sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Fotografia - por Paul Berriff Productions

Oposição: procura-se - por Wanderley Guilherme dos Santos (Carta maior)

A crítica competente é fundamental para o desempenho de qualquer governo. Quanto a isso, estamos à míngua. A oposição brasileira é rústica como oposição.

Se depender da oposição o País não vai andar. A infantilidade de seus protestos explica o agônico socorro que está pedindo à descabelada desordem urbana. De seu próprio ventre, nada. Criticar a autoridade fiscal, por exemplo, por ter usado tributos e dotações dos leilões para fechar as contas equivale a desancar o quitandeiro porque equilibra o livro-caixa recebendo o que lhe devem. É curial que o governo troca tributação por serviços, administração e projetos. Lá uma vez ou outra parte dos impostos se transforma em subsídios diretos e indiretos ao consumo e às despesas dos grupos vulneráveis. Chama-se redistribuição de renda e vem ocorrendo há pouco mais de dez anos no Brasil. É isso que provoca espuma na garganta oposicionista e a faz perder o senso de ridículo.

Nenhuma oposição que se preze tenta condenar um governo por fazer uma parada técnica voltando de longa viagem. Aliás, nem mesmo se fosse para simples recuperação física, independente de considerações meteorológicas ou de segurança de vôo. Pois este foi um dos brados de guerra, sem eco, da semana oposicionista.


Desdobrar desembolsos no tempo é uma espécie de versão macroeconômica da compra a crédito, o uso calculado da renda e do gasto futuros. A dívida das pessoas deve ser compatível com a proporção comprometida da renda esperada face ao dispêndio incompressível que virá a ter. Trata-se de uma questão de ser ou não leviano em relação à própria economia. E é preciso muita leviandade para que eventuais desmandos, ou desvairada presunção, conduzam à falência. Desde a redemocratização de 1945 foram necessárias décadas dos mais variados governos, inclusive ditatoriais, até que os livrescos sábios do PSDB conseguissem a proeza de quebrar a economia brasileira três vezes em não mais do que oito anos.

Quando as mesmas vozes do passado esgoelam-se em advertências sobre a dívida pública, bruta ou como proporção do produto interno, com que diabos de autoridade pensam estar falando? Não possuem nenhuma imaginação ou criatividade e o bolor das receitas sugeridas tem um só resultado, se aviadas: desemprego. Existe uma crônica morbidez no pensamento conservador que o faz recuar diante da saúde e saudar os sintomas patológicos de vida social. Talvez por isso aplauda a proliferação dos micróbios (pequenos grupos de desordeiros, em geral), sem se dar conta de que estes são a hiperbólica evidência do fracasso oposicionista, ele mesmo.


Mas a pantomima máxima revela-se na busca de recordes. Os furos pelos quais compete a grande imprensa foram transferidos das páginas de esportes e da previsão do tempo para as manchetes, mas com significados distintos.
Excepcionais desempenhos em natação, maratona e salto a distância refletem o aprimoramento físico da espécie, o apuro no treino e a perseverança nos treinos. Já os indicadores de temperatura nos explicam o bem estar ou seu contrário em condições de exacerbado calor ou frio. Por isso comparam números de hoje com os de ontem ou de há dez anos conforme o caso. Mas as manchetes das primeiras páginas são pândegas. Títulos chamativos advertem que aumentou a ameaça inflacionária enquanto o texto explica que houve uma variação para mais no quarto dígito depois da vírgula, algo que não acontecia há dezoito, vinte e três ou não sei lá quantas semanas. Ou seja, o furo jornalístico não quer dizer absolutamente nada.

Pelo andar da carruagem é de se esperar escândalos informando que o desemprego na tarde de quarta feira passada foi o maior já registrado em tardes de quartas-feiras de anos bissextos. Ao anunciá-los os apresentadores de noticiários televisivos farão cara de fralda de bebê, suja.


Enquanto o País muda a pele, subverte rotinas, enfrenta e experimenta uma realidade inédita – a liquidação da miséria extrema – e veloz reestruturação de seus contingentes sociais, o reduto oposicionista balbucia indignações esfarrapadas. E a crítica competente é fundamental para o desempenho de qualquer governo. Quanto a isso, estamos à míngua. A oposição brasileira é rústica como oposição, não está preparada para governar.  

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Fotografia - por popkulturisten

Vem prá rua você também - por Wanderley Guilherme dos Santos (Carta Capital)

     O PSDB não chegou à direita pelas próprias pernas. Teve a ajuda do Partido dos Trabalhadores (PT) que se mudou para o centro, distendeu-o, e tornou praticamente inviável a existência de uma coalizão de centro esquerda. Aécio Neves nunca foi reformista, mas julgá-lo um direitista genético é exercício de ativista dogmático. O centro distendido sob hegemonia do PT empurrou a oposição para a vizinhança da extrema direita, precipitando a derrota intestina de José Serra, agarrado a um reacionarismo impensável em quem discursou no comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. À oposição restam bandeiras pragmaticamente vazias, tais como a encenada indignação moral e acenos genéricos de eficiência. Sem falar no reacionarismo religioso e a defesa de um livre mercadismo de fachada. Como é notório, só com brutal intervenção do Estado um governo de centro-direita será capaz de subverter a legislação petrolífera, os programas Mais-Médicos e Minha Casa, Minha Vida. Mesmo para fazê-los definhar um governo de centro-direita precisará de boa dose de coação sobre uma burocracia estatal comprometida com o progresso, ademais de extrair enorme boa vontade do Congresso Nacional. Esse mesmo Congresso, aviltado pela imprensa conservadora e pela esquerda caolha, foi a instituição que aprovou o regime de partilha do pré-sal, ainda no governo Lula, e tem apoiado as principais políticas sociais do governo Dilma Roussef. Uma política de liberalismo desenfreado só será possível com a transformação do Estado brasileiro em variante do bismarckismo alemão. O avesso do que o eleitorado conservador deseja.

     O centro estendido do PT também trouxe dificuldades para o campo progressista. A mais óbvia transparece na acusação de reacionarismo a qualquer opinião divergente, autônoma em relação à cadeia de comando dos líderes do centro-baleia, a começar pelas palavras de ordem do Partido dos Trabalhadores. Embutida na interdição esconde-se menor probabilidade de que deficiências reais de governança sejam proclamadas por aliados. Avanços sociais estão conectados a manifestações de inconformismo, sem automática identificação com a oposição do momento. Durante os governos Vargas e JK sucederam-se greves e passeatas a favor de políticas nacionalistas e de críticas a medidas específicas. As manifestações não atendiam a nenhuma convocação da direita, do tipo “Vem prá rua você também”, que atualmente apavora a esquerda e o governo. O governo opera com déficit de crítica consistente.

     Reflexo do ambiente intoxicado, o sindicalismo operário emudeceu. Limitado a manifestos plenos de estereótipos, copia a genérica pauta direitista – ensino público de qualidade (nunca haverá suficiente, o conhecimento progride), saúde pública, transporte, moradia, segurança. Elegibilidade para os analfabetos, que é bom, nada; participação dos trabalhadores na administração das grandes corporações, nem pensar. Não mais do que dois exemplos de uma pauta latente, ausente da cogitação sindical.  Os sindicatos não se recuperaram do choque de haver perdido o controle das ruas. Reescrever ideologicamente a história de junho de 2013 não garante a recuperação de iniciativa crível, seja por decreto, seja por currículo de glórias passadas. 

     Outra consequência da consolidação do centro expandido foi a instauração de um vazio institucional à esquerda, vicariamente ocupada por aglomerado de grupos heterogêneos. A coalizão parlamentar do governo tornou irrelevante o apoio da centro-esquerda. Sem considerar o PMDB, cuja análise não é simples, a coalizão do PT tem como coligados numéricos o PP/PROS, o PSD, o PR/PTdoB/ PRP, seguidos, até recentemente, pelo PSB,  em parte pelo PDT e pelo PCdoB. O total de cadeiras deste último grupo (PSB, PDT e PCdoB) não ultrapassava 56 lugares. Só o PP, o PR e o PROS detêm um conjunto de 89 cadeiras na Câmara dos Deputados. A cooperação costurada entre os partidos deixou o PT a vários passos de distância de seu parceiro ideológico adjacente, o PSB (24 cadeiras). O rumo do governo é vigiado pelo núcleo duro da centro-direita. Independente dos motivos do governador Eduardo Campos, cujas alianças provocam resistências entre os socialistas, a saída do PSB do governo só surpreende pelo tempo que demorou a acontecer. Para um partido que busca crescer nas eleições proporcionais pela via ideológica da centro-esquerda, talvez a oportunidade tenha sido perdida. A tentativa de enfiar uma cunha entre o centro expandido do PT e o PSDB sofre das dificuldades diante da coalizão no poder e da incoerência ao aceitar o direitismo do Rede como segundo em comando (e há quem duvide que o Rede seja mesmo o segundo em comando) além das oscilações na conduta do candidato Eduardo Campos.

     O vazio à esquerda tem sido ocupado por grupos inconformados com o estado do mundo, em geral. Desde logo, esse burburinho nada tem a ver com os “precariados” de Guy Standing (The Precariat – London, Bloomsbury, 2011), tese recém importada. Ao contrário de desempregados, trabalhadores temporários, classe média empobrecida e com miséria à vista, os manifestantes de junho de 2013 eram na maioria jovens de classe média ou empregados com salários acima de 2 salários mínimos (30,3% deles em 20 de junho de 2013, no Rio de Janeiro, segundo a Plus Marketing consultoria) e segmentos em processo de ascensão social.  Outras pesquisas registraram o nível superior de estudos de expressivo número de participantes. Economicamente, o elevado custo do meio utilizado para a mobilização – as redes sociais eletrônicas – exclui os presumidos “precariados” da frequência a participações. Vale registrar que, ao contrário da Europa, à intensidade das manifestações seguiu-se a rapidez de sua dissolução em números de manifestações, de participantes e de cidades contagiadas.

     Além do equívoco da classificação de “precariados”, é simplismo considerar que uma convocação fascista obteria tamanho sucesso. Houve a infiltração fascistóide posterior, que terminou por se apropriar da liderança dos acontecimentos. A fragilidade estratégica desses aglomerados, contudo, revelou-se na velocidade com que os grupos de professores, enfermeiras, a maioria de funcionários públicos, foram abandonando as marchas. Reconhecer as diferenças entre os movimentos de 2013 e os movimentos europeus permite supor que as manifestações não aderiram, aqui, ao precipitado diagnóstico de fracasso da social democracia brasileira. A rejeição atingia todas as formas de participação institucionalizada. O que havia e há é um vácuo desde que a marcha para o centro levou o governo a esconder sob inegáveis vitórias econômicas a pauta de modernização do pluralismo social brasileiro: aborto assistido, relações homo afetivas, regulamentação do uso de drogas recreativas, pesquisas com seres vivos, temas, entre outros, eliminados por imposição da direita do centro. A Presidência tornou-se forte parlamentarmente ao preço de se enfraquecer perante a sociedade em mudança.   

     Algo de novo existe. Trata-se de inédito tipo de intervenção política. Grosso modo, a análise do capitalismo toma por base as classes, as corporações profissionais e cristalizados grupos de interesse. Entendo que os movimentos recentes são constituídos pelo ajuntamento de atores menos abrangentes do que as classificações preponderantes. Eles proliferam como pequenas coletividades de exígua tolerância e com exigentes critérios de pertencimento. Denomino-os, sem ofensa, de “micróbios” (pequena vida), primeiro em razão de seu tamanho, e pelo fato de que não possuem denominador comum. Nem todos são patogênicos ou letais, que os há benéficos ao exercício da democracia. Nessa ecologia há lugar para micro legendas, como o PSTU e o PSOL, que encontram em tal cenário a rara oportunidade de serem notados. Comparecem também os grupos nanicos reivindicando direitos (moradores do bairro tal ou qual) ou só comemorando a própria existência, avessos a partidos, sindicatos ou corporações de ofício. São erupções intensas de vida política, mas de curta duração. Eficazes no curto prazo, sem influência em período mais extenso. Eleições são fenômenos de curto prazo, mas o fenômeno dos “micróbios” não é só eleitoralmente relevante. É uma criação da sociedade contemporânea e, portanto, compatível com a convocatória: “Vem prá rua você também”.  Os democratas deviam adotá-la e voltar às ruas para conquistá-las.


Comentário
     É normal que os textos de Wanderley Guilherme dos Santos sejam seminais, possibilitando múltiplas interpretações e análises a partir dos diversos pontos por quais ele passa. 

     Permito-me discordar radicalmente de um deles, o de que o sindicalismo operário emudeceu e perdeu a liderança por conta da pauta equivocada. Na verdade, o sindicalismo se esclerosou porque suas lideranças desejam primariamente sua perpetuação no poder, esta é a égide que tem guiado TODAS as correntes sindicais, mesmo as (supostamente) mais a esquerda. O Sindicalismo esta encastelado em si mesmo, com uma liderança completamente desconexa com as massas que deveriam representar. A burocracia do sindicalismo, suas deploráveis disputas internas, as regalias para a direção sindical, e para finalizar, a ausência de um horizonte socialista como meta – como bem afirma o filósofo esloveno Slavoj Žižek, nenhuma causa ou movimento social tem importância senão focar sua crítica no sistema capitalista –, todos estes fatores somados geraram uma casta que é a que compõe o movimento sindicalista atual, muito distante da relevância que deveria ter.

     Se alguém pudesse fazer uma pesquisa com as direções dos sindicatos, tenho certeza, a maioria delas é composta por pessoas que estão há mais de dez anos (!) longe de suas bases de trabalho de origem – pra onde estas lideranças, se tivessem responsabilidade, deveriam regressar, para oxigenar na lida diária com uma boa formação os trabalhadores ao redor.
     Todo este distanciamento só pode ser financiado, claro, com o imposto sindical, esta excrescência do Estado Novo, que permite que existam sindicatos sem absolutamente nenhuma representatividade sustentados por um imposto, e não pela contribuição de seus associados como deveria ser. 
     A melhor coisa a ocorrer seria a extinção do imposto vinculada ao fim da unicidade. Isto impediria a criação de sindicatos que não tenham condições de arcar sozinhos com seus custos e, agruparia dentro de um mesmo sindicato os trabalhadores de uma empresa. Hoje, tragicamente, vários sindicatos representam pequenas parcelas dos trabalhadores de uma mesma empresa, com data-bases, remunerações, direitos, etc., bem diferentes, uma zorra que fragiliza imensamente a luta sindical.


     Esta "casta" que compõe a decadente elite sindical atual se assemelha muito a que compunha, através dos quadros do partidão, o sindicalismo pelego e distanciado dos trabalhadores dos anos derradeiros da ditadura militar. O PT surgiu exatamente no combate a isto. Hoje padece-se do mesmo mal - e a solução ainda não se avizinha. 
     Por ironia da história, hoje são os quadros oriundos especialmente do PT que compõe o sindicalismo que não representa mais os trabalhadores, mas apenas seus espúrios interesses.  

P.S.: a expressão “centro distendido” foi um pouco imprecisa. O melhor é chamar de centro-direita, mesmo, que é o que o governo do PT faz.

Vista panorâmica de Nebulosa - por Hubble (Videnksab)

Uma lista das ações secretas que a NSA pode fazer - por Jody Avirgan (wnyc.org / Jornal GGN)

Os documentos vazados por Snowden revelaram os truques sujos da NSA para monitorar as comunicações e coletar dados em todo o mundo. 

Mas Barack Obama continuou a fazer a apologia do estado de vigilância, insistindo que a NSA não abusou do seu poder e que ela, apenas reagiu ao atentado do 11/9.

Ao mencionar o atentado, Obama relembra, ao povo americano, que, sem a espionagem da NSA sobre os seus hábitos pornográficos, outro ataque terrorista iria, fatalmente, acontecer. 

O enorme poder atribuído a NSA deve, imediatamente, colocar para escanteio qualquer perspectiva que ela possa ser reformada por este ou qualquer presidente futuro sem o apoio maciço e generalizado da sociedade americana.
Aqui, uma lista das ações secretas que nós sabemos, agora, que a NSA pode fazer, com base em informações de mídia e de outros documentos disponíveis ao público - até agora. 

A lista elaborada por The Brian Lehrer mostra o que a NSA pode fazer:

rastrear os números de ambas as partes em uma chamada telefônica, bem como a localização, hora e duração, 
hackear telefones e mensagens de texto dos chineses, 
configurar internet cafés falsos, 
espionar os telefones celulares dos líderes estrangeiros, 
tocar os cabos de fibra óptica submarinos, 
rastrear a comunicação dentro das organizações de mídia, como Al Jazeera, 
invadir o sistema de vídeo conferência da ONU, 
monitorar transações bancárias, 
monitorar mensagens de texto, 
acessar seu e-mail, chat e histórico de navegação web, 
mapear suas redes sociais, 
acessar seus dados de aplicativos de smartphones, 
tenta entrar em redes secretas como Tor, desviando usuários para canais menos seguros, 
penetrar, sob disfarces, dentro de embaixadas para ter acesso mais próximo de redes estrangeiras, 
criar postos de escuta no topo de edifícios para monitorar as comunicações em uma cidade, 
criar um falso LinkedIn, 
rastrear as reservas em hotéis de luxo, 
interceptar, previamente, os pontos de discussão que serão apresentados por Ban Ki-moon no encontro com Obama, 
quebrar códigos de criptografia de celulares, 
invadir os computadores que não estão conectados à Internet através de ondas de rádio, (Esclarecimento - a NSA pode acessar computadores através de ondas de rádio onde existam dispositivos ocultos já instalados)
interceptar chamadas telefônicas através da criação de estações rádio-base falsas, 
acessar, remotamente, um computador através da criação de uma conexão sem fio falsa, 
instalar falsos cartões SIM para então controlar um telefone celular, 
simular um pen drive USB que é, realmente, um dispositivo de monitoramento, 
quebrar todos os tipos de criptografia sofisticada de computador. (a NSA está  tentando alcançar esta capacidade)
entrar em jogos online e monitorar a comunicação, 
interceptar as comunicações entre aeronaves e aeroportos, 
(Update) interceptar, fisicamente, entregas, abrir pacotes e fazer alterações nos dispositivos.

Tudo em todo o discurso de Obama foi mais do mesmo: divulgou e promoveu o estado de vigilância aos americanos preocupados com a espionagem governamental, mas que não se dedicam o suficiente, politicamente, para enxergar as besteiras através do marketing presidencial.

E pensar que estes são apenas os poderes da NSA que foram revelados pela mídia.

Machu Picchu - por kiplingtravel (fotografia)

Os 85 mais ricos do mundo têm o mesmo patrimônio de metade da população - por BBC Brasil

Apesar da diminuição na última década, Oxfam afirma que desigualdade no Brasil e na América Latina ainda é grande
Um relatório da ONG britânica Oxfam divulgado nesta segunda-feira mostra que o patrimônio das 85 pessoas mais ricas do mundo equivale às posses de metade da população mundial.

Segundo o documento chamado Working for the Few ("Trabalhando Para Poucos", em tradução livre), as 85 pessoas mais ricas do mundo têm um patrimônio de US$ 1,7 trilhão, o que equivale ao patrimônio de 3,5 bilhões de pessoas, as mais pobres do mundo.

O relatório ainda afirma que a riqueza do 1% das pessoas mais ricas do mundo equivale a um total de US$ 110 trilhões, 65 vezes a riqueza total da metade mais pobre da população mundial.

A Oxfam observou em seu relatório que, nos últimos 25 anos, a riqueza ficou cada vez mais concentrada nas mãos de poucos.

"Este fenômeno global levou a uma situação na qual 1% das famílias do mundo são donas de quase metade (46%) da riqueza do mundo", afirmou o documento.

"No último ano, 210 pessoas se tornaram bilionárias, juntando-se a um seleto grupo de 1.426 indivíduos com um valor líquido combinado de US$ 5,4 trilhões", destaca o relatório.

"É chocante que no século 21 metade da população do mundo - 3,5 bilhões de pessoas - não tenham mais do que a minúscula elite cujos números podem caber confortavelmente em um ônibus de dois andares", afirmou Winnie Byanyima, diretora-executiva da Oxfam.

Para Byanyima, "em países desenvolvidos e em desenvolvimento estão cada vez mais vivendo em um mundo em que as taxas de juros mais baixas, a melhor saúde e educação e a oportunidade de influenciar estão sendo dadas não apenas para os ricos mas para os filhos deles também".

"Sem um esforço concentrado para enfrentar a desigualdade, a cascata de privilégios e de desvantagens vai continuar pelas gerações. Em breve vamos viver em um mundo onde a igualdade de oportunidades é apenas um sonho", acrescentou.

Publicado dias antes do Fórum Econômico Mundial em Davos, o relatório detalha o impacto da crescente desigualdade em países desenvolvidos e outros em desenvolvimento.

América Latina e Brasil

O relatório da Oxfam apontou que alguns países, especialmente na América Latina, estão conseguindo ir contra esta tendência, diminuindo a desigualdade na última década.

"Entre os países do G20, as economias emergentes geralmente eram aquelas com maiores níveis de desigualdade (incluindo África do Sul, Brasil, México, Rússia, Argentina, China e Turquia) enquanto que os países desenvolvidos tendiam a ter níveis menores de desigualdade (França, Alemanha, Canadá, Itália e Austrália)", afirmou o documento.

"Mas até isto está mudando, e agora todos os países de alta renda do G20 (exceto a Coreia do Sul) estão vivendo o crescimento da desigualdade, enquanto o Brasil, México e Argentina estão vendo um declínio nos níveis de desigualdade."

A Oxfam destaca o caso brasileiro, apontando que o país teve "sucesso significativo na redução da desigualdade desde o início do novo século".

"Em parte devido ao crescente gasto público social, uma ênfase no gasto com saúde pública e educação, um programa de transferência de renda de larga escala que impõe condições para o recebimento (Bolsa Família) e um aumento no salário mínimo que subiu mais de 50% em termos reais desde 2003", afirmou o relatório.

A Oxfam alerta que a "democracia ainda é frágil e a desigualdade ainda é muito alta na região, mas a tendência mostra que problemas que eram insolúveis, as enormes disparidades de renda, podem na verdade ser enfrentados com intervenções políticas".

Leis e paraísos fiscais

A Oxfam também fez uma pesquisa em seis países (Brasil, Espanha, Índia, África do Sul, Grã-Bretanha e Estados Unidos) e mostrou que a maioria dos entrevistados acredita que as leis são distorcidas para favorecer os ricos.
Entre os países pesquisados, a Oxfam destaca a Espanha, onde oito em cada dez pessoas concorda com essa afirmação sobre as leis.

A ONG também destaca outro grande problema relacionado ao dinheiro que não paga impostos, ficando em paraísos fiscais.

"Globalmente, os indivíduos e companhias mais ricos escondem trilhões de dólares dos impostos em uma rede de paraísos fiscais no mundo todo - estima-se que US$ 21 trilhões estão escondidos sem registros", informou a ONG em seu relatório.

Segundo a ONG, que vai enviar representantes a Davos, os participantes do Fórum Econômico Mundial têm o poder de reverter o aumento da desigualdade.

A Oxfam pede que os participantes do fórum se comprometam a não sonegar impostos em seus países ou em países onde têm investimento, não usar a riqueza econômica para conseguir favores políticos que prejudiquem a democracia, apoiar os impostos progressivos sobre patrimônio e renda, enfrentar o sigilo financeiro e sonegação de impostos entre outras recomendações.


Além disso, a ONG também recomenda o estabelecimento de uma meta global para acabar com a desigualdade econômica extrema em todos os países, uma regulamentação maior dos mercados para promover crescimento sustentável e igualitário e a diminuição dos poderes dos ricos de influenciar os processos políticos.

Fotografia - por mygreenland

Diogo Mainardi paga mico na Globo News - por Eduardo Guimarães (Blog da Cidadania)

Espalhou-se pela internet entrevista que a empresária paulista Luiza Helena Trajano Inácio Rodrigues, atual presidente da rede de varejo Magazine Luiza, concedeu ao programa Manhattan Connection, da Globo News, e que foi ao ar na noite do último domingo.

Para o apresentador Lucas Mendes, a empresária é “Simplesmente Luiza”, pois “Assim ela é tratada pela presidente Dilma Rousseff e pelos próprios faxineiros” – supõe-se que de sua empresa.

Mendes qualificou Luiza como “Um fenômeno do comércio brasileiro pelas vendas e pela gestão” e, em sua primeira pergunta a ela, deu ao telespectador a impressão de que tinha diante de si um tipo raro de empresária, o tipo otimista.

Atente para a pergunta de Mendes, leitor. Deixa clara a razão pela qual a empresária foi convidada para um programa cujo objetivo, há anos, tem sido espalhar pessimismo com o Brasil.

Lucas Mendes: “Você não esconde seu otimismo pelo Brasil, nem pela outra presidente, e diz que a culpa desse pessimismo é nossa, da imprensa. Eu acho que esse economista sentado aí do seu lado discorda”.

Uau! Pensei que sobreviria um massacre. Até porque, Luiza é uma mulher de modos simples. Tem aquele sotaque meio caipira do interior paulista, fala um português coloquial, pois, apesar de ter nascido na capital, sua tia – também Luiza, de quem herdou o negócio – fundou em Franca, interior de São Paulo, a primeira loja da rede que a sobrinha edificaria.

O tal economista que parecia que iria demolir as posições de Luiza foi o também apresentador do programa Ricardo Amorim. Porém, a expectativa se frustrou. Perguntou apenas se o seu colega Caio Blinder, que na semana passada dissera que “O varejo brasileiro está em crise”, tinha razão.

Luiza, obviamente, disse que não. Citou dados do IDV (Instituto de Desenvolvimento do Varejo). Segundo o instituto, o comércio varejista brasileiro cresceu 5,9% em 2013 e só as redes de lojas vinculadas a esse instituto geraram 631 mil empregos.

Luiza ainda teve que explicar ao já titubeante Blinder que o Brasil é “Diferente dos Estados Unidos”. Nessa explicação, a vitoriosa empresária teve que fazer ver ao jornalista o que tem sido dito exaustivamente neste blog, que o atual modelo de desenvolvimento brasileiro, hoje intrinsecamente baseado no consumo de massas, não pode estar esgotado em um país em que apenas 7% ou 8% do povo têm televisão de tela plana, em que apenas 54% têm máquina de lavar…

Enfim, Luiza teve que explicar que, com tanto brasileiro sem produtos que nos EUA qualquer um tem, o modelo de consumo de massas não pode estar “esgotado”.

Blinder, meio atônito com a aula que recebeu de uma empresária que transformou uma pequena loja do interior de São Paulo numa holding que compete hoje com as grandes redes de varejo brasileiras, balbuciou alguma coisa sobre “bolha de consumo” e foi perguntar sobre “rolezinhos”.

Mais adiante, insatisfeito, Lucas Mendes passou a bola a ele, ao próprio, a ninguém mais, ninguém menos do que o “temível” Diogo Mainardi. Seria ele que conseguiria mostrar que aquela mega empresária tão otimista com o país não sabe o que fala?

Antes de prosseguir, devo dizer que esse programa praticou uma covardia. Não se coloca para debater economia pessoas que não têm o mesmo preparo.

Detalhe: a covardia foi com Mendes, Amorim, Blinder e Mainardi.

O expatriado em Veneza – sabe Deus por que – foi logo vestindo aquele seu pretenso estilo irônico, irreverente, desassombrado, mas que não passa de pretensão porque tal estilo requer atributos intelectuais que ele, ao longo do programa, deixou ver que não tem.

Em tom professoral, Mainardi começou a “explicar” a uma empresária desse quilate que “Todos os fatores que determinaram o crescimento do varejo” e que ela acabara de citar a Blinder teriam “Murchado” porque “Os juros estão subindo, o crédito diminui, a inadimplência aumentou pelo segundo ano consecutivo” etc., etc.

E tascou uma pergunta insolente, em sua tática de tentar intimidar quem não tinha condição: “Quando é que você vai vender suas lojas para a Amazon?”.

Luiza, com o semblante sério, questionou as informações que Mainardi acabara de divulgar e prometeu lhe passar os dados corretos por e-mail. Começou dizendo que “A inadimplência está totalmente sob controle”. Nesse momento, ouve-se sorriso de deboche de Mainardi, que a interrompe: “Aumentou em 2012 e aumentou em 2013”.

Mostrando concentração, Luiza desmentiu o interlocutor: “Não! O que o que aumentou foi a inadimplência geral focada”. Explicou que a inadimplência no varejo não aumentou, diminuiu. E que nunca tivemos, no Brasil, um índice de inadimplência tão bom quanto em 2013.

Mainardi insiste: “Na sua loja…

Luiza rebate: “Não, não é na minha loja, é no Brasil”.

Mainardi não se dá por vencido e diz que os dados “da Serasa” seriam “diferentes”. Novamente, Luiza diz que ele está errado e que vai lhe passar os dados corretos.

A segunda parte desse debate que me é mais cara foi ela ter dito um fato mais do que evidente, mas que ninguém consegue dizer na grande imprensa. A declaração textual de Luiza, que vou reproduzir abaixo, tem sido repetida à exaustão neste blog:

Como é que fala que a bolha acabou? Nós precisaremos construir 23 milhões de [unidades do programa] Minha Casa Minha Vida pro brasileiro ter um nível social adequado aos países desenvolvidos. Como que a gente fala que é bolha? Bolha são 23 milhões de casas para 23 milhões de pessoas que mora (sic) com o sogro, com a sogra pagando 400 reais de aluguel. Nós tivemos três década perdida (sic)”.

Luiza volta a prometer a Mainardi que irá lhe enviar os dados da inadimplência por email, ao que ele responde com um sorriso debochado e com a petulante frase “Me poupe (sic), Luiza”.

Aquela que o colega de Mainardi disse, no início do programa, ser “Um fenômeno do comércio brasileiro pelas vendas e pela gestão” não se abalou e continuou ensinando ao insolente especialista em nada que ninguém ia comprar suas lojas. E lhe deu mais algumas explicações técnicas sobre as mudanças que poderão ocorrer no mercado nos próximos anos e sobre como suas empresas irão enfrentá-las.

A artilharia contra Luiza ainda tentou prosseguir. Amorim, o economista, deu como “prova” do “desastre” que vive anunciando que as grandes redes de varejo brasileiras não figuram entre as maiores do mundo…

Foi aí que Luiza matou a pau explicando que o varejo no Brasil não era nada até “cinco, seis anos atrás”, que era “muito esquecido”, e que ainda está “engatinhando”, o que, claro, desmonta a tese de “esgotamento” do modelo de consumo de massas.

Amorim, o economista, ficou caladinho.

Foi nesse momento que Mendes, possivelmente após ter consultado a produção do programa, reconheceu que Luiza tem razão na questão da inadimplência. E mudou para assunto mais ameno.

De fato, Luiza tem razão. A inadimplência “focada” que ela admitiu a Mainardi que subiu é a inadimplência seca, que não leva em conta fatores sazonais. É a que mede a Serasa de Mainardi. São, porém, dados brutos.

Há que levar em conta, por exemplo, que naquela determinada época do ano há sempre um aumento da inadimplência. Se não se levar esse fator em conta realmente a taxa será considerada em alta, mas não é assim que os dados devem ser interpretados.

Para esclarecer melhor, vale ler, abaixo, trecho de boletim da Boa Vista Serviços, administradora do SCPC (Serviço Central de Proteção ao Crédito).

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Inadimplência cai 0,4% em 2013

13 janeiro, 2014

Os registros de inadimplência caíram 0,4% em 2013, em todo o país, conforme apuração da Boa Vista Serviços, administradora do SCPC (Serviço Central de Proteção ao Crédito). Em dezembro, contra novembro de 2013, houve redução de 4,5%,  descontados os efeitos sazonais.

Ao longo dos primeiros seis meses de 2013, os registros de inadimplência mantiveram a queda iniciada no final de 2012. Entretanto, a partir do segundo semestre, após uma reversão temporária desta tendência, o indicador encerrou o ano em queda, com nível menor que o registrado em dezembro do ano anterior.

A melhoria do quadro da inadimplência pode ser justificada pela continuidade de fatores como aumento dos rendimentos reais, baixo desemprego, queda dos juros (*), entre outros. Além disso, em 2013 houve um grande ajuste do mercado de crédito, tornando-o mais saudável, com credores mais seletivos e consumidores mais cautelosos (…)

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Como se vê, Mainardi disse bobagem – que a inadimplência aumentou pelo segundo ano consecutivo. A matéria da Boa Vista mostra que a inadimplência aumentou em 2012, mas caiu no ano passado. Mainardi pagou um mico.

Esse fato é extremamente eloquente porque deixa ver a falta de compromisso dessa mídia terrorista com os fatos. Põe gente que não entende nada do mercado para dizer o que o patrão quer que seja dito e o expectador desavisado compra como se fosse fato.

Fato mesmo é que ri muito ao ver a incrível Luiza surrar verbalmente Diogo Mainardi. Ria sozinho. Não só pelo que ela disse – e que reproduzi acima –, mas pela forma como disse – com sua linguagem coloquial e despretensiosa.

Toda essa conversa durou, mais ou menos, uns 15 minutos. Vale muito a pena assistir. Aqui, o vídeo em canal alternativo, pois a Globo mandou retirar do You Tube a versão acessível por lá.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Hera - por Sutthiwat Dechakamphu (Arte digital - Coolvibe)

A culpa é das vítimas - por Pádua Fernandes (Blog do Nassif)

"Será que tem culpa o Estado dos presos se amotinarem, de desejar fugir, de desejar matar todos que se coloquem entre eles e a rua? A culpa foi das vítimas, que iniciaram a rebelião [...]. Enquanto na China são mortos 30 mil condenados de maior periculosidade por ano, enquanto em alguns países da América são mortos ou lançados na selva um grande número de presos irrecuperáveis, não se pode reclamar do Brasil, onde eles vivem protegidos da chuva e das necessidades alimentares, mantidos pelo Estado com dificuldades orçamentárias, que lhes dão privilégio em relação aos pobres pais de família de salário mínimo." (Desembargador Pinheiro Franco, do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao negar pedido de indenização de Ionice Urbano da Luz, mãe de um dos presos mortos no massacre. Referência: FERREIRA, Lúcia Moraes Abreu, MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, MACHADO, Maíra Rocha. Massacre do Carandiru: Vinte anos sem responsabilização. Novos Estudos, 94, novembro 2012, p. 5-29.

O estudo que cito acima é brilhante, e mostra bem como a polícia e o ministério público, por razões que ainda não foram estudadas, foram incapazes de investigar tanto o governador quanto o secretário de segurança da época no Massacre do Carandiru, e como o poder judiciário falhou seguidamente ao longo dos processos.

A passagem citada é a própria epígrafe desse artigo, em que se chega à formulação lapidar: "a culpa é das vítimas". Todo o resto da fala não faz muito sentido e é necessário, de fato, ter a sensibilidade social de um magistrado típico para pensar que os encarcerados no Brasil são pessoas privilegiadas. A escolha da China como padrão de comparação também comove, tendo em vista os parâmetros democráticos com que se poderia comparar o Brasil. Porém, na sintética frase, temos uma síntese da polícia lato sensu, na qual se pode incluir o judiciário.

Lembro agora de um vídeo sobre Foucault, Michel Foucault par lui-même (Michel Foucault por ele mesmo), de Philippe Calderon. Não é ruim. A partir dos 27 minutos, perguntam para Foucault qual é a função de um juiz na sociedade; responde: "A que ele serve? Se eu fosse maldoso, coisa que não sou, mas o direi de qualquer forma, ele serve, no fundo, para permitir à polícia funcionar. [...] A justiça está a serviço da polícia; historicamente e, de fato, institucionalmente."

A partir dos vinte oito minutos, Foucault fala do "discurso" que o juiz quer obter do réu: que este declare o juiz inocente...

O que é apenas um ponto da questão. Pois não seria melhor que a parte nem mesmo pudesse chegar ao juiz? Ou, melhor, que nem mesmo houvesse processo? Ou que o processo não terminasse? Ou terminasse tarde demais? A criatividade da inefetividade do processo, ou melhor, da efetividade do processo para a inefetividade da justiça (não o judiciário, veja bem) vai além do que o filósofo francês ousou pensar.

Se a culpa é das vítimas, por que pensar, conjecturo, que haveria assassinos? Não seriam necessários... Um corpo destroçado com todos os dentes arrancados seria um exemplo, pois, de suicídio. Tendo em vista que trato tanto de temas de justiça de transição, poderia lembrar de execuções pela polícia ou pelas forças armadas disfarçados em "suicídios", como foram os casos de Manoel Fiel Filho,Olavo Hanssen, Vladimir Herzog, apenas para mencionar aqueles sobre que escrevi neste blogue.

Não é necessário fazer esse exercício de voltar ao passado recente, porém, para verificar exemplos de pessoas, para usar a palavra de Artaud, "suicidadas"; desta vez, porém, não por fazer oposição política. Menciono o protesto relativo à morte do adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos, no último dia 17, em que se fez ver este cartaz: "Desde 64 quem é torturado e assassinado foi suicidado".

O rapaz de 17 anos foi encontrado dia 11 deste mês; ele estava em uma "balada" para homossexuais no centro de São Paulo; descubro que, por causa da violência, formaram-se "famílias LBGT" para se protegerem de crimes de ódio.

Exagero? Os crimes de motivação homofóbica no Brasil têm crescido segundo o Relatório sobre violência homofóbica no Brasil: Ano 2012, da Secretaria de Direitos Humanos do governo federal. Entre 2011 e 2012, houve um aumento de 46,6% de vítimas, e de 166,09% de denúncias:

 

Ele se separou dos amigos para ir ao metrô República; provavelmente, no caminho foi atacado.

A morte foi registrada como suicídio, o que aumentou a revolta causada pela morte; mesmo o governo federal, via Secretaria de Direitos Humanos, afirmou que "As circunstâncias do episódio e as condições do corpo da vítima, segundo relatos dos familiares, indicam que se trata de mais um crime de ódio e intolerância motivado por homofobia."

No fim do ano passado, com apoio dos setores governistas, o projeto de lei PLC-22, que tipificaria o crime de homofobia, equiparando-o ao de racismo, foi arquivado. O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) escreveu um interessante texto relacionando a morte do adolescente com esse crime, comparando a situação do Brasil com a do Chile, onde crime semelhante levou a uma lei contra a homofobia - e num governo de direita, de um ex-aliado de Pinochet. O deputado escreve que as mesmas forças teocráticas (ou seja, antidemocráticas) que enterraram o projeto haviam feito o governo cancelar o programa Escola sem Homofobia e, ademais, alimentam o discurso de ódio que legitima esses crimes.

Creio que muitos dos que se levantaram contra o projeto não quisessem a escola sem homofobia porque preferem uma escola sem homossexuais... O que leva a outra questão. O discurso do suicídio talvez seja alimentado, além de uma eventual tendência oficial a subestimar os crimes violentos e melhorar as estatísticas de segurança, por um imaginário social de extermínio. Um desejo de que estas pessoas não mais existam. Porém, em vez de enfrentar as raízes disso, para tranquilizar a consciência, nada melhor do que pensar que elas morreriam de qualquer forma em razão de seu estilo de vida, que homossexualidade é igual a suicídio...

Lembro agora de outro episódio, que mostra a importância da defesa da laicidade do Estado para a democracia: em setembro de 2013, duas moças, Joana Palhares e Yunka Mihura, beijaram-se em praça pública em São Sebastião enquanto o pastor-deputado federal Marcos Feliciano dirigia um culto religioso; ele chamou a Guarda Civil Metropolitana para prendê-las. Palhares declarou: "Nunca imaginei que seria agredida, violentada, algemada e presa por beijar uma mulher em público." Elas foram tratadas como culpadas, e não os que violam a laicidade.

Torna-se então mais compreensível o ridículo discurso dos que afirmam que há uma "ditadura gay" no Brasil, ou um "gayzismo" perigoso que corrompe a sociedade. Ainda mais neste governo federal, que, como os outros, deixou de lado esta minoria na repartição do poder.

Não são apenas os idiotas e os loucos que acham que está no poder, e ditatorialmente, um grupo que é perseguido, vilipendiado e morto nas ruas, e derrotado (na simples busca da igualdade) no congresso nacional e no poder executivo. Faltam os desonestos: aqueles que estão incomodados com o fato de que os homossexuais, embora sofram essa violência, ainda existam, e repetirão esse mantra, insatisfeitos com suas fantasias de extermínio não se realizarem.

Enfim, a culpa é das vítimas, por existirem.

Falando em extermínio, imagine-se outro quadro, um vasto afresco composto de diversas pinceladas, que retrata grupos...

- que esperam a atrasadíssima demarcação de suas terras, que deveria ter sido terminada em 1993 (artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias); 
- que, em certa região do país, apresentam um alto índice de suicídio, equivalente a um genocídio silencioso; 
- que estão sofrendo uma aliança das grandes empresas beneficiadas pelo orçamento federal com o poder executivo; 
- que têm sido ameaçados com uma vasta ofensiva legislativa contra si, segundo o levantamento de Artionka Capiberibe e Oiara Bonilla; 
- que seriam amparados tanto pelo direito constitucional quanto pelo direito internacional, mas o judiciário (com o STF à frente) resolveu rasgar essas normas em nome da "ordem" e da "economia", ressuscitando doutrinas da ditadura militar; 
- que sejam assediados pela polícia em desrespeito às garantias constitucionais; 
- contra que se fez um leilão ao qual, seja por deboche ou mau gosto,se deu o nome de "leilão da resistência", embora sejam estes povos que estejam sob ataque e estejam resistindo; 
- que o governo atual tenha emperrado o reconhecimento do direito sobre suas terras; 
- que sofreu genocídio também durante a ditadura militar, a tal ponto que, de alguns, sobraram 2% da população; 
que seus rios estejam sendo envenenados por aqueles que desejam expulsá-los; 
- que o governo federal tenha criado uma "guarda pretoriana" que protege os empreendimentos de invasão e/ou destruição de suas terras...
... mas interrompo a lista, não por falta de tinta para novas pinceladas, mas porque essa pintura é feita com sangue e o seu peso faria o afresco derrubar todo o prédio.

Diante dessa situação, que é, em geral, a dos povos indígenas no Brasil, os porta-vozes dos grandes negócios, muito bem acomodados na grande imprensa, repetem diuturnamente certos absurdos: o de que a melhor coisa é ser índio, pois assim se tem "segurança fundiária" (!); ou ode que o Brasil vive uma "ditadura antropológica"; que os laudos antropológicos são produzidos por alucinações do Santo Daime; que os índios têm terras demais; ou o absurdo de a tevê mais vista no Brasil manipular a edição para que membro do ISA pareça dizer o contrário do que falou; ou o fato de os índios continuarem a ser o que são seja chamado de "reetnização" por quem não aceita a ideia de que os índios não acabaram e quer fazer crer que, se hoje eles reivindicam seus modos de vida, é porque há gente muito oportunista que deseja aumentar as próprias chances de ser baleada por empresas de segurança...

Por sinal, se tanto os antropólogos, aos índios e aos homossexuais são acusados de "ditadura" por esses porta-vozes, a finalidade é justamente a de disfarçar quem está realmente exercendo um poder autoritário e promovendo os preconceitos.

Por que toda essa gigantesca campanha de desinformação e violência é necessária, com apoio de tantos poderes oficiais e oficiosos? Porque os índios resistem e, para essas vozes contrárias aos direitos humanos, são culpados de existir, de o secular genocídio no Brasil não ter se cumprido de todo. Quando são acusados de atrapalharem o progresso, o desenvolvimento, de serem "preguiçosos", de quererem manter suas próprias terras etc., estão sendo acusados, na verdade, de serem o que são.

E contra esse modo de vida, o mínimo que aqueles poderes cúmplices desejam é o etnocídio. Eduardo Viveiros de Castro, nesta recente conferência sobre a destruição do mundo, o antropólogo diz que estamos em uma espécie de "ofensiva final contra os povos indígenas": http://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/os-indios-sao-especialistas-em-fim-do-mundo-diz-o-antropologo-eduardo-viveiros-de-castro  Para tanto, temos este novo "colonialismo", que, à diferença do antigo, é interno e, à semelhança dos velhos tempos coloniais, usa o racismo em prol dos interesses do grande capital.

O ecocídio, claro, faz parte desse quadro de ruínas; a propósito, sugiro, novamente, a leitura da primeira e da segunda partes da lista de leituras sobre o ecocídio de Belo Monte, que Idelber Avelar comentou.

Nesse sentido, não há nada mais velho do que os avanços ilegais do que se chama de agronegócio. Velhos também os ataques contra os homossexuais. O que pode ser novo é a reação, a resistência.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Fotografia - por Lorenz Holder (Inspiration Hut)

A Operação Banqueiro e como se uniram as duas maiores fábricas de dossiês da República - por Luis Nassif (Jornal GGN)

O livro “Operação Banqueiro”, do jornalista Rubens Valente, caminha para se tornar um clássico na devassa das relações Estado-lobbies privados, especialmente o capítulo “As ameaças do grande credor”, que descreve a correspondência do super-lobista Roberto Amaral com Daniel Dantas, o banqueiro do Opportunity, reportando e-mails e conversas que manteve em 2002 com o então presidente Fernando Henrique Cardoso e o candidato José Serra.
As mensagens constam de dez CDs remetidos à Procuradoria Geral da República em Brasília – e que permaneceram na gaveta do PGR Roberto Gurgel, que não tomou providência em relação ao seu conteúdo.
Nas mensagens da FHC, Amaral insiste para que se impeça a justiça de Cayman de entregar a relação de contas de brasileiros nos fundos do Opportunity. Amaral acenava com os riscos de se abrir os precedentes e, depois, o Ministério Público Federal investir sobre as contas do Banco Matrix – de propriedade de André Lara Rezende e Luiz Carlos Mendonça de Barros, figuras ativas no processo de privatização. E, principalmente, sobre as contas de Ricardo Sérgio, colocado por Serra na vice-presidência internacional do Banco do Brasil.
Parte das mensagens já havia sido divulgada em 2011 pela revista Época (http://tinyurl.com/l3crc72).
São relevantes para demonstrar que o Opportunity tornou-se uma questão de Estado, com envolvimento direto de FHC (tratado como "pessoa" nos emails entre Amaral e Dantas, José Serra (alcunhado de "Niger") e Andréa Matarazzo (tratado como "Conde"). Dantas era alcunhado de "grande credor".
Mostra também como Gilmar Mendes, então na AGU (Advocacia Geral da União), foi acionado em questões que interessavam ao Opportunity junto à ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações).
Não apenas por isso, mas pelo levantamento minucioso de decisões do STF (Supremo Tribunal Federal), das pressões sobre procuradores e policiais, da atividade pró-Dantas de advogados ligados ao PT, trata-se de obra definitiva para se entender os meandros da estratégia que resultou na anulação da Operação Satiagraha.
Em entrevista a Sérgio Lyrio, da Carta Capital, Valente afirma que “sem Mendes na presidência do Supremo, nem todo o prestígio de Dantas teria sido capaz de reverter o jogo de forma tão espetacular”.
É mais do que isso. Nem Mendes nem Dantas individualmente teriam o poder de influenciar os quatro grandes grupos de mídia. O único personagem com capacidade de unir todas as pontas em torno de uma bandeira maior - a blindagem de sua candidatura à presidência da República - é José Serra.
Satiagraha foi a Primeira Guerra Mundial da mídia, um ensaio para as guerras seguintes, nas eleições de 2010 em diante.
As fábricas de dossiês
Valente não aborda o papel da mídia e a maneira como eram construídos os dossiês. Os dados abaixo são de levantamentos antigos do Blog, aos quais se somam algumas revelações adicionais do livro.
Na série "O caso de Veja" havia mostrado a maneira como Dantas e a Veja se valiam de dossiês para fuzilar não apenas adversários políticos, mas magistrados e jornalistas  que ousassem investir contra os interesses do banqueiro. É a mesma tecnologia - de dossiês e assassinatos de reputação, com ampla repercussão midiática - que se reproduziriam no modo Cachoeira-Veja de atuar e, antes, no modo Serra exemplificado no caso Lunus.
Dois capítulos da série merecem atenção especial:
O caso Edson Vidigal - (): Desembargador do STJ, Vidigal confirmou uma sentença contra Dantas. Veja fuzilou-o em uma matéria com acusações dúbias. A matéria informava que as acusações mereceram uma representação contra ele no CNJ. Vai-se conferir a representação, e ela tomava como base a própria reportagem da Veja. Ou seja, a revista noticiou a representação mesmo antes da denúncia que serviu de base para ela ser publicada.
O caso Márcia Cunha - uma juíza séria, do Rio, foi fuzilada pela Folha por contrariar interesses de Dantas e ter recusado proposta de suborno. Tempos depois, constatou-se sua inocência e comprovou-se a tentativa de suborno.
O livro de Valente passa ao largo da atuação da mídia, mas permite colocar as últimas pedras do quebra cabeça para entender as sementes do modelo de manipulação visando resultados políticos e jurídicos, e que se torna padrão na atuação de Dantas, de Serra (com o ápice do caso da "bolinha de papel") e de Cachoeira.
O infográfico abaixo mostra os principais atores desse período de uso intensivo de factoides, que se inicia com o caso Lunus, em 2002, e se encerra (pelo menos nesta fase) com dois episódios simultâneos: a CPI de Carlinhos Cachoeira e o julgamento da AP 470.
Todos os personagens citados estiveram envolvidos na indústria de dossiês.
Ao longo do artigo, essas ligações serão melhor esmiuçadas. Não fazem parte do livro, que fornece apenas algumas peças do quebra-cabeças, como o fato de até 2002 Serra considerar Dantas homem de ACM. Embora desde alguns anos antes Dantas já tivesse se tornado sócio de Verônica Serra.
Sobre a tecnologia de manipulação da Justiça
Na Satiagraha foi colocada em prática a tecnologia midiática que tornou-se padrão nos anos seguintes, até o ápice no julgamento da AP 470.
Consistia nas seguintes etapas:
ETAPA 1 - O Ministro Gilmar Mendes criava um fato político, verdadeiro ou falso, visando provocar comoção no STF e na opinião pública. Em geral eram fatos baseados exclusivamente nas afirmações dele, sem nenhuma testemunha que os corroborasse.
ETAPA 2 - Veja transformava o fato em reportagem de capa, valendo-se do padrão que consagrou nas parcerias com Carlinhos Cachoeira.
ETAPA 3 - No momento seguinte, o fato era repercutido pelo Jornal Nacional e demais grupos integrantes do cartel jornalístico.
ETAPA 4 - com base na repercussão, parlamentares ou autoridades judiciais aliadas da revista solicitavam providências que acabavam se completando devido ao clamor da mídia.
O clamor da mídia, a criação da figura do inimigo externo, o macartismo colocado em prática forneciam a blindagem para as más ações de outros personagens, como os ex-Procuradores Gerais da República Antonio Fernando de Souza e Roberto Gurgel, além de Ministros do STF.
O piloto desse tipo de operação foi o caso Lunus, que inviabilizou a candidatura de Roseana Sarney à presidência da República. E a continuação foi a campanha de 2010, com a fabricação infindável de dossiês falsos repercutidos pela velha mídia.
 A montagem da central de dossiês
É na operação Lunus que estão as pistas para se chegar ao início do nosso modelo. Ele nasce com a nomeação de José Serra para Ministro da Saúde. Através da CEME (Central de Medicamentos), Serra monta o embrião da sua indústria de dossiês, contratando três especialistas para trabalhos de inteligência: o subprocurador da República José Roberto Santoro, o policial federal Marcelo Itagiba e o ex-militar Enio Fonteles, dono da Fence Consultoria Empresarial, especializada em arapongagem.
A primeira grande ação do grupo foi a Operação Lunus. Usou-se o poder de Estado para tal.
Do lado do Ministério Público, Santoro imiscuiu-se em um inquérito que não era dele e coordenou a ação cujo titular era o procurador Mário Lúcio Avellar. Policiais federais montaram campana, identificaram o dia e a hora em que a Lunus – de Jorge Murad – receberia contribuições e montaram um flagrante acompanhado de uma equipe do Jornal Nacional. Para melhorar a cena, arrumou-se o dinheiro em pacotes de grande visibilidade, facilitando o impacto televisivo.
Essa mesma jogada – de empilhar o dinheiro para dar impacto televisivo - foi repetida no caso dos “aloprados”, em 2006, entre um delegado da Polícia Federal e o Jornal Nacional.
Houve indícios de envolvimento direto da presidência com a operação Lunus. Da própria empresa foi enviado um telex para o Palácio do Planalto dando conta do sucesso da operação.
A mídia ainda não estava fechada com Serra e a cobertura da época desvendou rapidamente a jogada.
A Fence recebia por varredura efetuada. Segundo reportagem da revista Veja, de 20.03.2002, de primeiro de janeiro a 28 de fevereiro de 2002, período que antecedeu a Operação Lunus, a Fence recebeu do Ministério R$ 210 mil. Para tanto, necessitaria ter realizado 840 varreduras em menos de 60 dias, ou quase 14 varreduras por dia (http://glurl.co/dti). É evidente que o pagamento não se devia a varreduras internas no Ministério.
Depois que tomou posse como governador, Serra contratou a Fence para monitorar todos os telefonemas do estado que passavam pela Prodesp (empresa de processamento de dados do estado) e “outras de seu interesse”.
Reportagem da Folha, de 17 de março de 2002, dizia o seguinte sobre Santoro e Itagiba (http://tinyurl.com/q27uasd): “O presidenciável tucano, senador José Serra (SP), conseguiu reunir sob as asas de aliados as duas principais investigações em curso que podem prejudicar sua candidatura ou implodir a campanha de seus adversários. São eles o subprocurador da República José Roberto Santoro e o delegado de Polícia Federal Marcelo Itagiba”.
A reportagem mostrava como Santoro coordenou informalmente o pedido de busca e apreensão de documentos na Lunus. E como Itagiba se valeu do cargo de superintendente regional da PF para afastar um delegado que investigava doações de campanha a Serra.
Segundo a matéria, era antiga a parceria de Santoro e Itagiba:
“José Roberto Santoro e Marcelo Itagiba fazem parte da tropa de choque de Serra no aparato policial e de investigação. Os dois já estiveram juntos antes. Em 2000, enquanto Santoro promovia ações judiciais de interesse do então ministro José Serra na área da saúde, Itagiba coordenava uma equipe instalada na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para investigar laboratórios”.

A aproximação com Cachoeira

O esquema Serra gerou dossiês contra competidores internos no PSDB - Paulo Renato de Souza, Tasso Jereissatti e Aécio Neves.
Já no governo Lula, o passo seguinte do grupo  foi na operação Valdomiro Diniz, primeiro petardo contra o então Ministro-Chefe da Casa Civil José Dirceu.
Foi divulgado um vídeo de 2002, no qual Valdomiro, servindo no governo Benedita da Silva, pedia propina a Carlinhos Cachoeira.  Quando o vídeo vazou, Valdomiro trabalhava como assessor da Casa Civil. A bomba acabou explodindo no colo de Dirceu, que pagou o preço de não ter ouvido assessores sobre o passado de Valdomiro.
Assim que o caso explodiu, Santoro – e o procurador Marcelo Serra Azul – reuniram-se com Cachoeira de madrugada, no próprio prédio do Ministério Público Federal, em Brasília, para obter a íntegra da fita em troca de proteção jurídica . Santoro já era subprocurador geral, sem nenhuma relação com o episódio.
A conversa que foi parar no Jornal Nacional, que precedeu a divulgação com um enorme editorial para justificar porque não abriu mão do furo.
No grampo, Santoro pede pressa a Carlinhos Cachoeira porque já amanhecia e o PGR Cláudio Fonteles poderia chegar e acusa-lo de estar armando para prejudicar o Chefe da Casa Civil José Dirceu.
A maneira como Santoro prevê o que seria a fala de Fonteles – caso os flagrasse na reunião noturna – revela nitidamente suas intenções políticas.
Hoje em dia, Santoro é advogado contratado pelo PSDB para atuar no caso do cartel dos trens.

Carlinhos Cachoeira e Jairo

A partir dessa primeira abordagem de Santoro sobre Cachoeira, muda o comportamento da mídia em relação a ele. De bicheiro suspeito, passa não apenas a ser blindado, como torna-se íntimo colaborador da revista Veja em uma infinidade de escândalos com objetivos políticos. É como se a operação Lunus estivesse sendo reproduzida em uma linha de montagem.
A de maior impacto foi o do grampo no funcionário dos Correios Maurício Marinho, que resultou por linhas tortas no escândalo do “mensalão”. No capítulo da série de Veja, “O araponga e o repórter” (http://tinyurl.com/leps4ox) conto em detalhes essa armação.
Serra contrata Santoro; Santoro se aproxima de Cachoeira; Cachoeira se aproxima da Veja e a CPI de Cachoeira revela os dois principais braços do bicheiro: o araponga Jairo  Martins e o então senador Demóstenes Torres.
Foi a fase de maior poder de Cachoeira. Veja transformou Demóstenes em baluarte contra a corrupção. A mando de Cachoeira, Jairo levantava dossiês, Demóstenes fazia as denúncias e Veja repercutia. Com o poder conquistado, Demóstenes fazia lobby para Cachoeira junto ao governo.
Para comprovar o padrão de atuação do grupo, em 2004, Demóstenes já se mostrara exímio fabricante de factoides para gerar mídia e desgaste nos adversários. Como o suposto atentado de que teria sido vítima em 2004 (http://tinyurl.com/kql2jza) que rendeu muita manchete sem nunca ter sido devidamente apurado. 
E aí vão se fechando os elos da corrente, e entra em cena Gilmar Mendes.
Jairo, o araponga preferencial de Cachoeira, o especialista em dossiês para a Veja foi contratado como assessor especial de Gilmar. E com Demóstenes Gilmar estreitou uma relação pessoal já antiga (http://glurl.co/dtj). Ou seja, o principal operador de Cachoeira, o homem que abastecia Veja com grampos passa a ter acesso ao sistema de telefonia do STF, na condição de assessor especial de Gilmar.
Fechados os elos da corrente, começam a brotar dossiês por todos os poros da mídia.
No início da operação, Gilmar foi ajudado por um sem-número de boatos infundados contra ele, alimentados por seus adversários e por abusos da PF em algumas operações espetaculosas.

Os factoides contra a Satiagraha

Quando surgiram os primeiros boatos sobre o cerco a Dantas, a primeira investida foi uma capa de Veja, “Medo no Supremo”, de 22 de agosto de 2007, em que cozinhava um conjunto de informações velhas, para dar a impressão de que o STF estava ameaçada pelo grampo. Mereceu um dos capítulos da minha série “O caso de Veja” (http://tinyurl.com/p4geurw).
Aparentemente, era uma matéria bombástica:
“É a primeira vez que, sob um regime democrático, os integrantes do Supremo Tribunal Federal se insurgem contra suspeitas de práticas típicas de regimes autoritários: as escutas telefônicas clandestinas. Sim, beira o inacreditável, mas os integrantes da mais alta corte judiciária do país suspeitam que seus telefones sejam monitorados ilegalmente”.
A matéria não passava de um amplo “cozidão” de notícias velhas. Vários ministros citados desmentiram a matéria, de Sepúlveda Pertence a Marco Aurélio de Mello. O único que sustentou o que disse foi Gilmar. E o que disse ele?
A Polícia Federal se transformou num braço de coação e tornou-se um poder político que passou a afrontar os outros poderes", afirma o ministro Gilmar Mendes, numa acusação dura e inequívoca”.
Quando estourou a Satiagraha, repetiu-se o estratagema em diversos episódios:
1. Os dois habeas corpus em favor de Daniel Dantas.
Gilmar tratou o caso como se o estado de direito estivesse ameaçado. Sucessivas invasões de escritórios de advocacia pela Polícia Federal forneceram-lhe o álibi necessário. Mas avançou muito além do habeas corpus, com discursos bombásticos que, repercutidos pela mídia, criaram o clima de resistência à Satiagraha. No livro, Valente esmiúça todas as decisões controvertidas de Gilmar para anular a operação.
No vídeo abaixo, Gilmar denuncia supostos grampos de que teria sido alvo. Faz um discurso eficiente. Ainda não tinha em sua ficha os episódios seguintes, que não o qualificariam mais como testemunha confiável.
2. O grampo sem áudio.
O tal grampo de conversa entre Gilmar Mendes e Demóstenes Torres - principal parceiro de Veja na conexão Carlinhos Cachoeira.
Jamais apareceu o áudio. Investigações divulgadas na época mostravam ser impossível grampear telefones do Senado. Sequer se conferiu se, na tal hora do suposto grampo, houve de fato ligações telefônicas entre Gilmar e Demóstenes, ou ao Senado.
Era um grampo consagrador para Demóstenes, onde os dois colegas lembravam as grandes ações cívicas do senador.
Com base em um factoide, Gilmar cobrou explicações do próprio presidente da República. A ameaça de crise entre instituições levou ao afastamento do diretor da Abin Paulo Lacerda e deu início à anulação da Satigraha.
Segundo o Blog de Noblat, a Abin identificou o araponga que gravou a conversa. Foi o mesmo que passou a transcrição para a revista Veja (http://tinyurl.com/myq2kdw) (http://tinyurl.com/myq2kdw). Se o grampo existisse de fato, Veja não teria a menor dificuldade - ou escrúpulo - em divulgá-lo, ou entregar a fonte.
Aqui no Blog desmontamos a farsa (http://tinyurl.com/mo4o4w6)
3. O grampo no Supremo Tribunal Federal.
Um assessor de segurança do STF passou para a revista Veja a informação de que havia detectado grampo em uma das salas do Supremo. Mereceu capa e, com base no alarido, foi criada a CPI do Grampo (http://tinyurl.com/p2hmlsy).
Quando o relatório da segurança do STF foi entregue à CPI, constatou-se que haviam sido captado sinais de fora para dentro do órgão. Logo, jamais poderia ser interpretado como grampo. Coube a leitores do Blog derrubar essa armação.
Na CPI ficou-se sabendo que o relatório com as conclusões falsas saíram do próprio gabinete da presidência do STF.
Foi tão grande a falta de reação dos demais ministros, ante a manipulação do suposto grampo, que chegou-se a aventar a fantasia de que Gilmar teria mandado grampeá-los para mantê-los sob controle.
Nesse período, Jairo Martins assessorava Gilmar.
4. A reunião com Nelson Jobim e Lula.
Mesmo depois da Satiagraha, manteve-se o mesmo modo de operação no julgamento da AP 470. Há um encontro entre Gilmar e Lula no escritório de Nelson Jobim. Passa um mês, sem que nada ocorra. De repente, alguém se dá conta do potencial de escândalo que poderia ser criado. Gilmar concede então uma entrevista bombástica, indignada, dizendo ter sido pressionado por Lula.
Dos três presentes ao encontro, dois - Jobim e Lula - negam peremptoriamente qualquer conversa mais aprofundada sobre o mensalão.
Foi em vão. A versão de Gilmar é veiculada de forma escandalosa pela revista Veja, criando o clima propício ao julgamento "fora da curva" da AP 470. O mesmo Gilmar do grampo sem áudio e da falsa comunicação de grampo no STF.
São quatro episódios escândalos inéditos na história do Supremo, todos os quatro tendo como origem Gilmar Mendes.