quarta-feira, 14 de maio de 2014

“Eu faria de novo. Isso deveria ser o normal”: a estudante que impediu um linchamento - por Kiko Nogueira (Diário do Centro do Mundo)

Mikhaila
     Mikhaila Copello, de 22 anos, mora no bairro de Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro, estuda arquitetura na UFRJ e toca guitarra (toca bem, como se pode atestar num vídeo do YouTube). Em sua rua, já testemunhou muitos acidentes de carro e, volta e meia, socorreu algumas vítimas. “Tenho um instinto de proteção forte”, ela me diz.

     Esse instinto foi posto à prova de maneira extrema na semana passada, quando Mikhaila impediu um linchamento sozinha.

     Ela mesma escreveu sobre a experiência no Facebook: “Estava realizando minha primeira entrevista para a pesquisa sobre intervenções temporárias, num papo incrível com a Fernada, quando ouvi do outro lado da rua: ‘Pega ladrão!’. Num ato instintivo aproximei meus pertences de mim, achando que tudo aquilo que ali acontecia, mesmo que atravessando a rua, estava longe de mim, quando cercaram o tal do sujeito, e ele, no desespero, voltou correndo na direção do bar que eu estava”.

     O sujeito, que havia roubado um celular, tomou uma rasteira, caiu e abriu o supercílio. “Ele estava desfigurado”, lembra ela.

     No chão, passou a tomar chutes na cabeça do jovem que lhe dera a rasteira. Mikhaila foi para cima dos dois, tirou o rapaz do chão e o encostou na parede. Pegou um pano do boteco, entregue por um garçom, e o utilizou para estancar o sangue. E então começou a juntar gente em torno deles.

     Durante o que ela acha que durou 45 minutos, Mikhaila conteve, em seus cálculos, pelo menos 20 pessoas que queriam espancar o assaltante. Gente que gritava “mata!”, “e se ele tivesse estuprado sua filha??” e quejandos.

     Mikhaila afirma que conseguiu tourear o grupo tentando apelar à razão. “Nós não somos Deus para decidir quem vive e quem morre”, dizia. “Quem acredita em ‘olho por olho’ acaba cego”.

     Um homem com um cachorro — “não me lembro da raça, talvez um buldogue” — falou que, se ela não estivesse lá, soltaria o animal em cima do rapaz. Uma senhora gritava, apoplética: “Esse homem espancou meu filho!”

     “Quando a polícia chegou, um policial marrento ainda me falou: ‘Tem que apanhar, mesmo. Gosta de bandido? Leva pra casa’. Todo mundo o aplaudiu”, lembra ela. “Me senti na ‘Revolução dos Bichos’. Não dava mais para distinguir quem era homem e quem era animal”.

     O homem que ela salvou passou a caminho da viatura e soltou um “obrigado”. “Chorei compulsivamente”, afirma Mikhaila. “Onde moro tem milícia e já vi muita confusão. Já fui assaltada várias vezes. Mas nunca presenciei uma histeria dessas”.

     O ato de Mikhaila foi heróico e civilizado. Mas, desde o ocorrido, as reações foram diversas. Mais de duzentas mensagens foram postadas no FB parabenizando-a pelo feito. “Fiz questão de contar o que houve para rebater esse lado negativo dos justiçamentos, que tanta gente da mídia estimula”, diz.

     Teve de suportar, também, ataques. Numa inversão absurda, foi chamada por um psicopata de “communist attention whore” na internet (numa tradução livre, “vadia comunista louca por atenção”). Voltou ao bar, esses dias, para dar uma entrevista para a TV. A senhora apoplética estava lá. Ela saiu batendo nas portas dos vizinhos para avisar que Mikhaila, a “defensora de bandidos”, estava no local.

     Ela não tem medo de briga. Esteve nas manifestações. Não tem ligação com nenhum partido. “Sempre discuti na faculdade”, diz. Alguém apontou que ela escapou de apanhar por ser mulher. Ela concorda. 

     “Tenho um tio que matou dois assaltantes que tentaram invadir a casa dele. Ficou abalado para o resto da vida”, conta. “Eu faria tudo de novo, com qualquer pessoa. Isso deveria ser o normal”.