quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Presunção da culpa - por Guilherme Scalzilli (Blog homônimo)

Fico estarrecido com a passividade dos comentaristas jurídicos perante as decisões do Supremo Tribunal Federal no julgamento do chamado “mensalão”. O leitor até encontra uma sensata minoria de análises que destoam da baba hidrófoba predominante nos veículos oposicionistas, mas suas reflexões raramente enfocam aspectos legais. Ao mesmo tempo, o máximo que recebemos dos textos especializados na mídia são elogios de cunho “republicano” e exibições de conhecimento retórico, mais interessadas em (não) explicar os votos do quem em debatê-los a fundo.

Apesar de leigos no assunto, podemos realizar um esboço de exegese discursiva nos pronunciamentos dos ministros. Então sobressaem alguns detalhes importantes: a abordagem excepcional do processo, uma propensão a exigir que os réus forneçam as provas de sua inocência, o protagonismo de indícios circunstanciais, a invalidação de documentos e testemunhos que atestam defesas, a desqualificação de matéria aprovada no Legislativo e a conseqüente flexibilização de direitos.

Supondo-as corretas, e tomadas na sua essência, tais impressões deveriam causar assombro generalizado. Claro, arbitrariedades que atingem petistas não escandalizam o bravo moralismo das redações. Mas imaginemos uma hipótese desvairada: o procurador-geral da República pede a condenação de pessoas ligadas a José Serra por considerar que seu enriquecimento simultâneo ao processo de privatização das telecomunicações, no governo Fernando Henrique Cardoso, é sinal de ilegalidade. Aproveitando a citação de um deputado tucano, o STF decide julgar sumariamente outras dez pessoas, de uma vez, negando-lhes prerrogativas recursais. Mesmo não havendo provas robustas contra os réus, os ministros afirmam que seus contrapontos são insuficientes e… condenam Verônica Serra a vários anos de cadeia.

Como reagiriam os jurisconsultos da combativa imprensa paulista? E a OAB, guardiã da ética nacional?

Embora a filiação política dos acusados tenha óbvia influência nas decisões atuais, ela não serve aqui para uma resposta igualmente partidarizada, com sinal contrário, a favor dos bodes expiatórios do momento. Trata-se apenas de utilizar um pouco de bom senso na observação dos fatos, recusando a fantasia da “imparcialidade” omissa que faz da ignorância técnica e da polarização eleitoral estratégias de cerceamento do contraditório. Pelo que deixam subentendido, limpas de suas conotações ideológicas, as argumentações dos ministros são assustadoras porque envolvem qualquer cidadão brasileiro que um dia se encontre nas mesmas circunstâncias kafkianas. Os precedentes interpretativos que o tribunal vem estabelecendo podem transformar o propagado combate à impunidade num teatro persecutório de conseqüências imprevisíveis.

Não foi apenas por culpa da morosidade do Judiciário que o STF tomou para si a tarefa de punir os “mensaleiros” petistas. Foi porque os ministros sabem que a maioria dos réus dificilmente seria condenada nas instâncias inferiores, graças, em boa parte, à fragilidade das evidências colhidas pela acusação, mas também por causa dos diversos estratagemas processuais de que eles disporiam.

Acontece que esses estratagemas, incluindo os requisitos probatórios consagrados, além de legítimos e soberanos, existem para resguardar inocentes e para homogeneizar procedimentos, livrando-os de oscilações oportunistas. Não são artimanhas espertas para livrar sacripantas; são as bases da própria segurança jurídica do país. Garantem que a observância de uma lei não pode, por natureza, ser punida. Que contratos e testemunhos têm validade judicial. Que a mera antipatia (ou a clarividência) de um julgador não é suficiente para meter alguém no xilindró. E que suas decisões estejam imunes à influência dos veículos de comunicação.

Rompendo a teia de pressupostos objetivos que norteiam o rito processual, o STF revela que está inclinado a condenar os acusados, não a julgá-los segundo os elementos materiais disponíveis. Além de moderar os anseios dos eleitores e de legislar sem representatividade, o tribunal agora assume o papel de executor das próprias regras insondáveis. Não deixa sequer o consolo de que seus vereditos estabelecem bases para futuramente punir contraventores, pois, como sabemos, a corte não prima pela coerência. Ademais, se os juízes de outros níveis passarem a seguir os mesmos critérios, a predominância da subjetividade transformará o caótico sistema judiciário brasileiro numa loteria metafísica, ao sabor de indícios e presunções.

Antes de endossar os discutíveis avanços da tribunocracia em exercício, os profissionais da área deveriam refletir sobre o que de fato ocorre naquelas enfadonhas sessões de Brasília. Nem que fosse apenas para tranquilizar a clientela.

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