quarta-feira, 29 de junho de 2016

Fotografia - por Thomas Samson (AFP - Getty - theatlantic)

Protestos contra a mudança na legislação laboral da França

O Xadrez da Rainha da Inglaterra e do interino do Jaburu - por Luis Nassif (Jornal GGN)


     A história é repleta de paradoxos. É como uma espiral, sempre dá voltas retornando ao mesmo lugar, mas alguns degraus acima, como dizia o músico e filósofo Koellreutter. Há enormes semelhanças entre as crises das primeiras décadas do século 20 e as atuais, culminando com o Brexit do Reino Unido, a campanha pela saída do Reino Unido da Comunidade Europeia, que foi vitoriosa no referendo.

     Desde o século 19 há a disputa pelo controle das políticas econômicas nacionais, entre a proposta globalizantes – liderada pelo grande capital internacionalizado – e os projetos nacionais.

     Esta disputa está na raiz da economia como ciência. De um lado, o pensamento majoritário de crença no mercado, que nasce com Adam Smith, com o mundo racionalmente integrado por economias nacionais, cada qual fundando-se em suas vantagens comparativas.

     De outro, o desenvolvimento da economia política, a convicção sobre o papel do Estado nacional para criar a competitividade sistêmica, a partir das ideias do norte-americano Alexander Hamilton, sistematizadas depois pelo economista alemão Friedrick List. Nesse modelo, mercado interno passa a ser tratado como ativo nacional, assim como a proteção das indústrias nascentes, os investimentos estratégicos para conquistar mercados etc.

     Na base de tudo, sistemas eleitorais nos quais os dois lados irão vender suas utopias, sobre qual modelo é mais eficiente para levar o bem-estar à maior parte da população eleitora.


 Primeiro passo - a integração dos mercados

     No século 19, a expansão da economia global, as novas rotas marítimas, a integração continental com as ferrovias, permitiram alguma integração internacional através do comércio.

     O passo seguinte foi através dos fluxos de capitais, a primeira articulação efetiva entre países, a partir da coordenação do Banco da Inglaterra, tendo como parceiros os bancos centrais da Europa e dos países periféricos – no caso nosso, do Banco do Brasil cumprindo essas funções.

     A cooptação das elites nacionais se dava através de três personagens centrais:

1.      Os capitalistas locais, que já mantinham relações com a banca inglesa.

2.      Economistas portadores das últimas novas da nova ciência, incumbidos de criar a utopia de que a livre circulação de capitais traria a prosperidade geral.

3.      Políticos eleitos, turbinados pelos recursos dos capitalistas e pelas utopias dos economistas.

     A globalização viceja fundamentalmente em países democráticos, em que o jogo se decide pela cooptação dos vários agentes de opinião pública: intelectuais, jornais, políticos, advogados.

     No meu livro “Os Cabeças de Planilha” detalho melhor esse modelo e a maneira como cooptaram Rui Barbosa, o primeiro Ministro da Fazenda da República.

     Com esse pacto instituiu-se o predomínio do capital financeiro, abolindo qualquer forma de controle e regulação de mercados em um longo período que vai das três últimas décadas do século 19 até a Primeira Guerra Mundial.

     Permitiu-se a criação de uma gama extraordinária de novas operações de mercado, visando turbinar ainda mais a especulação.

     No tempo de Rui Barbosa, já se batizara de “tacadas” as jogadas possíveis com o controle da moeda, do crédito e a liberação do câmbio, que incluíam jogadas em bolsa, concessões ferroviárias escandalosas, operações de crédito com estados e União.

     Esse modelo gera uma dinâmica que se espalha por várias economias até implodir o próprio modelo: Força política --> Desregulação de mercado --> Criação de novos instrumentos financeiros --> Geração de bolhas especulativas --> Implosão.

     No caso brasileiro, o resultado foi a grande crise cambial do encilhamento, no nascimento da República, que atrasou por trinta anos o desenvolvimento do país.


Segundo passo – o choque de realidade

     Aí chega a conta. Sucessivas bolhas especulativas minam as economias nacionais, mas o sistema político não consegue reagir porque, no período de predomínio da financeirização, sufocam-se as alternativas democráticas de mudança de rota.

     Os cidadãos são tomados de profundo ceticismo em relação ao modelo político vigente, tanto interna quanto externamente, em relação às instituições multilaterais, em geral criadas para impor o poder do credor sobre os devedores.

     As consequências fazem parte da história: Primeira Guerra, marcando o início do fim do modelo; crise de 1929 assinalando seus estertores; as disputas cambiais-comerciais entre nações; o nascimento do comunismo na Rússia (ainda uma economia feudal) e do nazi-fascismo a partir das disputas eleitorais na Alemanha, França e Espanha; a incapacidade da Liga das Nações em arbitrar conflitos nacionais.Na sequência, a consolidação de regimes ditatoriais até o desfecho final na Segunda Grande Guerra.

     Os tempos são outros, o desfecho certamente será distinto, mas os sintomas são os mesmos.

     Desde 1972, a financeirização passou a comandar as políticas nacionais. A expansão do capitalismo norte-americano turbinou a China, da mesma maneira que o inglês turbinou os Estados Unidos no século 19. Montaram-se os grandes blocos econômicos, abolindo as fronteiras nacionais.

     No plano socioeconômico, abriu uma enorme janela de oportunidades, brilhantemente aproveitada pela China e pelos Tigres Asiáticos, relativamente aproveitada pela América Latina.

     Países com baixos salários começaram a se industrializar, como chão de fábrica das grandes corporações. E países que não lograram desenvolver uma estratégia eficiente ficaram fora do baile.

     Mais que isso, com o avanço das redes sociais e das diversas formas de comunicação global, a expansão do mercado de consumo e dos valores ocidentais, e sua contraposição, nos movimentos fundamentalistas em países de pouca tradição democrática,abrem espaço para um redesenho da geopolítica mundial. Nesse entrechoque de culturas, países inteiros foram destroçados devido ao desmonte de suas instituições. Trocaram uma ordem anacrônica, antidemocrática, pelo caos.

     Em fins do século 19, as diversas guerras e crises europeias e do Oriente Médio promoveram um formidável fluxo de migração para os emergentes, beneficiando substancialmente EUA e América do Sul com mão de obra de qualidade superior.

     No século 21, o fluxo migratório inverteu, com populações inteiras de nações destroçadas ou que perderam o dinamismo, invadindo o mercado de trabalho dos países centrais, já assolado pelas perdas de direitos, consequência dos ajustes que tiveram que serem feitos para impedir a quebra dos sistemas bancários nacionais.

     Os efeitos são visíveis:

1.      Aumento do individualismo e da xenofobia.

2.      Crise dos partidos tradicionais e das instituições internas.

3.      Crescimento dos partidos de direita, estimulados pelas mídias nacionais, que pretenderam cavalgar a onda para ampliar seu poder político, ante as novas formas de comunicação.

     É o que explica o referendo britânico.

     A integração europeia era defendida pelo establishment político, financeiro, acadêmico. E foi derrotada pelo voto de protesto difuso, no qual se misturaram  a ultradireita xenófoba e a esquerda antiglobalização. Ou seja, a elite perdeu o controle das massas. O regime democrático torna-se disfuncional. E a maneira encontrada para controlar as pressões nacionais – a camisa de força da União Europeia – começa a fazer água.


Os desdobramentos no Brasil

     Todos esses episódios têm desdobramentos no Brasil.

     De 2008 a 2012 o Brasil se beneficiou da estratégia anticíclica de Lula e da sobrevida da especulação internacional com commodities, que garantiu alguns anos a mais de fartura.

     Quando a crise derrubou as cotações de commodities, depois de dois anos de bom governo Dilma perdeu o rumo. Não conseguiu definir uma estratégia econômica, política, ou social, como ocorreu na crise de 2008 com Lula.

     A crise derrubou o ânimo nacional e incendiou as ruas, com multidões insufladas pela mídia e compondo uma geleia geral ideológica: contra os impostos e a favor da melhoria da educação e saúde públicas.

     A insatisfação foi turbinada pela Lava Jato, pela piora nas expectativas econômicas e pelos problemas com os serviços públicos.Mas não resultou em um conjunto articulado de propostas, encampado por algum partido político ou alguma liderança emergente. Houve apenas a insatisfação generalizada que abriu espaço para a ação descoordenada de grupos oportunistas de diversas espécies, como os grupos de Cunha-Temer, a Lava Jato, a mídia, os mercadistas. E isso em uma quadra da história em que escassearam as figuras referenciais, na política, na Justiça, no MPF, nos partidos e na mídia.

     Essa frente entregou o poder de bandeja para uma das organizações mais suspeitas da moderna história política brasileira: o grupo de Michel Temer, Eduardo Cunha, Eliseu Padilha, Geddel Vieira de Lima e Romero Jucá.

     A chance de dar certo é próxima de zero, conforme se verá a seguir.


Um interino vulnerável moral e penalmente

     A notícia de Temer recebendo Eduardo Cunha reservadamente no Palácio Jaburu, por si, seria motivo de impedimento de Temer. O presidente interino conversando reservadamente com um parlamentar cujo cargo foi suspenso por suspeita de corrupção, apontado em vários desvios e proibido de frequentar a Câmara, justamente para não conspirar contra a Justiça. Certamente a conversa não girou sobre o Brexit nem sobre a atual campanha do Vasco da Gama. E só foi oficialmente divulgada após os vazamentos sobre o encontro sigiloso.

     Para o interino se expor dessa maneira, mostra uma relação nítida de interesses.

     A qualquer momento, Temer poderá ser fuzilado por uma das seguintes alternativas:

1.      Uma delação de Cunha ou de outros membros da quadrilha.,

2.      Uma denúncia da Procuradoria Geral da República.

3.      Vazamentos de informações pelos jornais e redes sociais.

     Será possível ao país conviver com um interino com tais vulnerabilidades, com uma biografia polêmica, uma companhia suspeita e tendo nas mãos a mais poderosa caneta da República?


Um interino sem dimensão política

     Dilma entendeu a dimensão da crise, mas não teve competência para enfrentá-la. Temer sequer logrou um diagnóstico consistente sobre o cenário atual. É surpreendente que, em algum momento de sua vida, criasse fama de intelectual. Suas declarações públicas não conseguem ir além dos ecos da imprensa,.

     A maneira como se escora em Cristovam Buarque é deprimente. Alardeou aos quatro ventos o grande elogio recebido de Cristovam, que disse que só votaria pela volta de Dilma se ela mantivesse Henrique Meirelles e a equipe econômica. Ou seja, o aggiornamento de Cristovam não foi apenas em relação ao PT, mas à própria social democracia e à função do Estado que um dia fizeram parte de sua biografia.

     Cristovam é uma espécie de Eugenio Bucci do Senado, equilibrando-se permanentemente entre extremos através de declarações rasas de um equilibrismo vazio.

     A receita da lição de casa – os sacrifícios impostos aos cidadãos - funcionou quando podia se invocar o fantasma da hiperinflação. Qualquer sacrifício seria legítimo, pois todos eles visariam impedir a volta do fantasma.

     O momento é outro. Têm-se uma população que experimentou períodos de bonança, conquistou direitos, incluiu-se no mercado e não aceita retrocessos. Para ela, Temer acena com mudanças radicais na Previdência, cortes nos gastos sociais com educação e saúde, aparelhamento da máquina pública com o que de pior a fisiologia política criou, a corrupção endêmica, profundamente enraizada na atuação política do grupo que empalmou o poder.


A democracia sem votos

     É nessa sinuca que se desenvolve a tese da democracia sem votos, um sistema controlado pelas corporações públicas, pelo Ministério Público Federal e Tribunais superiores, pelos Tribunais de Contas associados à mídia.

     É por aí que se entende a geopolítica norte-americana, de aproximar-se das estruturas dos Ministérios Públicos e Judiciários nacionais. Aliás, como bem lembrou Dilma na entrevista à Pública, a interferência externa não é agente central do golpe, que é fundamentalmente coisa nossa.

     Será impossível se aplicar as teses neoliberais a seco. Nem encontrar políticos de discurso claro e vida limpa para conduzir o desmonte do Estado social sem ter o que mostrar pela frente.

     Olhando todas essas peças do jogo, há movimentos que tenderão a crescer exponencialmente:

1.      Contra o golpe, ganhará fôlego a tese da constituinte exclusiva para a reforma política, suprapartidária, tendo como bandeira comum a crítica à crise de representatividade do Parlamento e dos partidos.

2.      Como aprimoramento do golpe, inicialmente a tentativa de tucanização de Temer, esbarrando na dinâmica da Lava Jato, de criminalizar também as lideranças tucanas até agora poupadas. Todos fazem parte do mesmo balaio.

3.       Como saída alternativa, o impedimento da chapa Dilma-Temer seguido de eleições indiretas visando consagrar alguém fora da política tradicional para completar o trabalho.

4.       Como lance final, maneiras de inviabilizar as eleições de 2018, pela óbvia impossibilidade de vencer eleições montado na velha lição neoliberal de desmonte das conquistas sociais.

Comentário
     Caberia analisar muitos pontos expostos aqui, mas gostaria de frisar apenas alguns.
- Interessa à plutocracia um presidente tão sabidamente corrupto e frágil quanto Michel Temer, para que ele seja mantido nas cordas;
- A partidarização da lava-jato é tão flagrantemente exposta que chega a ser risível. É uma pena que eles tenham bandidos de estimação, pois perde-se a oportunidade histórica de passar o Brasil a limpo.
- Não se inviabilizam as eleições de 2018, não porque esta súcia que esta no poder tenha algum grau de seriedade ou consciência cívica, democrática ou moral, mas simplesmente porque isto seria desastroso no plano internacional. O que esta plutocracia fará é inviabilizar os candidatos. O notório fascista Jair Bolsonaro, por exemplo, que já fez coisas muito piores do que as que ele é acusado agora, deve acabar caindo, por dois motivos singelos: primeiro porque é incontrolável, e segundo, porque tira votos dos fascistas que habitualmente se refugiam no PSDB. 

Unidade de guerrilheiras do Curdistão - por Joey L (Fotografia - site homônimo)


 Sorin, Tel Hamis, Síria, 9 de março de 2015.

Minha Boca em movimento - por Natália Rizzo


Fotografia - por Epa / Farooq Khan (Telegraph)


     Homem caminha em um campo de mostarda,  nos arredores de Srinagar, capital de verão da Caxemira indiana.

Sobre o liberalismo - por Renato Janine Ribeiro (Facebook)

     Uma coisa bastante ridícula no Brasil é que há quem se diga "liberal" quando é, apenas, reacionário. O liberalismo o que é? É a crença de que o ser humano tem riquezas intrínsecas, únicas a cada indivíduo, que - se retirarmos os entraves externos, como os do Estado, da Igreja, de qualquer externalidade em suma - se desenvolvem ao máximo. Para florescermos, basta podar as ervas daninhas, que cada um crescerá em sua singularidade preciosa.

     Então, não deve haver repressão por parte do Estado, Igreja etc. - nem mesmo indução. O socialista poderia concordar quanto a não haver repressão, mas entenderia que uma série de políticas têm cabimento induzindo. O liberal, não.

     Ora, qual é a externalidade mais opressora em nosso País? A pobreza, sobre os mais pobres. Portanto, um liberal DE VERDADE tem que lutar para que a pobreza não seja uma externalidade que impede os mais pobres de florescerem. Ações afirmativas e até mesmo cotas se tornam necessárias, de um ponto de vista liberal, claro que só até uma igualdade de oportunidade existir.

     Porque, se para o socialista a igualdade no ponto de CHEGADA é importante, para o liberal ela é necessária no ponto de PARTIDA. 

     Isso não quer dizer qual dos dois, socialismo ou liberalismo, é melhor. Mas pelo menos devemos entender que quando um tonto qualquer se diz liberal porque recusa políticas públicas de combate à miséria, ele é apenas tonto. Liberal não é.

Sonho marinho - por Elena Dudina (Deviantart)

Sobre o Brexit

     O tal brexit é o mesmo caso que leva boas pessoas a apoiarem um réles clown como um Bolsonaro da vida: se não se reconhece a real origem de seus problemas, naturalmente vai-se chegar à uma conclusão equivocada das soluções possíveis para saná-los...

     Não sei, não, mas como diria certa pessoa, "por uma questão de perspectiva", acho a decisão inglesa e galesa catastróficas. Não é o primeiro passo para a dissolução de toda a União Europeia. É o primeiro passo para a guerra.



Fotografia manipulada - por Flora Borsi (site homônimo)

É tempo de viver sem medo - por Eduardo Galeano


Sonho patagônico - por Andy Lee (site homônimo)

Delírio golpista

     ¿Será que Michael Temerário, O Poetastro realmente acredita nisto? Bem, torço sinceramente para que ele SAIBA que esta mentindo.

     Porque se ele realmente acredita em tamanha patetice, em algo tão esdrúxulo, então estamos pior do que imaginávamos. Chegou-se ao deplorável estágio de um homem que, numa circunvolução trágica, se torna um mitômano que acredita na própria mentira.

     O motivo de o mordomo de vampiro exigir ser candidato a vice foi justamente porque ele sabia não que não teria votos sequer para ser eleito deputado federal por São Paulo. Na última eleição que havia disputado para deputado (a de 2006), ele não conseguiu individualmente a quantidade de votos necessários, entrou na câmara apenas por conta do quociente eleitoral.

     Não sei se o temerário mente ou se apenas delira. De qualquer forma, estamos muito, muito mal.


P.S.: o site Surrealista fez uma ótima compilação das respostas a este comentário delirante.

Retrato digital - por Eve Ventrue (site homônimo)

Manuscritos - por Meu Professor de História

Trecho do livro Manuscritos econômico-filosóficos, de Karl Marx:

Trem entre Suíça e Itália (Fotografia - churtourismus)

Sobre o ataque na boate LGBT em Orlando

Aí vamos na sequência:
Não existe homofobia, isto é mimimi.
Ato contínuo, pede-se a legalização das armas.
O resultado desta conta é fácil.



¡Quanta fé!

https://www.facebook.com/OCafezinho/videos/1100019473354518/

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Malévola - por Jason Bennett (Arte digital - Coolvibe)

O xadrez da manipulação dos fatos e das leis - por Luis Nassif (Jornal GGN)

     A base de toda sociedade democrática é a informação. Sobre a base da informação, formam-se os conceitos. Dos conceitos nascem os pactos. Os pactos se consolidam em leis. Das leis, derivam os contratos. É esse ciclo que garante a convivência civilizada de opostos, as eleições, a alternância de poder e a construção da democracia, impedindo abusos, selvageria.

     Essa é a expressão final do termo segurança jurídica.

     Hoje em dia, vive-se um estado de exceção no país, porque esta cadeia foi corrompida. A corrupção de informações e conceitos tornou-se tão ampla e disseminada, que criou-se um novo normal jurídico, onde a exceção tornou-se regra. 

Ponto de partida - a era dos factoides soltos

     A primeira trinca no sistema de informações ocorreu com o pacto entre os grupos de mídia, proposto por Roberto Civita, da Editora Abril, inspirando-se no australiano-americano Rupert Murdock.

     Os princípios do pacto eram a formação do cartel e, sem contraditório, a disseminação de todo tipo de factoide, de notícias falsas, por mais inverossímeis que fossem, acreditando no poder sempiterno da repetição. 

     Ali encerrou-se um ciclo de mídia em que houve relativa competição entre os veículos, relativo respeito à informação, relativo acatamento das teses legitimadoras, impedindo a disseminação de notícias falsas.

     Sem o apoio de uma fonte diária de fatos, o modelo era alimentado pela parceria com organizações criminosas, como a de Carlinhos Cachoeira, com a indústria de dossiês associada, que emerge com o caso Lunus de José Serra e que torna-se elemento central da disputa política brasileira.

     As eleições de 2006 e 2010 marcaram o coroamento dessa excrescência. A busca de factoides a qualquer preço gerou as peças símbolos do período: a escandalização da tapioca comprada com um cartão corporativo pelo Ministro dos Esportes Orlando Silva. Ou a denúncia de que um servidor da Casa Civil havia comprado os serviços de vinte bailarinas – e bailarina era um tipo de vaso ornamental para flores.

Segundo passo - o julgamento do mensalão.

     Com o mensalão, o sistema ganha musculatura, porque o julgamento passou a garantir um fluxo continuado de fatos com viés claro. 

     A ênfase inicial no julgamento deveu-se à tática de competir com a geração de fatos da CPMI de Carlinhos Cachoeira – que expunha as parcerias da mídia com organizações criminosas. 

     Em pouco tempo o fato AP 470 se sobrepôs ao fato CPMI de Cachoeira. E a mídia descobriu a eficácia da parceria com o sistema judicial, explorando episódios que garantissem um fluxo diário de fatos.

     Ali houve a primeira contaminação, a primeira quebra grave no sistema judicial, fundando-se em uma notícia falsa como peça central de um julgamento relevante. 

     Esqueça-se o petismo e o antipetismo, as polêmicas em torno de José Dirceu, a malandragem pouco sutil de Pizolatto, e concentre-se no fato: todo o julgamento baseou-se em uma informação falsa: o desvio de R$ 75 milhões da Visanet. Os próprios funcionários do Banco do Brasil - que detestavam Pizolatto - asseguraram que jamais ocorreu o tal desvio. 

     Posteriormente, a Lava Jato escancarou o gigantesco processo de propinas da Petrobras. Mas a AP 470 se baseou em uma mentira.

     A informação falsa foi a peça central da acusação, aventada pelo Procurador Geral Antônio Fernando de Souza, endossada pelo grupo de procuradores que trabalhou no processo e acatada pelo ex-procurador Ministro Joaquim Barbosa e pelo pleno do Supremo.

     Como foi possível um fato de tal gravidade ter sobrevivido à tantos filtros? E como foi possível deixar de lado o laudo da Polícia Federal sustentando que a maior parte dos recursos de Marcos Valério foi bancado pelo grupo Opportuniy, do banqueiro Daniel Dantas?

     Ali ficou claro que a Corte Maior havia se rendido às paixões políticas. E  as análises colegiadas não serviam de filtro às narrativas do Procurador Geral. Pouco depois de deixar a PGR, aliás, Antônio Fernando assumiu um escritório de advocacia que conquistou um mega-contrato da Brasil Telecom, de Dantas. 

     Dali em diante, todo o sistema de informações do país entrou em curto-circuito. Mídia, partidos políticos, agentes do Estado, juízes passaram a tratar o fato de forma utilitária, adaptando-o às suas preferências partidárias, adulterando-o se necessário através do recurso da manipulação de ênfases e de interpretações.

     Antes, à falta de fluxo constante de notícias, os grupos de mídia esfalfavam-se em factoides sem nenhuma verossimilhança. Com o julgamento do mensalão, descobriu-se o que os golpistas de 1954 sabiam: a base de toda ação desestabilizadora consiste em um evento, com geração diária de fatos e com o controle das versões pelos grupos hegemônicos de mídia. Foi assim na CPI da Última Hora, com Vargas. Foi assim na AP 470.

Terceiro passo - A campanha negativa a partir de 2012

     Valeram-se desde as falsas ênfases (enfatizar o fato negativo irrelevante para ocultar o positivo relevante) até as falsificações de notícias. No dia da inauguração da arena do Corinthians, a manchete de um jornal foi sobre a falta de sabonete nas pias do banheiro.

     Ora, nos Estados Unidos houve o fenômeno mãe, o caso FoxNews, de Murdock. Mas as instituições dispunham de anticorpos, seja no jornalismo referencial de outros veículos, como o New York Times, seja no próprio processo de formação de opinião do Parlamento e do Judiciário. No Brasil todos os grandes veículos embarcaram no mesmo jogo do antijornalismo.

     O grande problema foi quando o desvirtuamento das informações atingiu o sistema jurídico. Não apenas os fatos, mas os conceitos passaram a ser deturpados. E a parcialidade da Justiça abriu sua bocarra, através de Gilmar Mendes.

Quarto passo - o fator Gilmar Mendes.

     Nenhum outro personagem foi tão daninho à ordem jurídica e ao sistema de informações quanto Gilmar Mendes. No início, meio sutil, depois escancarando sua parcialidade, mostrou seguidamente à opinião pública que a lei, ora a lei, é apenas um instrumento para legitimar a vontade do julgador. Vai perder uma votação? Basta pedir vista por tempo indeterminado. É "inimigo"? O peso da condenação. É "aliado"? A defesa por todos os meios, jurídicos e jornalísticos. O mesmo garantista que interrompeu a Satiagraha se tornou o mais iracundo acusador em operações contra “inimigos”.

     A parcialidade criou uma pedagogia negativa, para o público uma demonstração  da parcialidade do julgador, abrindo campo para que outros operadores da lei - juiz, procurador ou delegado -- passassem a exercer o subjetivismo em favor de suas preferências pessoais.

Quinto passo - a Lava Jato

     Chega-se, finalmente, ao ápice desse modelo na Lava Jato, com o uso disseminado  dos vazamentos, praticados em inquéritos sob sigilo em Curitiba, na Procuradoria Geral da República e no Supremo Tribunal Federal, devidamente amarrados com a agenda do impeachment.

     Nesse momentos, instaura-se o novo normal. Não interessam as coletas de provas, indícios, evidências: vale a versão publicada. Não interessa o processo jurídico: vale o julgamento midiático. Todos os vazamentos têm objetivos políticos claros e exibição de músculos por parte de seus autores. E abandona-se definitivamente a presunção da isenção para perseguições políticas ostensivas.

Sexto passo – a campanha do impeachment

     A campanha do impeachment é mera consequência dos passos anteriores. E se tornou a comprovação mais acabada do desvirtuamento de fatos e de conceitos.

     Agora não são mais procuradores e delegados transformados em editores de jornais, nem deputados paleolíticos com seus gritos guturais e seus rituais selvagens. São também juristas, Ministros do STF, ex-presidente que aderem ao jogo, ou se eximindo ou assumindo de público a constitucionalidade do golpe, em um momento em que todos os fatos são transmitidos em tempo real para o mundo. Por seis decretos de remanejamento de despesas, jogam-se no lixo 54 milhões de votos e assumem interinos, sem mandato popular, comportando-se como conquistadores espanhóis empenhados em destruir a civilização anterior.

     É nesse momento que o processo de desconstrução dos fatos, de livre criação de narrativas, ainda que inverossímeis, definem a nova cara institucional do país, o novo normal, trazendo de volta o fantasma da insegurança jurídica. 

A reação instintiva das ruas

     E aí ocorre um fenômeno interessantíssimo.

     Em que pese todo fogo de barragem dos grupos de mídia, todo o poder de disseminação de versões, de boatos, de factoides, a narrativa do impeachment constitucional não pegou.

     Agora, nas ruas, não estão mais as massas tangidas por um sentimento difuso de descontentamento com a crise política, com a falta de perspectivas e com os erros da presidente.

     Os manifestantes não são meramente petistas, movimentos sociais, mas também grupos dos mais distintos, segmentos dos mais diversos que entenderam, seja pelos debates na Internet, seja por intuição, a importância da legalidade, do cumprimento das leis, da Constituição, os riscos de retrocesso, muito mais do que a erudição sem consequências de Ministros do Supremo, a exibição de músculos do Procurador Geral, o sebastianismo de procuradores evangélicos e a truculência de delegados barras-pesadas, todos armados até os dentes com instrumentos de poder de Estado.

     É essa a grande batalha nacional, onde Dilma ou Temer se tornaram símbolos, muito mais do que protagonistas. Fora do poder, Dilma ganhou uma dimensão simbólica que jamais teve antes em seus tempos de presidente, nem quando gozava de índices elevados de popularidade, muito menos quando atropelou as esperanças populares, após as eleições de 2014.

     A batalha do impeachment tornou-se definitivamente a luta da civilização contra a barbárie, dos fatos contra as manipulações, da democracia, ainda que imperfeita, contra o assalto ao poder.

     E, dessa avalanche, surge finalmente o melhor do Brasil: a moçada que descobriu a nova política, não mais atrelada a partidos, mas a bandeiras.

     O Brasil moderno está em plena efervescência. Não sei se a ponto de derrubar o castelo de manipulações erigido nos últimos anos, mas certamente para confrontar o atraso em um ponto qualquer do futuro.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Fotografia - por National Geographic

É preciso muita fé - por Laura Carvalho (Folha)

Christine Lagarde, diretora-gerente do FMI
     O artigo de três dos principais economistas do FMI publicado na quinta passada (26), a começar pelo título – "Neoliberalism: Oversold?" –, tem tido grande repercussão.

     A palavra "neoliberalismo" até aqui era considerada um palavrão típico de maluco de palestra, desses que não devem entender nada de economia e de capitalismo. Afinal, seus benefícios estão desenhados em qualquer manual. Só os mais ideológicos ou ignorantes insistiriam em desafiar a lógica.

     Em vez de estimular o crescimento, os autores, veja você, defendem que algumas políticas neoliberais teriam elevado a desigualdade, prejudicando uma expansão econômica duradoura. O artigo foca dois tipos de política, cuja eficácia vinha sendo questionada em inúmeros estudos do departamento de pesquisa do FMI.

     A primeira é a chamada abertura financeira. Segundo os autores, em vez de estimular o investimento produtivo em países com baixo nível de poupança, o livre fluxo internacional de capitais especulativos tende a elevar a frequência das crises e os níveis de desigualdade.

     A segunda crítica refere-se às políticas voltadas para a redução do tamanho do Estado na economia. Os autores destacam que o custo de redução da dívida pública, via aumento de impostos ou cortes de gastos produtivos, pode ser maior do que o benefício.

     "Diante de uma escolha entre viver com uma dívida mais alta –permitindo que a razão dívida-PIB caia organicamente pela via do crescimento– ou promover deliberadamente superavit fiscais para reduzir a dívida, governos com espaço fiscal amplo se dão melhor ao conviver com a dívida." O argumento é reforçado pela referência a um estudo que indica que uma consolidação fiscal de 1% do PIB aumenta a taxa de desemprego em 0,6 ponto percentual no longo prazo, e o índice de Gini, que mede a desigualdade, em 1,5% em cinco anos.

     "Estratégias de consolidação fiscal –quando necessárias– podem ser desenhadas para minimizar o impacto adverso nos grupos de baixa renda. Mas, em alguns casos, as consequências distributivas inconvenientes terão de ser remediadas depois de sua ocorrência, com a utilização de impostos e gastos públicos para redistribuir renda." Gastos com educação, por exemplo, são considerados bem-vindos.

     As evidências são que o esforço fiscal brasileiro em 2015, com corte de gastos efetivos reais da ordem de 4% (descontadas as "despedaladas") e de 40% nos investimentos públicos, aprofundou a crise econômica, prejudicou os mais vulneráveis e manteve, pela falta de arrecadação tributária e as altas taxas de juros, a mesma trajetória de aumento da dívida pública.

     A resposta dada pelo governo interino é diminuir ainda mais o espaço para os investimentos e gastos sociais pelo estabelecimento de uma regra que congela as despesas federais em termos reais. Segundo reportagem do jornal "Financial Times" de terça-feira (31), até o economista David Becker, do Bank of America Merrill Lynch, achou as medidas "agressivas", por não deixarem espaço para a atuação anticíclica do governo.

     A conclusão do texto dos economistas do FMI sugere aos formuladores da política econômica que não se deixem guiar pela fé, e sim pelas evidências. No caso da tragédia brasileira, o governo interino recomenda que o povo não pense, não fale em crise e, sobretudo, tenha muita fé.

Comentário
     Para quem foi às ruas na adolescência gritar “Fora FMI” por conta da aplicação das políticas neoliberais preconizadas pelo fundo, não deixa de ser salutar ver que a própria instituição reconhece hoje a inoperância, a vacuidade, a tragédia que o neoliberalismo lega as sociedades.

     Falta agora combinar com Joaquim Levy, Barbosa, Meirelles, a imprensa marrom  e por conseguinte os coxinhas  que ainda não acordaram para o fracasso incontestável da ideologia que defendem.