quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Sobre achismos, torcidas e que tais

     O grande escritor uruguaio Eduardo Galeano, em seu pequeno e belo livro Futebol ao sol e à sombra, compartilha uma emblemática história conosco, alcunhada Fervores:
     “Em abril de 97, tombaram crivados de balas os guerrilheiros que ocupavam a embaixada do Japão na cidade de Lima. Quando os comandos irromperam, e num relâmpago executaram a espetacular carnificina, os guerrilheiros estavam jogando futebol. O chefe, Néstor Cerpa Cartolini, morreu vestindo as cores do Alianza, o clube de seus amores.
     Poucas coisas ocorrem na América Latina, que não tenham alguma relação, direta ou indireta, com o futebol. Festa compartilhada ou compartilhado naufrágio, o futebol ocupa um lugar importante na realidade latino-americana, às vezes o lugar mais importante, ainda que ignorem os ideólogos que amam a humanidade e desprezam as pessoas.”

     Lembrei-me deste trecho porque no clássico entre Palmeiras e Flamengo na última quarta-feira, o rubro-negro carioca, jogando na casa do adversário, sem torcida por conta de uma decisão do STJD, tendo um jogador injustamente expulso ainda no primeiro tempo, conseguiu a proeza de abrir o placar contra o Palmeiras e só levou o gol de empate quase aos quarenta minutos do segundo tempo.
     A despeito do belo jogo, só um dos dois times jogou como um campeão, o que me faz crer que o Flamengo levará o título esse ano.
     Tal conclusão sobre o time que levantará a taça  que não à toa é o meu  me fez lembrar que nós, torcedores deste esporte que tanto impacta em nosso imaginário coletivo (como bem aponta a história de Galeano), damos vazão a sentimentos intensos, abrangentes e determinantes. Mas todos estes fervores, como não poderia deixar de ser, ainda são oriundos de sentimentos – por isto não são racionais. Nós torcemos para um lado, e vamos defendê-lo até o fim, vamos atacar o time adversário – afinal, ele é adversário. Nós, torcedores, temos determinada preferência, valorizamos o que nos agrada, o que se destaca do nosso time e minimizamos o que é bom no outro. Damos suma importância às faltas que julgamos que cometeram contra nós e desvalorizamos as faltas cometidas pelo nosso time, pelo nosso lado, ou pela nossa seleção.
     Nossa torcida não expressa uma decisão racional, calculada  mas antes preferências arbitrárias. Se formos honestos, admitiremos que nunca conseguimos ter a isenção devida, sempre distorceremos (eventualmente mais ou menos) a realidade para fazer com que ela se encaixe em nossas premissas de torcedores. Mesmo que imperceptivelmente, nós deixamos que nossa escolha por certo time, ou por certa seleção, ou por certo lado, interfira no que acreditamos e defendemos, ¿não é mesmo? Temos que ter ao menos a grandeza de admiti-lo, a torcida é tão intensa que é capaz de distorcer nossa razão. Por isso, os torcedores do Flamengo têm certeza que o Márcio Araújo até poderia, mas não deveria ter sido expulso e o árbitro cometeu um erro grave; enquanto os do Palmeiras acham que ele deveria ter sido expulso invariavelmente. Com efeito, passamos realmente a acreditar que estamos sendo prejudicados e que os do outro lado estão sendo beneficiados irregularmente.
     É raça, amor e paixão, como diria um dos gritos de guerra rubro-negros. Não era de se esperar nada de diferente. É coisa de torcedor, onde prevalece aquilo que é irracional, emotivo, arbitrário. Torcida não é sinônimo de razão, de justiça, de imparcialidade. Muito ao contrário.
     Mas eu não poderia deixar de pontuar. Exatamente por ser um torcedor e saber como isto influi nos meus julgamentos, por ser um torcedor e compreender que isto deprecia minha capacidade analítica, por ser um torcedor e ter ao menos o discernimento de saber que tal sentimento afeta minha percepção do que é justo ou não, por ser um torcedor e saber que isto perturba minha racionalidade, por ser um torcedor e reconhecer que tenho lado, que sou parcial, emotivo e arbitrário em minha preferência, eu quero deixar bem claro: eu não tenho provas de que o Flamengo ganhará o título esse ano. Só tenho a convicção.