quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O discurso de Tancredo analisando o governo Getúlio Vargas - Blog do Nassif / Jornal GGN

Do livro Perfis Parlamentares - Tancredo Neves

O governo Getúlio Vargas

Senhores:

Hoje, passado o tumulto das paixões e superada a luta pré-eleitoral dos interesses políticos, venho falar-vos de Getúlio Vargas e dos acontecimentos que mancharam os idos de agosto de traição, de sangue e de tragédia.

Não quero acrescentar mais um “depoimento pessoal” a tantos que já foram divulgados, limitando-me a um relato de fatos e circunstâncias já mais do que notórios. Pretendo analisar as trágicas ocorrências que culminaram no sacrifício do glorioso Presidente, de maneira a ressaltar a verdade, escoimada do entulho de mentiras e de infâmias, com que foi propositadamente oculta pela imprensa facciosa e inimiga jurada de Getúlio Vargas e de seu programa de governo.

É preciso antes de mais nada procurar identificar as origens do sentimento anti-Vargas, para poder entender os objetivos da sanha implacável dos seus inimigos. Não se explica a desapiedada campanha movida contra o grande Estadista por motivações de simples ódio pessoal. Existe algo de mais concreto, de mais substancial.

A mobilização da imprensa e particularmente de certa imprensa do Rio de Janeiro contra Getúlio Vargas teve início antes mesmo do seu empossamento no governo. Inelegibilidade e maioria absoluta foram as duas primeiras batalhas que travou contra aqueles que se recusavam a aceitar o categórico pronunciamento das urnas em 1950, que o foi buscar na solidão dos pagos longínquos de São Borja, para trazê-lo nos seus braços até o Palácio do Catete. Inelegibilidade e maioria absoluta, duas teses absurdas, anticonstitucionais, espúrias, que não resistiram à sua própria fraqueza, ruindo em meio ao desaponto dos que se opunham desesperadamente ao cumprimento da vontade sacrossanta do povo, consubstanciada na sentença das urnas.

Mas não descansaram os seus adversários. Não se limitaram à ação legítima da oposição democrática. Enveredaram, desde o primeiro dia de sua investidura, pelo caminho da injúria e do insulto, detratando cada um de seus atos, condenando a priori todos os seus esforços para resolver os nossos graves problemas econômicos, financeiros e administrativos.

Nessa campanha insidiosa e constante procuravam minar a autoridade do seu governo, enquanto aguardavam um pretexto suficiente para deflagrar um movimento de maiores proporções, suscetível de provocar o seu afastamento do governo.

O “caso” da correspondência com Perón, cavilosamente urdido e preparado para desencadear uma crise nacional, não obteve os efeitos esperados, pois a opinião pública não se deixou embair pela trama mentirosa e cerebrina destinada a apontar ao povo o Presidente da República como um traidor da Pátria. A exploração em torno da morte do repórter Nestor Moreira também não bastou para se erigir em motivo suficiente do movimento, visando ao afastamento do Presidente da República do poder, a que ascendera pela vontade exclusiva do povo.

Como último e desesperado recurso, promoveram os seus inimigos o processo constitucional do impeachment. Aí, no terreno seguro dos meios democráticos, Getúlio Vargas infligiu aos seus adversários calamitosa e desalentadora derrota, com os próprios deputados do partido oposicionista votando contra o descabelado processo de impeachment.

Justamente quando as forças oposicionistas amargavam essa derrota definitiva, quando lavrava nos seus arraiais a desunião, e quando os seus líderes se recriminavam mutuamente pelo revés sofrido, quando a figura do Presidente da República mais se agigantava no meio da sanha odienta de seus inimigos, eis que a fatalidade lhes oferece o esperado butim, consubstanciado no lamentável atentado em que pereceu um oficial das nossas Forças Armadas.

Agarraram-se os mentores da campanha contra Getúlio Vargas ao cadáver do major Vaz com a fúria desesperada do náufrago que depara com a derradeira tábua de salvação. Figuras corvinas de grandes líderes não deixaram um só minuto a alça do esquife mortuário do infortunado oficial, na sofreguidão mal contida do assalto ao poder.

Não é preciso lembrar aqui o que foram os vinte dias subseqüentes ao atentado. Está na mente de todos nós a orgia histérica de certa imprensa, que mal escondia o seu júbilo, a sua alegria neurótica nas dobras do crepe funerário das lamentações. “Afinal o grande pretexto”, era o que se lia nas entrelinhas das manchetes sensacionalistas. De nada valeu a serenidade do grande Presidente, que na segurança da mais completa inocência, concedeu todas as facilidades para a apuração do crime, entregou as investigações àqueles que mais se encarniçavam em inculpá-lo e abriu as próprias portas de sua residência oficial ao torvo Santo Ofício da conspiração.

Cumprindo as etapas de um plano friamente traçado, as operações da conjura se desenvolveram a contento. Às sucessivas reuniões e contrarreuniões, ao amontoado de notas e mais notas oficiais e oficiosas, todas hipocritamente prometendo a salvaguarda dos Poderes constituídos, seguiu-se o “pronunciamento” armado em grande estilo, no desfecho tipicamente latino-americano de uma crise política. Somente a grandeza do sacrifício de Getúlio Vargas pôde dar ao desenlace, tão caracteristicamente Banana Republic, foros de legitimidade.

Antes de entrar na análise desses inglórios acontecimentos é justo indagar: onde está a origem desse estranho rancor, desse ódio invencível, dessa incansável atividade contra o governo de Vargas, legitimamente constituído?

Dois objetivos supremos guiaram toda a vida pública de Getúlio Vargas: redenção das massas trabalhadoras e nacionalismo econômico. Esses dois termos não constituem postulados demagógicos e enganosos. A sinceridade do grande Presidente é atestada pelo acervo gigantesco de realizações empreendidas no sentido do cumprimento de seus dois propósitos supremos: toda a legislação trabalhista que emancipou o nosso operariado e todo o monumental edifício da previdência social estão aí para comprovar a constância dos esforços de Vargas em promover o bem-estar das classes menos favorecidas pela fortuna.

São fatos concretos de que decorrem para os trabalhadores benefícios auferidos dia a dia, não são teses desenvolvidas teoricamente em conferências eruditas, com a assistência florida da nossa melhor elite dirigente.

Volta Redonda, a espantosa industrialização de São Paulo, a Petrobras, as colossais obras das usinas elétricas também testemunham a sua convicção nacionalista com argumentos mais concretos do que os meros enunciados de convicção pessoal. Nacionalismo econômico e redenção das massas trabalhadoras, inspiração da vida de um grande estadista, constituíram também o motivo e a causa da sua morte. Interesses tentaculares viam contrariados os seus planos e em perigo as suas possibilidades de lucro. O Brasil autossuficiente significava a perda de um importante mercado, nesta hora em que os mercados escasseiam e os estoques se acumulam em proporções assustadoras.

Os nossos progressos na siderurgia, a afirmação das espantosas qualidades técnicas do nosso operário, foram a advertência que pôs de sobreaviso os trustes interessados em nos manter no regime de feitoria de dinheiros alheios. A hidrelétrica de Paulo Afonso, em vias de conclusão, agravava as preocupações fundadas dos que temiam ver-nos alçados à categoria das nações economicamente independentes.

A Petrobras com todas as possibilidades de imediato funcionamento e de sucesso, graças às fontes seguras de recursos financeiros, lançou o pânico nos domínios da grande finança imperialista. Quando nos lançamos na elaboração do formidável plano nacional de eletrificação, consubstanciado na Eletrobrás, percebeu o truste que não era mais possível qualquer hesitação.

Lançou-se à luta, com todos os fabulosos recursos das suas arcas pejadas do dinheiro sorvido das nações subdesenvolvidas, para destruir no Brasil um governo que era responsável pela audácia nacional de querer livrar-se dos grilhões do capitalismo internacional.

Toda a campanha se limitava no objetivo principal de liquidar Getúlio Vargas, porque ele simbolizava toda a resistência aos dinheiros poderosos de além-mar. Por outro lado, encontraram os interesses financeiros internacionais um aliado vigoroso no nosso capitalismo desalmado, nos nossos homens de fortuna, que, não se contentando com os lucros assombrosos aqui auferidos, passaram a hostilizar o governo Getúlio Vargas em proporção correspondente às medidas que adotava para mitigar os sofrimentos do operariado e para dar-lhes condições de vida consentâneas com a condição humana.

A fixação dos novos níveis de salários mínimos foi o elemento catalisador de toda a tempestade de ódio que se formava nos horizontes capitalistas, ameaçando o governo Vargas. Assinando o decreto de primeiro de maio, que veio assegurar ao nosso trabalhador apenas o indispensável para não morrer de fome, Getúlio Vargas assinou a sua sentença de morte. Eis o panorama das forças sinistras que se conluiaram contra o grande Estadista.

Vejamos agora os instrumentos de que se serviram. Um partido oposicionista conservador e antitrabalhista, por duas vezes derrotado em eleições democráticas, em cujas fileiras – é preciso reconhecer – existem também verdadeiros patriotas iludidos na certeza de que servem aos seus ideais e não a interesses antinacionais – eis o elemento de fachada, a brigada de choque da grande conjura. Uma imprensa conservadora também, ligada aos interesses dos grandes capitalistas nacionais e, por conseguinte, amalgamada no ódio a Getúlio Vargas e ao seu programa de governo, eis a máquina de agitação da opinião pública e de infiltração no seio das Forças Armadas, através do ludíbrio das boas intenções de oficiais dignos e bem intencionados, mas, ao mesmo tempo, suscetíveis a uma determinada espécie de propaganda, por isso mesmo que saídos das classes mais abastadas.

Por detrás de tudo isso e acima de tudo isso, agia um grupo de notórios representantes do capital estrangeiro, de ricaços interessados em salvaguardar as suas gordas fontes de lucros em divisas. Por serem sabidamente ligados aos dinheiros estrangeiros, souberam manter-se no mais completo anonimato, arquitetando o plano cientificamente traçado de destruição do governo Vargas e velando pela sua execução, nos seus mínimos detalhes. Esses foram os verdadeiros autores da conspiração e os principais responsáveis pela morte de Vargas. Homens na sua maioria de grande valor intelectual, nomes de repercussão nacional. Esses tristes inconfidentes da traição e da morte tinham nas mãos todos os cordões que movimentaram os títeres da implacável conspiração.

É digno de nota que entre eles figuraram até mesmo antigos ministros de Vargas, pessoas que gozavam da sua maior confiança e que, ainda no mais aceso da crise, procuravam o glorioso Presidente para hipotecar-lhe solidariedade. Mas, os trinta dinheiros da traição, sobre os quais se lançaram sofregamente, identificaram perante a Nação os Judas Iscariotes da traição ao povo.

No que toca às Forças Armadas cumpre ressaltar que o ato de indisciplina e deslealdade ao seu Chefe Supremo, a que foram levadas pela influência desagregadora de alguns líderes ambiciosos, é em grande parte devido à ação de um grupo de oficiais da Escola Superior de Guerra. Essa Escola, criada para proporcionar aos oficiais uma formação mais esmerada de seus conhecimentos técnicos, papel a que se ateve durante o governo anterior, cedo se transformou num centro de exploração política e de atividades conspiratórias. Os seus currículos incluem disciplinas a cujo trato os militares não estavam acostumados. Fugindo ao simples aperfeiçoamento dos conhecimentos necessários à formação de um chefe militar, a Escola proporcionou aos oficiais que ali se matricularam a aventura sedutora de enveredar por caminhos inteiramente novos para os seus espíritos não acostumados com os assuntos de uma autêntica formação humanística e universitária.

A Filosofia, a Sociologia, a hermenêutica dos fatos históricos, o contato com a Teoria do Estado, com o Direito Público e com o Direito Internacional, tudo isso era horizonte novo para a louvável curiosidade intelectual dos nossos membros das Classes Armadas, a que se juntaram civis também interessados nessa espécie de estudos. O contato com tantos problemas novos, o estudo das questões administrativas e as lições e conferências administradas por alguns professores, convictos de que estavam formando a nata da mentalidade nacional, os jovens turcos encarregados de salvar o Brasil, criaram na Escola Superior de Guerra a mentalidade do messianismo exaltado.

Cônscios da sua qualidade de depositários da sagrada missão redentora, os árdegos oficiais não tardaram em descobrir o seu líder, um misto de Nagib e Salazar, fluente no manejo da palavra, senhor de uma erudição um tanto maçuda e indigesta, mas, por isso mesmo, mais fascinante para os que não estavam na medida de julgá-la nos seus verdadeiros méritos e, ainda por cima, com a tradição de uma antiga campanha revolucionária, onde teria patenteado virtudes de um condottieri militar. Não foi difícil aos maquiavélicos arquitetos da reação, aos políticos profissionais duas vezes fragorosamente repudiados nas urnas e aos jornais a serviço da conspirata, atrair para si o grupo dos salvadores nacionais e o seu belo Nagib de gabinete. A insinuação destes junto aos seus colegas de farda também não foi difícil. Os autênticos oficiais, os homens da tropa, os que consagraram a sua vida ao serviço leal da Pátria e das autoridades legalmente constituídas, foram, na sua boa-fé, empolgados pelo messianismo da gente preparada cuidadosamente na Praia Vermelha para a ação de quebrar a confiança dos soldados na autoridade do governo. Papel de relevância na trama desempenhou também outro chefe militar, candidato repetidamente derrotado pelos votos do povo, mas que nunca desistiu de dirigir esse mesmo povo que insistia em repudiá-lo.

Aí está toda a maquinária da conjuração preparada e adestrada, que só aguardava um pretexto para se pôr em ação. O atentado da rua Tonelero foi a tão esperada cheville ouvrière da revolução preparada, em todos os seus pormenores, de antemão. Quando a serenidade e a inocência de Vargas, que, prestigiando de toda a forma o inquérito para a denúncia dos criminosos, punha em perigo o desenvolvimento da manobra insidiosa, recorreu-se ao famoso arquivo Gregório. É evidente que se o Presidente Vargas tivesse a menor suspeita de que o arquivo de Gregório Fortunato continha papéis que pudessem de qualquer forma comprometê-lo, teria providenciado a destruição de tais documentos. Para isso teve tempo de sobra. Que fez entretanto?

Timbrou em entregar às autoridades do famigerado inquérito do Galeão esse arquivo, depois tão explorado. Pode haver maior prova de boa-fé e de inocência? A campanha tomou novo vigor com o chamado “lamaçal” do “tenente” Gregório. Na realidade, as manchetes sensacionalistas superestimam o que foi encontrado no arquivo. Até telegramas de felicitações e agradecimentos de cumprimentos de aniversário foram divulgados como papéis abjetos, dignos da execração nacional. Afora propostas que nunca tiveram andamento ou execução, umas contas de armazém e os referidos documentos congratulatórios, pouco se aproveitou do famoso arquivo para denegrir o governo. Longe de mim tentar defender Gregório ou justificar os seus atos que possam ser verdadeiramente eivados de corrupção. Mas, ainda que ficasse provada a maior corrupção nas atividades desse empregado subalterno do Presidente, ainda que ficasse provada a conivência do governo com o crime da rua Tonelero, existiriam meios democráticos e legais de coibir o crime e punir os culpados.

Em outras terras, em países que escapam ao epíteto de Banana Republic, a que hoje fazemos inteiramente jus, que se faz se ocorre uma circunstância semelhante? Há exemplos recentes que ilustram assazmente o assunto. Durante o governo Truman, nos Estados Unidos, houve o escândalo dos chamados five percenters, figurões do mundo oficial que recebiam 5% dos grandes e vultosos contratos firmados por companhias particulares com o governo americano, em pagamento de uma advocacia administrativa em favor dos proponentes. A própria esposa do Presidente da República foi acusada de receber valiosos presentes para agir em favor dos que pleiteavam contratos com o governo. Houve inquéritos, apurou-se o assunto, condenou-se a quem de direito. A campanha presidencial de Eisenhower se aproveitou muito desse escândalo, fazendo da luta contra a corrupção um dos seus principais slogans. Não se tem, entretanto, notícia de que o Exército norte-americano se tenha imiscuído no assunto ou se tenha arrogado o direito de restaurar a dign
idade nacional ferida pelas negociatas administrativas. Faltava em West Point uma Escola Superior de Guerra. Não dispunham os americanos de um Torquemada façanhudo, investido por ato próprio das funções de inquisidor-mor da moralidade administrativa. Ainda no governo Truman apurou-se em Nova Iorque, num inquérito divulgado pela televisão, a participação do prefeito daquela cidade em todas as atividades ilícitas de apostas em cavalos de corridas e de exploração da prostituição. Ficou evidenciado que o prefeito O’Dwyer recebia gordas maquias decorrentes da sua condescendência para com aquelas atividades ilegítimas. A punição que lhe coube foi uma comissão do embaixador dos Estados Unidos no México.

Acaso o exército americano, as forças armadas da grande Nação se movimentaram em expedição punitiva contra a corrupção? Ainda agora investiga-se na Itália o chamado “escândalo do século”, envolvendo até mesmo o tráfico de drogas entorpecentes por parte de pessoas ligadas ao governo. Cogita-se de apurar as responsabilidades. Enquanto isso não se fizer, o parlamento não se considera em condições de retirar a confiança que depositara no seu premier. As forças armadas italianas estão inteiramente alheias ao assunto, como é seu dever, cuidando das suas atribuições e deixando os assuntos políticos para os políticos. Mais recentemente ainda descobriu-se na França uma perigosa rede de espionagem que compromete altas autoridades do governo. Investiga-se o assunto, que será certamente resolvido de maneira a atender aos interesses da defesa desse grande país. Não se tem, entretanto, notícia de reuniões e mais reuniões de oficiais das forças armadas para discutir o affaire, nem de notas enfáticas de promessa de defesa da
ordem constituída. Em países como esses, a promessa é desnecessária. Ou melhor, a promessa é feita quando o oficial assume o seu compromisso de honra, pois é para a defesa da ordem que ele é pago e não para se arrogar o direito de julgar da legitimidade dos mandatos conferidos pelo povo aos seus governantes. (grifo meu)

Infelizmente, essa não foi a atitude das nossas Forças Armadas na crise de agosto último. Tivemos, para vergonha da Nação, que curvar-nos diante do imperativo truculento das soluções de força e de convencernos que politicamente ainda estamos no estágio das Banana Republics. Apesar do interesse manifesto do Chefe do Governo em apurar e punir os autores do atentado da rua Tonelero, apesar da sua inocência de qualquer ato de corrupção administrativa, a sede de poder dos seus adversários não esperou sequer pelo desfecho do inquérito. Não esperou muito provavelmente por já saber, de antemão, que o inquérito não incriminaria o Presidente ou qualquer pessoa de sua família. O intelecto da conjura precisava de uma última fagulha para desencadear a crise. Elaborou-se então uma artimanha cerebrina e intrincada: a dupla renúncia. O Sr. Café Filho deixou-se envolver na manobra. Ele, que foi amigo pessoal do glorioso Presidente, ele, que, mais do que ninguém, gozou da sua intimidade, ele, que era o companheiro alegre e constante das suas horas de lazer e frequentemente seu conselheiro em assuntos políticos, ele, o velho companheiro da jornada gloriosa de 1950, prestou-se a servir aos propósitos solertes dos conspiradores. Na véspera da madrugada triste de 24 de agosto, o Sr. Café Filho subiu à tribuna do Senado para pronunciar aquele estranho discurso. Como dupla renúncia? Podia o Sr. Café renunciar ao que não tinha? Podia ele abrir mão do que não era seu? Podia ele desistir daquilo que era apenas uma expectativa de cargo, de um projeto de mandato, de uma possibilidade de poder? O Sr. Café Filho não queria renunciar a coisa nenhuma. Não podia renunciar ao que não tinha.

O único objetivo do discurso, verdadeiro beijo de Judas na melancólica trama, era expor à Nação o Sr. Getúlio Vargas como um ser insensível e egoísta, como um político agarrado ao cargo, sem ouvidos para o clamor do povo e para os perigos que ameaçavam a nossa Pátria com uma autêntica guerra civil. De contrapartida, o discurso, laboriosamente arquitetado em todos os pormenores das suas frases bem pesadas, pintava à Nação o retrato de um Vice-Presidente modelo de abnegação e desprendimento. Pois bem, ainda depois de pronunciada essa estranha oração, tão grande era a estima e a confiança do Presidente Vargas no Sr. Café Filho, que, ao comentá-lo comigo, declarou-me que estava certo de que o Sr. Café procurara, daquela maneira, um recurso qualquer para defendê-lo. Não sabia então que o Sr. Café, apenas alçado ao Poder, apenas envergado a faixa presidencial ainda sangrando do seu nobre sacrifício, convidava para integrar o seu governo os mais tradicionais e virulentos inimigos do glorioso Presidente. Não sabia que, apenas elevado à Suprema Magistratura do País, o Sr. Café Filho se apressaria em atender aos interesses dos autores intelectuais da queda de Getúlio Vargas, dos agentes da finança internacional, quer dando imediata aprovação ao Plano Sakes & Klein, quer chamando para ocupar os postos-chave da administração os mais notórios advogados de dinheiros estrangeiros, quer acenando para os trustes com a revisão do esquema de aproveitamento do petróleo brasileiro em bases nacionalistas, quer promovendo a prisão em massa de operários sindicalizados de empresas estrangeiras, que reivindicavam os seus direitos numa greve passiva.

Getúlio Vargas está morto, mas o povo, que é o herdeiro de sua causa, julgará por ele os vendilhões da Pátria e os falsos profetas da salvação nacional. As eleições demonstraram que o povo repudiou o partido a serviço do reacionarismo que deseja nos conservar na dependência dos mercados estrangeiros. Ficou patente, hoje mais do que nunca, que as forças populistas, inspiradas pelos ideais de Vargas, reconquistarão o poder federal, esse poder que o povo, com os seus milhões de votos, colocou nas mãos de Getúlio Vargas e que os seus inimigos arrebataram pela força das armas. Os atuais detentores do poder devem apressar-se na satisfação de seus desígnios. Não lhes restará muito tempo para contentar aos seus patrões de além-mar. Em outubro de 1955, o povo, com as suas próprias mãos, fará justiça aos atos que praticarem no desempenho dos cargos que lhes vieram às mãos, amaldiçoados pelo sangue do maior dos brasileiros.

Senhores:

Com as minhas palavras não desejo agitar a opinião pública nem trazer um elemento a mais para a instabilidade política em que nos deixou a morte de Getúlio Vargas. Calei-me enquanto julguei que o governo atual, legalizado com o sangue de Vargas, perigava. Embora condenando os caminhos por que os governantes atuais chegaram ao poder, sentia que da sua estabilidade dependia a única esperança de uma verdadeira redemocratização do País. Hoje, depois da estupenda demonstração de vigor que o povo deu nas eleições de 3 de outubro, considero ultrapassada a crise e conjurado o perigo do nagibismo-salazarista. Por isso vos falo nesses termos, ditados pela verdade e pela franqueza.

É preciso que todos conheçam a verdade para que possam escolher, em sã consciência, os que nos governarão na plenitude do mandato recebido das mãos sagradas do povo, quando for passado o período de mando daqueles que arrebataram o poder à força das espadas. Na luta que agora encetamos, estou seguro de contar com o apoio de todos os patriotas que não acreditam ser a força das armas a instância suprema das decisões dos negócios políticos do nosso País. Se vencermos, nos rincões da fronteira remota de São Borja, no seio da terra generosa que o viu nascer, Getúlio Vargas repousará em paz, na tranquilidade de não ter subido em vão os degraus das aras da Pátria para o supremo sacrifício. Em verdade, será a sua morte o marco da redenção de todo um grande povo.

Comentário
O período democrático de Getúlio é, de fato, uma contradição para as esquerdas, já que ali houve avanços muito significativos para o país. Os conquistados em seu primeiro período, é bom frisar, foram arrancados pelo povo aos seus governantes. 
O Estado Novo, como é consabido, foi uma ditadura como outra qualquer.
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Há de se lembrar que FHC, em seu último discurso como senador, já eleito presidente no final de 94, disse que sua missão era acabar com a Era Vargas. É fácil compreender o que ele quis dizer com isto – e, se não acabou com tudo, foi longe em seu intento, muita coisa conseguiu destruir/privatizar.
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Outro ponto interessante é que quando sugeriram a Tancredo que nomeasse FHC para o seu ministério, este rechaçou convictamente: “Afastem este homem de mim. FHC é a maior goela da política”. Seu neto, contudo, não aprendeu a lição – bem ao contrário.
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A imprensa que Tancredo denunciava continua a mesmíssima – desde a tendência golpista até a ideologia.
Quanto a “certa imprensa do Rio de Janeiro”, dou um doce pra quem adivinhar a qual veículo de comunicação ele se referia. 

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