segunda-feira, 28 de abril de 2014

A crise da esquerda e o fim da luta sistêmica - por Aldo Fornazieri (Blog do Nassif / Jornal GGN)

     O surgimento da ideologia socialista no século XIX, que foi assumindo várias designações – socialismo, marxismo, marxismo-leninismo, bolchevismo, socialdemocracia, comunismo – e sua configuração em organizações, partidos e em Estados, a partir de 1917 com a revolução russa, configurou uma luta sistêmica no mundo. Tal luta opunha dois sistemas de forma excludente: tratava-se de uma luta opondo socialismo e capitalismo do ponto de vista econômico, social, político e ideológico. Era uma confrontação sistêmica entre duas visões de mundo diferentes, supostamente fundadas em pressupostos e valores distintos. Os vários partidos e movimentos socialistas definiram caminhos e estratégias plurais de luta. A bem verdade, a socialdemocracia europeia, com o passar do tempo, foi assumindo uma posição adesista e se tornou a ala esquerda da visão capitalista e liberal-democrática de mundo.

     O desencanto com o stalinismo, a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética foram eventos que colocaram um ponto final na luta sistêmica. A rigor, o mundo a se configurar configurar em um sistema único, com algumas exceções pontuais, a exemplo da Coréia do Norte e Cuba, mas que não têm força para opor-se sistemicamente ao mundo capitalista liberal-democrático. As formas nacionalistas, ditatoriais, monárquicas que persistem são subsidiárias da hegemonia capitalista. A estratégia chinesa de integração global retirou daquele modelo a pretensão de se apresentar como uma alternativa universal ao capitalismo.

     A própria esquerda mundial não se coloca mais a perspectiva de uma luta sistêmica. A socialdemocracia europeia subordinou-se aos interesses do capital financeiro e se tornou seu instrumento na atual crise, contribuindo com a degradação de direitos e concentração da riqueza. A esquerda latino-americana luta por políticas sociais inclusivas e pela redução da pobreza, a exemplo do que vem fazendo o PT no Brasil. As denominações retoricamente mais radicais, a exemplo do PSol, PSTU e semelhantes, não passam de partidos e agrupamentos parlamentares ou sindicais. Como bem observou T. J. Clark (Por uma Esquerda sem Futuro), a esquerda perdeu até mesmo a perspectiva de um reformismo radical.

     O fracasso do comunismo e o fim da União Soviética não são as causas únicas do fim da luta sistêmica. A revolução tecnológica, as mudanças das estruturas produtivas e o advento da globalização modificaram o modo de funcionamento e de reprodução do capital, geraram novos setores sociais e concorreram por mudanças na ordem dos valores. A mobilidade das estruturas produtivas físicas aumentou o poder de barganha das empresas. Os trabalhadores fabris e suas representações sindicais se enfraqueceram, tanto em número quanto em capacidade de mobilização. Os valores coletivistas e igualitários cederam lugar para uma pluralização de valores e o individualismo se reforçou como paradigma da existência social. As ideologias utópicas perderam a capacidade de mobilizar os sonhos e as esperanças das pessoas. O modo de vida consumista se expandiu para toda face do planeta. O que mobiliza a fantasia dos indivíduos são os bens fruíveis, os produtos de marcas e as últimas novidades tecnológicas.

Fim de um Ciclo de Esquerda na América Latina?

     Se as esquerdas europeias foram capturadas pelo capital financeiro, as esquerdas latino-americanas estão fracassando até mesmo na perspectiva reformista. Depois de 12 anos de governo, o PT não conseguiu implementar reformas estruturais capazes de remover os mecanismos que geram a desigualdade no Brasil. A recuperação da renda e as políticas inclusivas foram necessárias e configuraram conquistas importantes. Mas não foram mudanças estruturais e poderão regredir sob outro governo. Dilma está terminando seu primeiro mandato em meio a riscos crescentes na sua reeleição. Nas prefeituras, depois dos êxitos iniciais, os governos petistas enfrentam dificuldades em renovar e implementar novas políticas públicas. A crise nos serviços é acompanhada por uma espécie de crise de imaginação e de capacidade.

     Na Venezuela, a crise está instaurada com derramamento de sangue nas ruas. Na Argentina, os 12 anos de kirchnerismo também caminham para um fracasso. A inflação corrói o poder de compra dos trabalhadores e as trapalhadas governamentais são múltiplas. Em termos de resultados positivos se salvam o Uruguai e, quiçá, o Equador.

     Duas novas denominações de esquerda se fortaleceram no rastro do fracasso da velha esquerda: a esquerda verde e da política da moralidade e os autonomistas. A primeira, em que pese propor lutas relevantes para o mundo contemporâneo, não questiona o poder. Constitui-se numa contra-hegemonia não só cômoda e conveniente, mas financiada pela hegemonia dominante. A Rede, de Marina Silva, é um exemplo perfeito deste tipo de denominação de esquerda. A rigor, essa esquerda é uma espécie de cereja no bolo do capital financeiro e tecnológico.

     A esquerda autonomista foi a que conseguiu promover as mobilizações mais significativas nos últimos anos contra a ordem hegemônica mundial. Porém, com exceção do MPL, não houve conquistas e os movimentos refluíram após o vigor inicial. Essa esquerda não conseguiu mostrar a viabilidade de promover transformações significativas sem estruturas organizadas, sem lideranças e sem plataformas políticas amplas, capazes de unificar diversos setores sociais.

     No mundo contemporâneo, marcado pela volatilidade dos valores e pela fraqueza dos apelos políticos, ideológicos e programáticos, as massas não são fieis, nem do ponto de vista político, nem do ponto de vista eleitoral. Elas se decidem por este ou por aquele partido, por este ou por aquele governo segundo o quanto vislumbram a possibilidade de satisfazer seus interesses e fruir suas fantasias.

     No final da década de 1980 e ao longo da década de 1990, eleitores latino-americanos reelegeram governos liberais enquanto acreditavam que a plataforma de reformas orientadas para o mercado poderiam conter a inflação, o desemprego e melhorar a renda. Em face do fracasso das promessas das reformas liberais, os eleitores voltaram-se para a esquerda. A partir de êxitos iniciais na redução da pobreza, inclusão social e recuperação da renda, governos e partidos de esquerda foram reeleitos. Atualmente, esses governos apresentam sinais de exaustão. As eleições presidenciais no Brasil em 2014, e na Argentina em 2015, serão o metro para medir se essa esquerda poderá ter uma chance para se reinventar ou se fracassou mesmo no seu parco reformismo.


Aldo Fornazieri – Cientista Político e Professor da Escola de Sociologia e Política

Comentário
Belo texto. A crise da esquerda se dá no momento em que ela deixa de ser esquerda. Porque a cada dia que passa, é evidente, a diferença é mais tênue. Complemento com trechos do mestre Saramago:

     A direita nunca deixou de ser direita, mas a esquerda deixou de ser esquerda. A explicação pode parecer simplista, mas é a única que contempla todos os aspectos da questão. Para serem participantes mais ou menos tolerados nos jogos do poder, os partidos de esquerda correram todos para o centro, onde, infalivelmente, se encontraram com uma direita política e econômica já instalada que não tinha necessidade de se camuflar de centro. Entrou-se, então, na farsa carnavalesca de denominações caricaturais com as de centro-esquerda ou centro-direita. (...)
   Outras vezes me perguntei por onde andava a esquerda, e hoje tenho a resposta: por aí algures, humilhada, a contar os míseros votos recolhidos e à procura de explicações por os ver tão poucos. O que chegou a ser, no passado, uma das maiores esperanças da humanidade, capaz de mobilizar vontades pelo simples apelo ao que de melhor caracterizava a espécie humana, e que veio criando, com a passagem do tempo, as mudanças sociais e os erros próprios, as suas próprias perversões internas, cada dia mais longe das promessas primeiras, assemelhando-se mais e mais aos adversários e aos inimigos, como se essa fosse a única maneira de se fazer aceitar, acabou por cair em meras simulações, nas quais conceitos doutras épocas chegaram a ser utilizados para justificar actos que esses mesmos conceitos haviam combatido. Ao deslizar progressivamente para o centro, movimento proclamado pelos seus promotores como demonstração de uma genialidade táctica e de uma modernidade imparável, a esquerda parece não ter percebido que se estava a aproximar da direita. Se, apesar de tudo isto, ainda é capaz de aprender com uma lição, esta que acaba de receber vendo a direita passar à sua frente em toda a Europa, então terá de interrogar-se sobre as causas profundas do distanciamento indiferente das suas fontes naturais de influência, os pobres, os necessitados, mas também os sonhadores, em relação ao que ainda resta das suas propostas. Não é possível votar na esquerda se a esquerda deixou de existir.

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