domingo, 3 de junho de 2012

Imprensa e democracia – por Jânio de Freitas (Folha de S. Paulo)

Assim como a imprensa pode tirar a Constituição do papel, tira também o papel da Constituição

Já que o ministro Carlos Ayres Britto é do Supremo Tribunal Federal, mas não se sente sob perseguições, e muito menos imagina que queiram "destruí-lo", acredito não haver risco em negar a ideia que faz da imprensa. E nela, sobretudo, da relação entre imprensa e democracia.

O ministro falou no 5º Congresso Brasileiro da Indústria de Comunicação, no qual também esteve o bispo Desmond Tutu. Foi o presidente da Comissão da Verdade e Reconciliação criada na África do Sul, em 1995, por Nelson Mandela.

Espera da nossa Comissão da Verdade que busque "curar as feridas de uma nação traumatizada". A idade não lhe diminuiu a percepção nem a determinação de dizer as palavras adequadas.

Em seu tema, o ministro Ayres Britto não se limitou à esperança. Tem a convicção de que "a metáfora de que a imprensa e a democracia são irmãs siamesas não é exagerada. É, de fato, um vínculo umbilical, a ponto de que, se for cortado esse cordão, é a morte das duas - da imprensa e da democracia".

A relação siamesa entre imprensa e democracia não se ajusta, no entanto, aos 21 anos brasileiros entre 1964 e 1985, por exemplo.

Não só ao decorrer do período, mas também àquilo mesmo que lhe deu origem.

Durante os 21 anos sem nem sequer os seus mínimos componentes da democracia, a imprensa brasileira (vamos englobar assim jornais, TV, revistas e rádio) teve lucros e outros enriquecimentos maiores, muito maiores, do que em qualquer fase anterior na sua história.

A par desse benefício generalizado, quanto mais próximo e a serviço do regime antidemocrático, maior a compensação.

Tanto a proporcionada diretamente ou indiretamente por ligação ao poder, como pela preferência publicitária por meios de comunicação identificados com o regime. Do qual a publicidade foi instrumento fundamental, talvez decisivo.

Mais importante jornal em todos aqueles anos, o "Jornal do Brasil", como principal órgão criador de opinião pró iniciativas do regime ("milagre brasileiro", "Brasil grande", a designação de "terroristas" para os oposicionistas, nem todos armados, e muito mais) proporcionou o exemplo definitivo da ligação ideológica-econômica dos meios de comunicação com a antidemocracia.

Habituara-se tanto aos ganhos estupendos e fáceis com sua posição, que, vinda a democracia, foi rápido para o colapso. Não o único a seguir tal percurso.

"A censura à imprensa teve duração pequena" -é uma afirmação muito repetida sob variadas formas. E inverdadeira.

Todo o período ditatorial foi atravessado por uma modalidade de censura sem evidência pública: o afastamento, impositivo sobre as direções ou proprietários, de jornalistas profissionais.

A base da convicção “siamesa” de Ayres Britto está na ideia de que, “por ser a instância que oferta à população uma alternativa, uma explicação diferente da que o governo dá aos fatos, a imprensa tira a Constituição do papel, vitaliza a Constituição”.

Está na história: assim como a imprensa pode tirar a Constituição do papel, tira também o papel da Constituição, na sociedade e no país. A força agitadora para a preparação do golpe de 64 foi a imprensa. Com agitação diuturna.

Todos os demais agentes foram insignificantes em comparação com a imprensa, e dependentes dela. Quando ganharam significação, já a imprensa e o golpismo estavam muito à sua frente, vindo apenas a aproveitar, para a consumação do seu propósito, os múltiplos e estimulantes erros da chamada “esquerda”.

A Constituição vigente até 64 foi rasgada, muito antes, pela imprensa. A pregação de Carlos Lacerda, de brilho incomum, afrontava a democracia e, pelas leis de então, como seria pelas atuais, era crime indiscutível contra a Constituição já desde os primeiros anos 50.

E seus seguidores, só por sê-lo, puderam multiplicar a ação agitadora em jornais, TV, rádio e Forças Armadas tão sem incômodo quanto seu líder.

Se há siameses na relação de imprensa e democracia, então são trigêmeas. A imprensa tem, de um lado, a democracia e, de outro, o regime de prepotência. O que vier estará bom. E exceção na imprensa, se houver, não passa de exceção.

Comentário
Texto muito correto e, até espantoso de ser escrito neste veículo, já que trata da própria história do jornal em que ele escreve, a Folha, notória apoiadora do regime (até cedendo carros para os torturadores da Oban, como é consabido). 

De fato, de todos os jornalistas tucanos, o Jânio de Freitas é dos “menos piores”. É um tucano com alguns pudores, digamos assim.

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