segunda-feira, 22 de setembro de 2014

De volta ao BC independente, desta vez o de Gustavo Franco em 1999, por J. Carlos de Assis – por José Carlos de Assis (Jornal GGN / Blog do Nassif)

     Gustavo Franco foi demitido do Banco Central em 1999 por incompetência. Depois de manter artificialmente elevada, desde o Plano Real, a taxa de câmbio – para combater a inflação à custa do sistema produtivo interno -, mergulhou o País numa crise de balanço de pagamentos de proporções gigantescas, e que nos levaria de cócoras ao FMI. Pouco antes de ser demitido teve a ousadia de dobrar a taxa básica de juros para, supostamente, evitar as consequências maiores da crise que ele própria havia produzido- o que pareceu um excesso mesmo para Fernando Henrique, que o via como gênio raça.

     Agora recebo de um amigo um artigo de Gustavo Franco com uma defesa apaixonada da independência do Banco Central. Não pode ser em interesse próprio, pois ele já não é mais presidente do BC. Mas passa-me pela cabeça em que terrível situação FHC e seu ministro da Fazenda, Pedro Malan, estariam metidos se, em 1999, estivesse em pleno vigor uma lei de independência do BC. Não só isso. O sucessor de Franco, Francisco Lopes, fez em questão de semanas uma trapalhada ainda maior, e teve também que ser demitido, desta vez com desonra.


     Portanto, os tucanos têm a mais aguda experiência brasileira em matéria de violar a independência da diretoria do BC. Não entendo como a querem estipular por lei. Já Marina é outra coisa. Ela tem a chave suprema da governança pública que é a de “governar com os melhores”. Com algum “melhor” na presidência do BC, nunca será necessário demiti-lo em nome do interesse público. Franco não seria o melhor. Nem Lopes. Não foram indicados por Marina. Porém, desde que seja Marina a indicar o presidente do BC, o País poderá dormir tranquilo com sua estabilidade monetária.

     Mas entremos no conteúdo do artigo de Gustavo Franco. Meu amigo, procurando me convencer dos argumentos independentistas dele, destacou o seguinte trecho: "Temos aqui um problema clássico de governança. O BC não tem minoritários, mas possui cerca de 180 milhões de “preferencialistas”, que são os “acionistas” sem direito a voto que carregam papéis ao portador, emitidos em pequenas denominações pelo BC, de aceitação obrigatória fixada em lei, cujo valor é fixado livremente no comércio. Quem zela pelo preferencialista?"

      Quem zela pelo preferencialista - o qual, aliás, deve ser apropriadamente chamado de cidadão -, só pode ser o Estado, que tem, em última instância, a soberania da moeda. O dinheiro é um título dívida pública monetária; não é dívida do BC, que não tem patrimônio para isso. É uma obrigação genérica do Estado. Uma emissão monetária confronta ativos da sociedade, bens e serviços, e só se efetiva enquanto valor se alguém quiser tomar o dinheiro emprestado do BC/Governo ou se quiser vender para ele bens e serviços. Se ninguém quiser tomar o dinheiro emprestado do BC, o dinheiro fica lá no caixa do banco, nulificado, como se não tivesse havido emissão.

     A obrigação do BC é prover dinheiro num nível suficiente para garantir a circulação de bens e serviços na sociedade, com uma margem de crescimento anual. Entretanto, como o sistema capitalista evolui em ciclos de boom e depressão, o BC deve prover mais dinheiro na recessão e depressão, e menos dinheiro nos picos da atividade econômica. Isso significa cobrir o déficit do tesouro nas fases recessivas, comprando títulos públicos emitidos pelo tesouro, e enxugar moeda no boom, vendendo títulos. Daí a necessidade de um BC articulado com os tesouros nacionais. Um BC politicamente dependente da soberania do Estado.

     Não compreendo como os profetas brasileiros do banco central independente não se miram nas experiências do Banco Central Europeu, o mais independente do mundo, e do FED, o banco central americano, certamente dependente do setor político. Isso não tanto pela questão do mandato por tempo definido mas pelas atribuições: o FED, estatutariamente, tem que responder não só pela estabilidade da moeda mas pela promoção do máximo emprego, e já houve caso em que o presidente foi demitido antes do fim do mandato. Já o BCE tem a mais larga experiência de incompetência no gerenciamento da moeda produzindo na Europa a maior recessão da história recente com mandatos permanentes.

     De um ponto de vista filosófico, a moeda tem valor, e é universalmente aceita num determinado marco nacional porque é com ela que se pagam tributos, conforme Abba Lerner. Para pagarmos tributos, que é uma obrigação universal dos cidadãos, temos que adquirir moeda, seja pelo trabalho direto, seja pelo trabalho indireto (vendendo bens e serviços). Esse valor se ancora em três funções básicas, a saber, reserva de valor, padrão de preços e instrumento de transação. A inflação afeta basicamente a função de reserva de valor. O Governo deve velar para a preservação do valor da moeda mas não pode garantir isso de forma absoluta pois é o setor privado, na forma do jogo de oferta e de procura de bens e serviços, que determina em última instância a evolução dos preços.

     Não obstante, não há um título privado substitutivo da moeda a não ser por algumas de suas formas marginais na economia paralela. E a função de preservação do valor foi assumida pelos títulos da dívida pública dos governos, que pagam juros. Esta tem também uma função crucial de dar lastro à acumulação do capital no sistema capitalista. Isso gera uma situação tão complexa que, caso a economia não cresça, e os juros da dívida pública, como entre nós, seja de 11%, o patrimônio financeiro dos investidores em títulos públicos terá crescido de uma ano para outro 11% sem qualquer correspondência com a economia real. Isso é justo? E em que medida as gerações futuras terão que arcar com o pagamento de uma renda que não foi obtida pelo trabalho, mas pela especulação?

     Um BC politicamente orientado deve promover uma expansão monetária que pelo menos acompanhe a evolução das taxas básicas de juros. Isso significa que o fluxo de produção de bens e serviços deve ser acompanhado pelo fluxo de juros da dívida pública. Se a economia estancar, os juros devem ser zero ou negativos (o BCE está adotado essa política, mas tardiamente; produziu o que se chama “armadilha de liquidez”, pela qual há dinheiro disponível nos bancos mas ninguém toma emprestado porque não há perspectiva de demanda dos bens e serviços produzidos pelo investimento novo. Contra isso, o único remédio é uma política fiscal expansiva, o que acaba de ser admitido por um membro do BCE, contra a política fiscal alemã.)

     Resumindo a história: ao contrário do que Gustavo Franco pensa, o problema não é de mandato definido para o presidente e a diretoria do BC. Se ele estivesse exercendo mandato definido em 1999 ele seria demitido de qualquer forma pois certos desastres econômicos são insuportáveis: como dizia o liberal Mário Henrique Simonsen, “inflação fere, mas desequilíbrio de balanço de pagamentos mata”. O problema é de função do BC. O banco não está gerindo título privado, como uma empresa, mas uma função vinculada à soberania nacional e ao bem estar social da população como um todo. Não é uma agência qualquer. Na essência, é um braço institucional do Tesouro Nacional.

     Creio que Franco tem dificuldades de ver isso porque não é capaz de deduzir relações financeiras de fatos financeiros. No prefácio que fez da magnífica autobiografia de Hjalmar Schart, que se tornaria nos anos 30 o banqueiro de Hitler, Franco se referiu a ele como “um grande liberal”. Esqueceu-se de comentar o que aparece na própria biografia, a saber, o desempenho prático de um genial financista heterodoxo, inspirado pelo New Deal americano, que foi capaz de construir uma engenharia financeira pela qual o Tesouro alemão quebrado foi financiado por empresas privadas líquidas mediante um título nominalmente emitido por quatro grandes empresas (títulos Mefo) mas bancado em último instância pelo mesmo Tesouro quebrado. Belo liberal!

J. Carlos de Assis - Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional da UEPB.

Um comentário:

Sugestão de Livros disse...

Muito interessante saber isso: "A obrigação do BC é prover dinheiro num nível suficiente para garantir a circulação de bens e serviços na sociedade,
com uma margem de crescimento anual. Entretanto, como o sistema capitalista evolui em ciclos de boom e depressão, o BC deve prover
mais dinheiro na recessão e depressão, e menos dinheiro nos picos da atividade econômica. Isso significa cobrir o déficit do tesouro
nas fases recessivas, comprando títulos públicos emitidos pelo tesouro, e enxugar moeda no boom, vendendo títulos. Daí a necessidade
de um BC articulado com os tesouros nacionais. Um BC politicamente dependente da soberania do Estado."