quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Será que a civilização consegue sobreviver ao capitalismo? - por Umberto Eco (UOL)

Existe o "capitalismo" e existe o "capitalismo real".

O termo "capitalismo" geralmente é usado quando nos referimos ao sistema econômico adotado pelos Estados Unidos, onde existe uma intervenção estatal substancial, que vai desde os subsídios para a inovação criativa até a política governamental de seguro para os bancos, que é "grande-demais-para-fracassar".

O sistema é altamente monopolizado, o que limita ainda mais a confiança no mercado – e ele fica cada vez mais monopolizado: nos últimos 20 anos, a participação nos lucros das 200 maiores empresas aumentou consideravelmente, relata o acadêmico Robert W. McChesney em seu novo livro "Digital Disconnect".

Hoje, "capitalismo" é um termo comumente utilizado para descrever sistemas nos quais não há capitalistas: por exemplo, o conglomerado Mondragon, que pertence a seus trabalhadores e está localizado no País Basco, na Espanha, ou as empresas de propriedade dos trabalhadores atualmente em expansão no norte do estado de Ohio – e que geralmente têm o apoio de conservadores. Ambos os casos são discutidos em um importante trabalho realizado pelo acadêmico Gar Alperovitz.

Alguns podem até mesmo usar o termo "capitalismo" para se referir à democracia industrial preconizada por John Dewey, um dos mais importantes filósofos sociais dos EUA no final do século 19 e início do século 20.

Dewey pediu que os trabalhadores fossem "donos do seu próprio destino industrial" e que todas as instituições fossem colocadas sob controle público, incluindo os meios de produção, de troca, as empresas de publicidade, de transportes e de comunicação. Sem isso, Dewey argumenta, a política continuará a ser "a sombra lançada sobre a sociedade pelas grandes empresas".

A democracia truncada que Dewey condena foi deixada em frangalhos nos últimos anos. Agora, o controle do governo está estritamente concentrado no topo da pirâmide de renda, enquanto que a grande maioria "lá de baixo" foi praticamente marginalizada. O atual sistema político-econômico é uma forma de plutocracia, divergindo acentuadamente da democracia – se por este conceito nos referirmos a arranjos políticos em que a política é significativamente influenciada pela vontade do público.

Houve sérios debates ao longo dos anos sobre se o capitalismo é compatível com a democracia. Se nos concentrarmos nas democracias realmente capitalistas, a questão pode ser efetivamente respondida: o capitalismo e a democracia são radicalmente incompatíveis.

Parece-me improvável que a civilização seja capaz de sobreviver à democracia realmente capitalista e à democracia fortemente atenuada que a acompanha. Mas será que uma democracia funcional poderia fazer a diferença?

Vamos nos concentrar no problema mais crítico e imediato que se apresenta diante da civilização: a catástrofe ambiental. As políticas e as atitudes do público divergem acentuadamente, como é frequentemente o caso nas democracias realmente capitalistas. A natureza dessa lacuna é examinada em vários artigos na edição atual da Daedalus, revista da Academia Norte-americana de Artes e Ciências.

A pesquisadora Kelly Sims Gallagher acredita que "109 países aprovaram alguma forma de política de energia renovável, e 118 países fixaram metas para a energia renovável. Em contraste, os Estados Unidos não adotaram nenhum conjunto consistente e estável de políticas nacionais para promover o uso de energias renováveis".

Não é a opinião pública que desvia a política norte-americana das questões internacionais. Muito pelo contrário. A opinião pública está muito mais próxima da realidade mundial do que as políticas do governo dos EUA refletem – e ela se mostra muito mais favorável às ações necessárias para que se enfrente o provável desastre ambiental previsto pelo esmagador consenso científico. E esse desastre ambiental não está muito longe: muito provavelmente, ele deverá afetar a vida de nossos netos.

Como Jon A. Krosnick e Bo MacInnis informam na Daedalus: "uma maioria esmagadora tem se mostrado favorável às medidas adotadas pelo governo federal para reduzir a quantidade de emissões de gases de efeito estufa gerados pelas companhias de energia para produzir energia elétrica. Em 2006, 86% dos pesquisados se disseram favoráveis a exigir – ou a estimular por meio de benefícios fiscais – que essas companhias reduzam a quantidade de gases de efeito estufa que emitem. Nesse mesmo ano, 87% dos entrevistados se disseram favoráveis à concessão de benefícios fiscais para empresas de serviços públicos que produzissem mais energia a partir da água, do vento ou da luz solar. Essas maiorias se mantiveram entre 2006 e 2010, e diminuíram um pouco depois disso."

O fato de o público ser influenciado pela ciência é profundamente preocupante para aqueles que dominam a economia e a política estatal.

Uma representação bem atual da preocupação que paira na cabeça dessas pessoas é a "Lei para a Melhoria do Entendimento sobre as Questões Ambientais" (Environmental Literacy Improvement Act), proposta aos legislativos estaduais pelo American Legislative Exchange Council (ALEC – Conselho Legislativo Norte-americano), um grupo de lobby financiado por empresas e que cria leis para atender às necessidades do setor empresarial e dos extremamente ricos.

A lei do ALEC determina o "ensino equilibrado" da ciência do clima nas salas de aula do ensino médio. "Ensino equilibrado" é uma frase-código que significa negar, em sala de aula, a existência das mudanças climáticas para "equilibrar" a ciência climática tradicional. É algo análogo ao "ensino equilibrado" defendido por criacionistas para permitir o ensino da "ciência da criação" nas escolas públicas. A legislação baseada nos modelos do ALEC já foi introduzida em vários estados norte-americanos.

É claro que tudo isso está revestido com uma retórica sobre o ensino do pensamento crítico – uma boa ideia, não há dúvida, mas é fácil pensar em exemplos muito melhores do que uma questão que ameaça a nossa sobrevivência e foi escolhida devido a sua importância para os lucros corporativos.

Reportagens sobre o tema das mudanças climáticas geralmente apresentam discussões entre os dois lados desse embate.

Um lado é composto pela esmagadora maioria dos cientistas, pelas principais universidades nacionais de ciências, pelas revistas científicas profissionais e pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC ou Intergovernmental Panel on Climate Change) da Organização das Nações Unidas (ONU).

Eles concordam que o aquecimento global está ocorrendo, que há um componente humano substancial provocando esse aquecimento, que a situação é grave e, talvez, terrível, e que muito em breve, provavelmente dentro de algumas décadas, o mundo poderá chegar a um momento decisivo em que o processo terá avançado de forma tão drástica que será irreversível, com graves consequências sociais e econômicas. É raro encontrar um consenso como esse em questões científicas complexas.

O outro lado é composto pelos céticos, incluindo alguns cientistas respeitados que alertam que há muitos pontos desconhecidos nesse debate – o que significa que as coisas podem não ser tão ruins quanto se imagina, ou que podem ser piores.

Preteridos desse debate artificial está um grupo muito maior de céticos: conceituados cientistas do clima para quem os relatórios regulares do IPCC são conservadores demais. E provas constantes têm mostrado que esses cientistas estão certos, infelizmente.

Aparentemente, a campanha de propaganda surtiu algum efeito sobre a opinião pública dos EUA, que é mais cética do que o restante do mundo. Mas o efeito não foi significativo o suficiente para satisfazer os "mestres". Provavelmente é por isso que setores do mundo corporativo estão lançando seu ataque contra o sistema educacional, num esforço para combater a perigosa tendência do público de prestar atenção às conclusões das pesquisas científicas.

Durante a Reunião de Inverno do Comitê Nacional Republicano, algumas semanas atrás, o governador da Louisiana, Bobby Jindal, advertiu a liderança que "temos que deixar de ser o partido dos idiotas. Temos que parar de insultar a inteligência dos eleitores".

Dentro do sistema das democracias realmente capitalistas é de extrema importância que nos transformemos no país dos idiotas, que não sejamos enganados pela ciência e pela racionalidade no interesse dos ganhos de curto prazo dos senhores da economia e do sistema político – e danem-se as consequências.

Estes compromissos estão profundamente enraizados nas doutrinas fundamentalistas de mercado, que são pregadas dentro das democracias realmente capitalistas, embora sejam observados de forma altamente seletiva, de modo a sustentar um estado poderoso que serve à riqueza e ao poder.

As doutrinas oficiais sofrem de uma série de "ineficiências de mercado" familiares, entre elas o fracasso em levar em conta os efeitos sobre os outros nas transações de mercado. As consequências dessas "externalidades" podem ser substanciais. A atual crise financeira ilustra bem essa situação. A origem da crise está, em parte, nos grandes bancos e nos bancos de investimento, que ignoraram o "risco sistêmico" – a possibilidade de todo o sistema entrar em colapso – quando aceitaram realizar operações de risco.

A catástrofe ambiental é muito mais grave: a externalidade que está sendo ignorada é o destino de nossa espécie. E, nesse caso, não há para onde correr, de chapéu na mão, pedindo por um resgate.

No futuro, os historiadores (se houver algum historiador para contar a história) vão olhar para trás, para este curioso espetáculo que está tomando forma no início do século 21. Pela primeira vez na história humana, os seres humanos estão enfrentando a perspectiva significativa da ocorrência de uma grave calamidade como resultado de suas ações – ações que estão reduzindo nossas perspectivas de termos uma sobrevivência decente.

Esses historiadores observarão que o país mais rico e mais poderoso da história mundial, que goza de vantagens incomparáveis, está liderando os esforços para intensificar o provável desastre. Liderando os esforços para preservar as condições em que os nossos descendentes imediatos possam ter uma vida digna estão as chamadas sociedades "primitivas": as sociedades tribais, indígenas e aborígenes.

Os países que têm grandes e influentes populações indígenas estão bem na frente na busca por preservar o planeta. Os países que provocaram a extinção e a marginalização extrema de suas populações indígenas estão correndo rumo à destruição.

Assim, o Equador, país que conta com uma grande população indígena, está buscando a ajuda dos países ricos para conseguir manter suas substanciais reservas de petróleo em seu subsolo – onde elas deveriam ficar.

Enquanto isso, os EUA e o Canadá estão queimando combustíveis fósseis, incluindo o petróleo existente nas extremamente perigosas areias betuminosas do Canadá, e o fazem o mais rápido e completamente possível, enquanto saúdam as maravilhas de um século de independência energética (em grande parte sem sentido) sem olhar para o lado para observarem como o mundo poderá ficar após o cumprimento desse seu compromisso extravagante para com a autodestruição.

Esta observação resume a situação: em todo o mundo, as sociedades indígenas estão lutando para proteger o que às vezes chamamos de "os direitos da natureza", enquanto as pessoas civilizadas e sofisticadas zombam de toda essa bobagem.

Isso tudo é exatamente o oposto do que a racionalidade poderia prever – a menos que essa seja uma forma distorcida de razão que passa através do filtro das democracias realmente capitalistas.


Tradutora: Cláudia Gonçalves

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