006. Poucos dias antes, ele deixou a presidência do banco, e preferiu converter a indenização a que teria direito (o famoso bônus), em participação acionária. Isso o manteve ligado, por interesse próprio, aos destinos do banco.

Uma das primeiras firmas a serem beneficiadas pela ajuda do Tesouro, por decisão de Paulson, durante a crise de 2008, foi a AIG – a maior seguradora norte-americana – com cerca de 80 bilhões de dólares. Ocorre que o principal credor da AIG, era o Goldman Sachs, que desse dinheiro, recebeu quase 30 bilhões, logo em seguida.

O Goldman foi multado, em julho de 2010, pela SEC (Securities and Exchanche Commission) por fraude, em 550 milhões de dólares, por ter atuado de má fé na questão das operações com papéis da dívida imobiliária. E são ex-diretores do Goldman Sachs (provavelmente ainda grandes acionistas do banco, como é o caso de Henry Paulson) que se encontram agora no controle do Banco Central Europeu (Mario Draghi), na chefia dos governos da Itália (Mario Monti) e da Grécia (Lucas Papademos). O que farão esses interventores do Goldman Sachs, no controle das finanças européias, a não ser defender os interesses dos bancos – e seus lucros fraudulentos? Se Roosevelt fosse vivo, naturalmente estaria pensando em sua advertência dos anos 30.

É brutal a semelhança entre a situação atual e a de 1929. Ao analisar os fatos daquele tempo, John Galbraight disse que “o outono de 1929 foi, talvez, a primeira ocasião em que os homens tiveram, em grande escala, a capacidade de enganar a si mesmos”. A escala do auto-engano parece ser ainda maior em nossos dias. Rocard lembra a observação de Paul Krugman, de que a Europa entrou em uma “espiral da morte” – mas não é apenas a Europa que corre esse risco.

Assim podemos explicar a advertência de Edgar Morin – também citada por Rocard – de que a civilização ocidental está entre a metamorfose e a morte. “O capitalismo sem regras é o suicídio da civilização”, como afirmam Morin e Stephane Hessel, em seu livro recente “Le Chemin de l’espérance”.

O ex-premier Rocard registra, em seu artigo de Le Monde, que as dívidas dos países europeus para com os grandes bancos são antigas, e sua solução não é difícil. Se o Tesouro americano foi capaz de emprestar a 0,01 aos bancos fraudadores e irresponsáveis, o Banco Central Europeu poderia emprestar, com as mesmas taxas, a instituições nacionais européias – seu estatuto veda o empréstimo direto aos estados-membros – como os bancos estatais de fomento e caixas econômicas. Essas instituições repassariam as somas aos estados, cobrando-lhes juros em dobro – a 0,02% ao ano. Se prevalecesse a razão e a ética, estaria resolvido o problema europeu da dívida pública.

Registre-se, no entanto, que o lema do Goldman Sachs, creditado a um de seus antigos controladores, Gus Levy, nos anos 50, é auto-elucidativo: “long-term greedy”, ganância a longo prazo. O fato singelo é o de que, em tempos de crise – como disse Keynes em 1937, e Krugman relembrou também em texto recente – não cabe a austeridade, com corte de gastos sociais e de infraestrutura, mas, sim, é preciso investir e criar empregos. Os governantes de hoje, em sua maioria, não servem a seus povos, e em razão disso, desprezam pensadores como Keynes. Estão a serviço de grandes corporações, dirigidas por fraudadores, como os banqueiros do Goldman Sachs.

Talvez tenhamos que ir mais adiante ainda – e seguir o conselho de Morin: para não perecer, a civilização ocidental terá que sofrer a metamorfose necessária, encasular-se na razão e, nela, criar asas para o vôo.