segunda-feira, 21 de março de 2011

Os fracassos de Obama – por Antonio Luiz M. C. Costa (CartaCapital)

A tragédia do homem certo a quem coube se eleger para governar o país errado, na hora errada.

 Foto: Pete Souza/LatinStock

O presidente Barack Obama abandonou de vez, ao que tudo indica, o mais simbólico de seus compromissos. Na segunda-feira 7, revogou seu próprio decreto que suspendia os julgamentos dos presos de Guantánamo por tribunais militares, permitindo sua retomada. Ordenou ainda a manutenção dos muitos presos não oficialmente acusados, mas tidos como “ameaças à segurança nacional”. Ficará ao arbítrio de uma comissão militar avaliar dentro de um ano, e depois a cada três anos, se continuam a ser “ameaças”, se devem ser julgados em tribunal militar ou se devem ser liberados.

Durante a campanha eleitoral, o candidato Obama prometeu fechar a famigerada prisão de Guantánamo assim que assumisse o governo. No dia da posse, reafirmou que a prisão estaria fechada no prazo de um ano, ou seja, até 20 de janeiro de 2010 e vetou os julgamentos pela justiça militar. Passados dois anos e um mês, volta atrás e arquiva a dupla promessa.

Em novembro passado, o tanzaniano Ahmed Ghailani, acusado de atentados às embaixadas dos EUA na Tanzânia e no Quênia, foi levado a julgamento em tribunal civil de Nova York e absolvido da maioria das 285 acusações por falta de provas. A que restou, de “conspiração”, bastou para condená-lo à prisão perpétua, mas não satisfez os republicanos, que usaram o veredicto e a pena “leve” para argumentar que não se pode confiar em civis para julgar “terroristas”. Obama, outra vez, cedeu.

Talvez não seja a concessão mais importante que já fez. Mais séria foi sua capitulação aos interesses de Wall Street, que o documentário Trabalho Interno (Inside Job) recordou e assinalou ao grande público. Mas o fato de não conseguir manter suas posições nem mesmo em questões de pouca importância material, mas simbolicamente marcantes, dá a medida da sua fraqueza. Está à mercê das chantagens da oposição até para manter o governo funcionando semana a semana, dada a recusa dos republicanos a aprovar o orçamento de 2011.

Compare-se com Lula: também enfrentou uma crise econômica e financeira no primeiro ano e o terceiro (2005) foi de crise política quase contínua. Mas, se cedia muito (talvez mais que o necessário) para acalmar o mercado financeiro, impunha sua marca com o Bolsa Família, os aumentos reais do salário mínimo e uma diplomacia independente. No início de seu terceiro ano, iniciava a desdolarização da dívida pública e completava o resgate da dívida externa com o FMI e de décadas de dependência. Seu partido, o PT, tivera um bom resultado nas eleições de “meio de mandato”, saltando de 187 para 402 prefeitos. O desemprego caía, e a renda dos mais pobres e da Região Nordeste crescia em ritmo “chinês”. Apesar do alarde da oposição e da imprensa conservadora sobre o suposto “mensalão”, Lula não perdeu a iniciativa e foi reeleito com mais de 60% dos votos válidos e 70% de aprovação.

Tudo indica que será muito mais difícil para Obama dar a volta por cima de maneira comparável. A eleição de meio de mandato foi desastrosa, com a perda de vários senadores e governos estaduais e da maioria da Câmara e a radicalização da oposição de direita. Sua vitória política mais importante, a reforma da Saúde – obtida à custa de muitas concessões e diluições, embora seu Partido Democrata tivesse a maioria absoluta das duas casas do Congresso durante os primeiros dois anos de governo –, está sob ataque cerrado no Legislativo, que lhe nega recursos, no Judiciário, onde vários juízes a declararam inconstitucional, e nos estados governados por republicanos, que reivindicam o direito de rejeitá-la em suas jurisdições.

A reforma da política nacional de imigração foi inviabilizada no Congresso e tem sido substituída por selvagens leis estaduais anti-imigrantes. A política externa só acumulou decepções e fracassos e a guerra no Afeganistão e Paquistão vai de mal a pior. Os planos de investimentos bilionários em ambiente, educação e infraestrutura foram para o lixo: tudo foi bloqueado e as administrações locais cuidam de desmantelar o ensino público, os serviços municipais e estaduais e a legislação ambiental. Sua proposta de reforma política e controle das doações foi rejeitada pelo Congresso e soterrada sob uma decisão da Suprema Corte, que, em nome da “liberdade de expressão, derrubou todas as limitações para as grandes corporações financiarem campanhas eleitorais ou fazerem propaganda política direta.

A política econômica de Obama e do Fed recuperou o setor financeiro e, até certo ponto, o crescimento do PIB. Mas a maioria não se beneficiou disso. O desemprego continua alto, a minoria beneficiada se põe entusiasticamente do lado da oposição e a enxurrada de dólares liberada pela “flexibilização quantitativa” causa ainda mais problemas para a política externa. Por um lado, ampliou os atritos com amigos e inimigos ao deflagrar uma “guerra cambial”. Por outro, ao estimular a especulação com commodities, acentuou a alta internacional dos preços de alimentos e a instabilidade política de países-chave para a estratégia dos EUA. Isso trouxe uma onda de revoltas na África e no Oriente Médio, que, por sua vez, volta a abalar a economia dos EUA pela alta do petróleo. Um efeito borboleta para Eric Bress nenhum botar defeito.

Forças irresistíveis da história, inabilidade política ou simples pé-frio? Um pouco de cada coisa. Obama assumiu os EUA em uma fase estruturalmente desfavorável, de decadência econômica e política relativa. Além disso, em um dos piores momentos possíveis em termos conjunturais, logo após o início da maior crise financeira da história do capitalismo desde 1929. Mas, além disso, Obama fracassou em entender o momento histórico e político e agir de acordo.

Fez campanha para corrigir o rumo de um país no auge da prosperidade no sentido de mais justiça social e bom senso ambiental. Não encontrou o tal país e perdeu completamente a bússola. Preparou-se para governar em um clima de negociação, respeito mútuo, argumentação sensata e racionalidade comunicativa, como diria Jürgen Habermas. Encontrou uma oposição fanatizada e preconceituosa, disposta a seduzir as massas com propaganda passional e teorias delirantes, mas continua a apostar em uma negociação política tradicional, como um jogador de xadrez que, lançado num ringue de luta livre, insiste em obedecer a seu próprio livro de regras.

Em nenhum momento, como se queixou repetidamente o economista e colunista liberal Paul Krugman, Obama falou ao povo ou aos próprios democratas sobre o caráter feroz e classista da luta política em curso nos EUA, como um líder disposto a enfrentar a oposição, defender seu lado e seus argumentos, propor medidas ousadas, e denunciar a má-fé dos republicanos e da elite financeira quando estas fossem bloqueadas. Se fizesse isso, talvez não evitasse a crise econômica nem as derrotas no Congresso, mas teria a seu lado um discurso consistente em torno do qual agrupar seus partidários e uma parcela significativa da opinião pública. Em vez disso, com sua disposição a ceder sistematicamente à pressão dos republicanos e defender com as melhores soluções as derrotas que não conseguiu evitar, abandonou pelo caminho uma trilha de ex-entusiastas desiludidos.

Um exemplo foi a questão ambiental: inicialmente, defendeu o investimento em fontes alternativas e a proibição da exploração do petróleo no Golfo do México. Depois, cedeu aos republicanos para liberá-la e promovê-la ao lado de um programa de biocombustíveis. Teve então a má sorte de enfrentar o pior vazamento de petróleo da história do país, voltou atrás e pediu punições à British Petroleum. Mais uma vez ficou com o pior dos dois mundos: o desprezo dos ambientalistas por ter cedido às petroleiras e o ódio dos conservadores por não liberar o capital de todas as restrições.

A razão da pior derrota dos democratas desde 1948 não foi a perda de eleitores para a direita, mas o desânimo de negros, jovens e hispânicos, que, conquistados para as urnas por Obama em 2008, desistiram de votar em 2010. Assim como eleitores anônimos, também muitas personalidades que festejaram a vitória de 2008 se tornaram críticos de Obama, embora, obviamente, não tenham se tornado adeptos do Tea Party. Entre eles, os atores Matt Damon (narrador de Trabalho Interno), Robert Redford e Angelina Jolie, os diretores Michael Moore e Spike Lee e a jornalista Maria Shriver.

Obama cercou-se de assessores identificados com interesses ligados a Wall Street e ao complexo industrial-militar, obviamente, contrários àqueles da maioria de seus eleitores. Entre eles, Lawrence Summers, Robert Rubin e Ben Bernanke – três dos principais vilões de Trabalho Interno – e os secretários da Defesa, Robert Gates, e do Tesouro, Tim Geithner. Caiu desde o início na armadilha de aceitar como técnica e consensual uma postura política conservadora e elitista – que na maioria dos países do mundo seria considerada definidamente direitista – e a partir daí negociar concessões à direita mais radical. Sem deixar, por isso, de ser execrado pelos bancos e transnacionais.

A partir de políticas formuladas por sua equipe, resgatou os grandes bancos dos EUA praticamente de graça, sem exigir contrapartida. Permitiu que seus balanços voltassem a registrar lucros bilionários e que esses fossem distribuídos a seus executivos. Combateu a crise com estímulos econômicos ao setor privado e gastos públicos (inclusive militares), apesar da forte queda da arrecadação. Teve de gerar fortes déficits e endividou pesadamente o orçamento da União. Apesar disso, rendeu-se à pressão dos republicanos para prorrogar o corte de impostos dos ricos herdado de Bush júnior – e, ao mesmo tempo, aceitou submeter-se aos cortes das despesas públicas exigidos por esses para “equilibrar” as contas.

Noves fora, isso significou salvar banqueiros e empresários das consequências de seus próprios erros e negociatas e forçar os usuários de serviços públicos – a parte mais necessitada da sociedade estadunidense – a pagar por isso, juntamente com os servidores do Estado. E ainda assim é acusado por grandes empresários de ser “o presidente mais antiempresarial da história”, devido a propostas como a de proteger o consumidor de serviços de saúde e financeiros por meio de regulamentos triviais, muito mais frouxos que os de qualquer outro país civilizado. Apesar de suas promessas de renovar as relações com as nações periféricas, cedeu às pressões dos lobbies industrial, bélico e sionista, provocou governos da América Latina com pressões econômicas e militares, tentou proteger golpes e ditaduras “amigas” – e mesmo assim é taxado de “anticolonialista” (por Dinesh D’Souza na Forbes, por exemplo).

A elite econômico-financeira dos EUA foi mal-acostumada desde Ronald Reagan por taxas de lucro e rendimentos anuais de dois dígitos nas bolsas, resultado de brutal transferência de renda do trabalho para o capital (pela desregulamentação, novas tecnologias e globalização), do resto do mundo para o país (pela globalização dos mercados financeiros e atração de capitais), da classe média para a elite (pela redução de impostos e restrições legais a altos salários) e da elite para a superelite (pelo uso sem limites de bônus, derivativos e inovações financeiras). A concentração de renda aumentou e a mobilidade social diminuiu perigosamente. A própria classe média alta está agora em perigo: mostram as estatísticas que o desemprego trazido por inovação tecnológica e globalização, que nos anos 80 afetava principalmente os menos educados, agora atinge as profissões mais qualificadas.

Com a crise, tudo isso chegou ao limite, se é que já não o tinha ultrapassado muito antes. Como notou Michael Moore ao discursar aos manifestantes de Wisconsin, as 400 famílias mais ricas dos EUA detêm, hoje, metade da riqueza do país, tanto quanto os outros 155 milhões de famílias, somadas. Aos 60% menos ricos, cerca de 93 milhões, cabem 2,3% dos ativos totais.

Fosse uma economia promissora, não sobrecarregada por dívida pública e privada, Obama talvez soasse menos ameaçador ao propor que a elite, após décadas de contínua engorda, contenha o apetite e dê a vez às massas para que tenham sua fatia do crescimento econômico, no interesse do conjunto da sociedade e de sua prosperidade a longo prazo. Mas, na falta de perspectivas imediatas, qualquer gesto de simpatia para com os menos favorecidos soa como radicalismo perigoso. Declarou-se a luta de classes e o jogo de ganha-ganha, do qual Obama gosta de falar, acabou antes de começar. O capital sabe que, hoje, o jogo é de soma zero. Resta a Obama tentar negociar os cordeiros com um lobo que nem sequer se dispõe a esperar que engordem.

A direita Tea Party está decidida a continuar lucrando cada vez mais, haja ou não base material para isso. Na falta desta, a solução é tomar o poder no grito (transmitido pela Fox e financiado pelas transnacionais) para desmantelar os serviços públicos e a previdência social e baixar salários, mesmo que para isso se façam necessárias medidas quase fascistas de proibição da organização sindical e da negociação coletiva. Ao mesmo tempo, Wall Street, com a cumplicidade do Fed e sem nada ter aprendido com 2008, volta a tentar aspirar à poupança do mundo para financiar perigosas jogadas financeiras. Com isso, arrisca-se a matar suas três galinhas dos ovos de ouro: a classe trabalhadora, que deu à sua economia a liderança em produtividade, a classe média, que garantiu o consumo de seus produtos, e o dólar, que deu a seu sistema financeiro o controle da circulação mundial da riqueza. Mas os deuses primeiro enlouquecem a quem querem perder.


Comentário
Concessão por concessão, o presidente Lula também fez as suas, claro - algumas horríveis, inclusive. Mas se fosse para comparar, diria que a presidente Dilma se encaminha muito mais pra um governo similar ao de Obama do que o de Lula, justamente por tantas e tantas concessões - supostamente ancoradas nas tais "correlações de forças" que compõem a sociedade brasileira.
Me engana que eu gosto.

sexta-feira, 18 de março de 2011

"Obama foi anulado pelo conservadorismo de bordel dos EUA" - entrevista com Maria da Conceição Tavares (Agência CartaMaior)

Em entrevista exclusiva à Carta Maior, a economista Maria da Conceição Tavares fala sobre a visita de Obama ao Brasil, a situação dos Estados Unidos e da economia mundial. Para ela, a convalescença internacional será longa e dolorosa. A razão principal é o congelamento do impasse econômico norte-americano, cujo pós-crise continua tutelado pelos interesses prevalecentes da alta finança em intercurso funcional com o moralismo republicano. ‘É um conservadorismo de bordel’, diz. E acrescenta: "a sociedade norte-americana encontra-se congelada pelo bloco conservador, por cima e por baixo. Os republicanos mandam no Congresso; os bancos tem hegemonia econômica; a tecnocracia do Estado está acuada”.


Quando estourou a crise de 2007/2008, ela desabafou ao Presidente Lula no seu linguajar espontâneo e desabrido: “Que merda, nasci numa crise, vou morrer em outra”. Perto de completar 81 anos – veio ao mundo numa aldeia portuguesa em 24 de abril de 1930 - Maria da Conceição Tavares, felizmente, errou. Continua bem viva, com a língua tão afiada quanto o seu raciocínio, ambos notáveis e notados dentro e fora da academia e esquerda brasileira. A crise perdura, mas o Brasil, ressalta com um sorriso maroto, ao contrário dos desastres anteriores nos anos 90, ‘saiu-se bem desta vez, graças às iniciativas do governo Lula’.

A convalescença internacional, porém, será longa, adverte. “E dolorosa”. A razão principal é o congelamento do impasse econômico norte-americano, cujo pós-crise continua tutelado pelos interesses prevalecentes da alta finança em intercurso funcional com o moralismo republicano. ‘É um conservadorismo de bordel’, dispara Conceição que não se deixa contagiar pelo entusiasmo da mídia nativa com a visita do Presidente Barack Obama, que chega o país neste final de semana.

Um esforço narrativo enorme tenta caracterizar essa viagem como um ponto de ruptura entre a ‘política externa de esquerda’ do Itamaraty – leia-se de Lula , Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães - e o suposto empenho da Presidenta Dilma em uma reaproximação ‘estratégica’ com o aliado do Norte. Conceição põe os pingos nos is. Obama, segundo ela, não consegue arrancar concessões do establishment americano nem para si, quanto mais para o Brasil. ‘Quase nada depende da vontade de Obama, ou dito melhor, a vontade de Obama quase não pesa nas questões cruciais. A sociedade norte-americana encontra-se congelada pelo bloco conservador, por cima e por baixo. Os republicanos mandam no Congresso; os bancos tem hegemonia econômica; a tecnocracia do Estado está acuada”. O entusiasmo inicial dos negros e dos jovens com o presidente, no entender da decana dos economistas brasileiros, não tem contrapartida nas instâncias onde se decide o poder americano. “O que esse Obama de carne e osso poderia oferecer ao Brasil se não consegue concessões nem para si próprio?”, questiona e responde em seguida: ‘Ele vem cuidar dos interesses americanos. Petróleo, certamente. No mais, fará gestos de cortesia que cabem a um visitante educado’.

O desafio maior que essa discípula de Celso Furtado enxerga é controlar “a nuvem atômica de dinheiro podre” que escapou com a desregulação neoliberal – “e agora apodrece tudo o que toca”. A economista não compartilha do otimismo de Paul Krugman que enxerga na catástrofe japonesa um ponto de fuga capaz, talvez, de exercer na etapa da reconstrução o mesmo efeito reordenador que a Segunda Guerra teve sobre o capitalismo colapsado dos anos 30. “O quadro é tão complicado que dá margem a isso: supor que uma nuvem de dinheiro atômico poderá corrigir o estrago causado por uma nuvem nuclear verdadeira. Respeito Krugman, mas é mais que isso: trata-se de devolver o dinheiro contagioso para dentro do reator, ou seja, regular a banca. Não há atalho salvador’.

Leia a seguir a entrevista exclusiva de Maria da Conceição Tavares à Carta Maior.

CM- Por que Obama se transformou num zumbi da esperança progressista norte-americana?
Conceição - Os EUA se tornaram um país politicamente complicado... o caso americano é pior que o nosso. Não adianta boas idéias. Obama até que as têm, algumas. Mas não tem o principal: não tem poder, o poder real; não tem bases sociais compatíveis com as suas idéias. A estrutura da sociedade americana hoje é muito, muito conservadora –a mais conservadora da sua história. E depois, Obama, convenhamos, não chega a ser um iluminado. Mas nem o Lula daria certo lá.

CM- Mas ele foi eleito a partir de uma mobilização real da sociedade....
Conceição - Exerce um presidencialismo muito vulnerável, descarnado de base efetiva. Obama foi eleito pela juventude e pelos negros. Na urna, cada cidadão é um voto. Mas a juventude e os negros não tem presença institucional, veja bem, institucional que digo é no desenho democrático de lá. Eles não tem assento em postos chaves onde se decide o poder americano. Na hora do vamos ver, a base de Obama não está localizada em lugar nenhum. Não está no Congresso, não tem o comando das finanças, enfim, grita, mas não decide.

CM - O deslocamento de fábricas para a China, a erosão da classe trabalhadora nos anos 80/90 inviabilizaram o surgimento de um novo Roosevelt nos EUA?
Conceição - Os EUA estão congelados por baixo. Há uma camada espessa de gelo que dissocia o poder do Presidente do poder real hoje exercido, em grande parte, pela finança. Os bancos continuam incontroláveis; o FED (o Banco Central americano) não manda, não controla. O essencial é que estamos diante de uma sociedade congelada pelo bloco conservador, por cima e por baixo. Os republicanos mandam no Congresso; os bancos tem hegemonia econômica; a tecnocracia do Estado está acuada...

CM- É uma decadência reversível?
Conceição – É forçoso lembrar, ainda que seja desagradável, que os EUA chegaram a isso guiados, uma boa parte do caminho, pelas mãos dos democratas de Obama. Foram os anos Clinton que consolidaram a desregulação dos mercados financeiros autorizando a farra que redundou em bolhas, crise e, por fim, na pasmaceira conservadora.

CM - Esse colapso foi pedagógico; o poder financeiro ficou nu, por que a reação tarda?
Conceição - A sociedade americana sofreu um golpe violento. No apogeu, vendia-se a ilusão de uma riqueza baseada no crédito e no endividamento descontrolados. Criou-se uma sensação de prosperidade sobre alicerces fundados em ‘papagaios’ e pirâmides especulativas. A reversão foi dramática do ponto de vista do imaginário social. Um despencar sem chão. A classe média teve massacrados seus sonhos do dia para noite. A resposta do desespero nunca é uma boa resposta. A resposta americana à crise não foi uma resposta progressista. Na verdade, está sendo de um conservadorismo apavorante. Forças e interesses poderosos alimentam essa regressividade. A tecnocracia do governo Obama teme tomar qualquer iniciativa que possa piorar o que já é muito ruim. Quanto vai durar essa agonia? Pode ser que a sociedade americana reaja daqui a alguns anos. Pode ser. Eles ainda são o país mais poderoso do mundo, diferente da Europa que perdeu tudo, dinheiro, poder, auto-estima... Mas vejo uma longa e penosa convalescença. Nesse vazio criado pelo dinheiro podre Obama flutua e viaja para o Brasil.

CM – Uma viagem cercada de efeitos especiais; a mídia quer demarcá-la como um divisor de águas de repactuação entre os dois países, depois do ‘estremecimento com Lula’. O que ela pode significar de fato para o futuro das relações bilaterais?
Conceição - Obama vem, sobretudo, tratar dos interesses norte-americanos. Petróleo, claramente, já que dependem de uma região rebelada, cada vez mais complexa e querem se livrar da dependência em relação ao óleo do Chávez. A política externa é um pouco o que sobrou para ele agir, ao menos simbolicamente.

CM – E o assento brasileiro no Conselho de Segurança?
Conceição - Obama poderá fazer uma cortesia de visitante, manifestar simpatia ao pleito brasileiro, mas, de novo, está acima do seu poder. Não depende dele. O Congresso republicano vetaria. Quase nada depende da vontade de Obama, ou dito melhor, a vontade de Obama quase não pesa nas questões cruciais.

CM - Lula também enfrentou essa resistência esfericamente blindada, mas ganhou espaço e poder...
Conceição - Obama não é Lula e não tem as bases sociais que permitiriam a Lula negociar uma pax acomodatícia para avançar em várias direções. A base equivalente na sociedade americana, os imigrantes, os pobres, os latinos, os negros, em sua maioria nem votam e acima de tudo estão desorganizados. Não há contraponto à altura do bloco conservador, ao contrário do caso brasileiro. O que esse Obama de carne e osso poderia oferecer ao Brasil se não consegue concessões nem para si próprio?

CM – A reconstrução japonesa, após a tragédia ainda inconclusa, poderia destravar a armadilha da liquidez que corrói a própria sociedade americana ? Sugar capitais promovendo um reordenamento capitalista, como especula Paul Krugman?
Conceição - A situação da economia mundial é tão complicada que dá margem a esse tipo de especulação. Como se uma nuvem atômica de dinheiro pudesse consertar uma nuvem atômica verdadeira. Não creio. Respeito o Krugman, mas não creio. O caminho é mais difícil. Trata-se de devolver a nuvem atômica de dinheiro para dentro do reator; é preciso regular o sistema, colocar freios na especulação, restringir o poder do dinheiro, da alta finança que hoje campeia hegemônica. É mais difícil do que um choque entre as duas nuvens. Ademais, o Japão eu conheço um pouco como funciona, sempre se reergueu com base em poupança própria; será assim também desta vez tão trágica. Os EUA por sua vez, ao contrário do que ocorreu na Segunda Guerra, quando eram os credores do mundo, hoje estão pendurados em papagaios com o resto do mundo –o Japão inclusive. O que eles poderiam fazer pela reconstrução se devem ao país devastado?

CM – Muitos economistas discordam que essa nuvem atômica de dinheiro seja responsável pela especulação, motivo de índices recordes de fome e de preços de alimentos em pleno século XXI. Qual a sua opinião?
Conceição - A economia mundial não está crescendo a ponto de justificar esses preços. Isso tem nome: o nome é especulação. Não se pode subestimar a capacidade da finança podre de engendra desordem. Não estamos falando de emissão primária de moeda por bancos centrais. Não é disso que se trata. É um avatar de moeda sem nenhum controle. Derivam de coisa nenhuma; derivativos de coisa nenhuma representam a morte da economia; uma nuvem nuclear de dinheiro contaminado e fora de controle da sociedade provoca tragédia onde toca. Isso descarnou Obama.
É o motor do conservadorismo americano atual. Semeou na America do Norte uma sociedade mais conservadora do que a própria Inglaterra, algo inimaginável para alguém da minha idade. É um conservadorismo de bordel, que não conserva coisa nenhuma. É isso a aliança entre o moralismo republicano e a farra da finança especulativa. Os EUA se tornaram um gigante de barro podre. De pé causam desastres; se tombar faz mais estrago ainda. Então a convalescença será longa, longa e longa.

CM – Esse horizonte ameaça o Brasil?
Conceição - Quando estourou a crise de 2007/2008, falei para o Lula: - Que merda, nasci numa crise mundial, vou morrer em outra... Felizmente, o Brasil, graças ao poder de iniciativa do governo saiu-se muito bem. Estou moderadamente otimista quanto ao futuro do país. Mais otimista hoje do que no começo do próprio governo Lula, que herdou condições extremas, ao contrário da Dilma. Se não houver um acidente de percurso na cena externa, podemos ter um bom ciclo adiante.

CM – A inflação é a pedra no meio do caminho da Dilma, como dizem os ortodoxos?
Conceição - Meu temor não é a inflação, é o câmbio. Aliás, eu não entendo porque o nosso Banco Central continua subindo os juros, ainda que agora acene com alguma moderação. Mas foram subindo logo de cara! Num mundo encharcado de liquidez por todos os lados, o Brasil saiu na frente do planeta... Subimos os juros antes dos ricos, eles sim, em algum momento talvez tenham que enfrentar esse dilema inflacionário. Mas nós? Por que continuam a falar em subir os juros se não temos inflação fora de controle e a prioridade número um é o câmbio? Não entendo...

CM - Seria o caso de baixar as taxas?
Conceição - Baixar agora já não é mais suficiente. Nosso problema cambial não se resolve mais só com inteligência monetária. Meu medo é que a situação favorável aqui dentro e a super oferta de liquidez externa leve a um novo ciclo de endividamento. Não endividamento do setor público, como nos anos 80. Mas do setor privado que busca lá fora os recursos fartos e baratos, aumentando sua exposição ao risco externo. E quando os EUA subirem as taxas de juros, como ficam os endividados aqui?

CM – Por que o governo hesita tanto em adotar algum controle cambial?
Conceição - Porque não é fácil. Você tem um tsunami de liquidez externa. Como impedir as empresas de pegarem dinheiro barato lá fora? Vai proibir? Isso acaba entrando por outros meios. Talvez tenhamos que implantar uma trava chilena. O ingresso de novos recursos fica vinculado a uma permanência mínima, que refreie a exposição e o endividamento. Mas isso não é matéria para discutir pelos jornais. É para ser feito. Decidir e fazer.

CM - A senhora tem conversado com a Presidenta Dilma, com Lula?Conceição - O governo está começando; é preciso dar um tempo ao tempo. Falei com Lula recentemente quando veio ao Rio. Acho que o Instituto dele está no rumo certo. Deve se debruçar sobre dois eixos fundamentais da nossa construção: a questão da democracia e a questão das políticas públicas. Torço para que o braço das políticas públicas tenha sede no Rio. O PT local precisa desse empurrão. E fica mais perto para participar.

Dilma vai adotar regime de concessão para aeroportos - por Claudia Safatle (Valor Econômico)

A presidente Dilma Rousseff anunciou que vai abrir os aeroportos do país ao regime de concessões para exploração do setor privado. Disse, também, que é preciso acabar com o incentivo fiscal dado por vários Estados que reduziram para apenas 3% a alíquota do ICMS para bens importados que chegam ao país por seus portos. "Estão entrando no Brasil produtos importados com o ICMS lá embaixo. É uma guerra fiscal que detona toda a cadeia produtiva daquele setor", comentou a presidente, citando proposta de projeto de lei que já se encontra no Senado para acabar com essa distorção.
Dilma já definiu as propostas que enviará ao Congresso ainda neste semestre: a criação do Programa Nacional de Ensino Técnico (Pronatec) e do Programa de Erradicação da Pobreza, além de medidas específicas que alteram alguns tributos (e não uma proposta de reforma tributária). Ela admitiu, também, concluir a regulamentação da reforma da previdência do servidor público, com a aprovação da proposta que institui os fundos de pensão complementar. "Mas não vamos tirar direitos do trabalhador, não", assegurou.
Em entrevista ao Valor, a primeira concedida a um jornal brasileiro, a presidente adiantou: "Agora nós estamos nos preparando para fazer uma forte intervenção nos aeroportos. Vamos fazer concessões, aceitar investimentos da iniciativa privada que sejam adequados aos planos de expansão necessários. Não temos preconceito contra nenhuma forma de expansão do investimento nessa área, como não tivemos nas rodovias." Até o fim do mês ela deve enviar ao Congresso a medida provisória que cria a Secretaria de Aviação Civil com status de ministério, que agregará a Anac, a Infraero e toda a estrutura para fazer a política de aviação.

Diante da falta de mão de obra tecnicamente qualificada para atender à demanda de uma economia que cresce, o governo está concluindo o desenho do Pronatec, programa de pretende garantir que o ensino médio tenha um componente complementar profissionalizante. Promessa de campanha, o projeto de erradicação da pobreza terá como meta retirar o máximo possível dos 19 milhões de brasileiros da situação de miséria que ainda se encontram.

Desta vez, porém, o programa virá acompanhado de portas de saída, disse. A erradicação da pobreza usará o instrumental reformulado do Bolsa Família e terá tanto no Pronatec, quanto nos mecanismos do microcrédito e de novos incentivo à agricultura familiar, as portas de saída da mera assistência social. "Estamos passando as tropas em revista e mudando muita coisa", comentou a presidente. Nada disso, porém, prescinde do crescimento da economia. A seguir, a entrevista:

Valor: Qual o impacto do desastre no Japão sobre a economia mundial e sobre o Brasil?
Dilma Rousseff: Primeiro, acho que ficamos todos muito impactados. A comunicação global em tempo real cria em nós uma sensação como se o terremoto seguido do tsunami estivessem na porta de nossas casas. Nunca vi ondas daquele tamanho, aquele barco girando no redemoinho, a quantidade de carros que pareciam de brinquedo! Inexoravelmente, a comunicação faz com que você se coloque no lugar das pessoas! Essa é a primeira reação humana. Acredito, numa reflexão mais fria depois do evento, se é que podemos chamar alguma coisa de fria no Japão, acho que um dos efeitos será sobre o petróleo.

Valor: Aumento de preço?
Dilma: Vai ampliar muito a demanda de petróleo ou de gás para substituir a energia nuclear. Pelo que li, 40% da energia de base do Japão é nuclear. Os substitutos mais rápidos e efetivos são o gás natural ou petróleo. Acredito que esse será um impacto imediato. Nós sempre esquecemos da diferença substantiva entre nós e os outros países.

Valor: Qual?
Dilma: Água. Nesse aspecto somos um país abençoado. Não tenho ideia de qual vai ser a política de substituição de energia. Não sei como a Alemanha, por exemplo, vai fazer. Os Estados Unidos já declararam que não vão interromper o programa nuclear. Nós não temos a mesma dependência. Temos um elenco de alternativas que os outros países não têm. A Europa já usou todo o seu potencial hídrico. Energia é algo que define o ritmo de crescimento dos países e o Brasil tem na energia uma diferença estratégica e competitiva.

Valor: E tem o pré-sal. O governo poderia acelerar o programa de exploração?
Dilma: Não. Vamos seguir num ritmo que não transforma o petróleo em uma maldição. Queremos ter uma indústria de petróleo, desenvolver pesquisas, produzir bens e serviços e exportar para o mundo. Não podemos apostar em ganhos fáceis. Temos que apostar que o pré-sal é um passaporte para o futuro. Não vamos explorar para usar, mas para exportar. Queremos nossa matriz energética limpa e queremos, também, ter ganhos na cadeia industrial do petróleo. Esse é um país continental com uma indústria sofisticada e uma das maiores democracias do mundo. Não somos um paisinho.

Valor: A sra. acha que a tragédia no Japão vai atrasar a recuperação da economia mundial?
Dilma: Acredito que atrasa um pouco, mas também tem um efeito recuperador, de reconstrução. O Japão vai ter que ser reconstruído. É impressionante o que é natureza. Nem nos piores pesadelos conseguimos saber o que é uma onda de dez metros.

Valor: O esforço de reconstrução de uma parte do Japão deve demandar grandes somas de recursos. Isso pode reduzir o fluxo de capitais para o Brasil?
Dilma: Pode ter um efeito desses. Acho que vai haver um maior fluxo de dinheiro para lá e isso não é maléfico. Tem dinheiro sobrando para tudo no mundo. Para a reconstrução do Japão, para investir aqui e para especular.

Valor: O governo, preocupado com a taxa de câmbio, tem mencionado a necessidade de novas medidas. Uma delas seria encarecer os empréstimos externos para frear o processo de endividamento de bancos e empresas? A sra. já aprovou essas medidas?
Dilma: Primeiro, é preciso distinguir o que é dívida para investimentos do que é dívida de curto prazo. Imagino que quem está se endividando esteja fazendo "hedge". Todo mundo aí é adulto.

Valor: Mas o governo prepara um pacote de medidas cambiais?
Dilma: Tem uma coisa que acho fantástica. Às vezes abro o jornal e leio que a presidenta disse isso, pensa aquilo, e eu nunca abri minha santa boca para dizer nada daquilo. Tem avaliações de que um ministro subiu, outro desceu, que são absurdas. Absurdas! Falam que tais ministros estão desvalorizadíssimos na bolsa de apostas. Acho que o governo não pode se pautar por esse tipo de avaliação. Nenhum presidente avalia seus ministros dessa forma. E nenhum presidente pode fazer pacotes de acordo com o flutuar das coisas. Toma-se medidas que tem a ver com o que se está fazendo. Mas posso lhe adiantar algumas coisas.

Valor: Quais?
Dilma: Eu não vou permitir que a inflação volte no Brasil. Não permitirei que a inflação, sob qualquer circunstância, volte. Também não acredito nas regras que falam, em março, que o Brasil não crescerá este ano. Tenho certeza que o Brasil vai crescer entre 4,5% e 5% este ano. Não tem nenhuma inconsistência em cortar R$ 50 bilhões no Orçamento e repassar R$ 55 bilhões para o BNDES garantir os financiamentos do programa de sustentação do investimento. Não tem nenhuma inconsistência com o fato de que o país pode aumentar a sua oferta de bens e serviços aumentando seus investimentos. E ao fazê-lo vai contribuir para diminuir qualquer pressão de demanda. Hoje, eu acho que aquela velha discussão sobre qual é o potencial de crescimento do país tem que ser revista.

Valor: Revista como?
Dilma: Você se lembra que diziam que o PIB potencial era de 3,5%? Depois aumentou, e baixou novamente durante a crise global, pela queda dos investimentos, não? E aumentou em 2010, com crescimento de 7,5% puxado pelo aumento de bens de capital. Então, isso não é consistente.

Valor: A sra. comunga ou não da ideia de que é possível ter um pouquinho mais de inflação para obter um pouco mais de crescimento?
Dilma: Isso não funciona. É aquela velha imagem da pequena gravidez. Não tem uma pequena gravidez. Ou tem gravidez ou não tem. Agora, não farei qualquer negociação com a taxa de inflação. Não farei. E não acho que a inflação no Brasil seja de demanda.

Valor: Não?
Dilma: Pode ser que essa seja a divergência que nós temos com alguns segmentos. Nós não achamos que ela é de demanda. Achamos que há alguns desequilíbrios em alguns setores, mas é inequívoco que houve nos últimos tempos um crescimento dos preços dos alimentos, que já reduziu. Teve aumento do preço do material escolar, dos transportes urbanos, que são sazonais.

Valor: E a inflação de serviços que já passa de 8%?
Dilma: Há crescimento da inflação de serviços e isso temos que acompanhar. Mas o que não é possível é falar que o Brasil está crescendo além da sua capacidade e que, portanto, tem um crescimento pressionando a inflação. O mundo inteiro, na área dos emergentes, está passando por isso. Houve um processo de pressão inflacionária que tem componente ligado às commodities e, no Brasil, tem o fator inercial. Mas é compatível segurar a inflação e ter uma taxa de crescimento sustentável para o país. Caso contrário, é aquela velha tese: tem que derrubar a economia brasileira.

Valor: Derrubar o crescimento?
Dilma: Nós não vamos fazer isso. Não vamos e não estamos fazendo. Estamos tomando as medidas sérias e sóbrias. Estamos contendo os gastos públicos. Tanto estamos que os resultados do superávit primário de janeiro e fevereiro vão fechar de forma significativa para o que queremos. Vamos conter o custeio do governo. Estamos esfriando ao máximo a expansão do custeio. Agora, não precisamos expandir o investimento para além do maior investimento que tivemos, que foi o do ano passado. Vamos mantê-lo alto. Olhe quanto investimos em janeiro: R$ 2,5 bilhões pagos. O pessoal fala dos restos a pagar. Ninguém faz plano de investimento de longo prazo no Brasil sem fazer restos a pagar.

Valor: São mais de R$ 120 bilhões. Não está muito alto?
Dilma: Por quê? Ou nosso investimento é baixo ou é alto. Eu levei dois anos - 2007 e 2008 - brigando para fazer a BR-163, entre o Paraná e o Mato Grosso. É todo o escoamento da nossa produção e agora ela decolou. Está em regime de cruzeiro. Estamos nos preparando para ter uma forte intervenção nos aeroportos.

Valor: Intervenção como?
Dilma: Vamos fazer concessões, aceitar investimentos da iniciativa privada que sejam adequados aos planos de expansão necessários. Vamos articular a expansão de aeroportos com recursos públicos e fazer concessões ao setor privado. Não temos preconceito contra nenhuma forma de expansão do investimento nessa área, como não tivemos nas rodovias. Porque não fizemos a BR-163 quando eu era chefe da Casa Civil?

Valor: Por quê?
Dilma: Quando cheguei na Casa Civil havia um projeto para privatizá-la completamente. Esse projeto virou projeto de concessão e eu o recebi assim. Fomos olhá-lo e sabe quanto era o cálculo da tarifa média? R$ 900. Isso mostra que essa rodovia não era compatível com concessão. Talvez no futuro, quando tivesse que duplicar, fosse por concessão porque ela já teria se desenvolvido e criado fontes geradoras para si mesma. A Regis Bittencourt dá para fazer concessão, pois ela se mantém. O que não é possível é usar o mesmo remédio para todos os problemas.

Valor: E como será para os aeroportos?
Dilma: Vamos fazer concessão do que existe - fazer um novo terminal, por exemplo. Posso fazer concessão administrativa com cláusula de expansão. Posso fazer concessão onde nada existe, como a construção de um aeroporto da mesma forma que se faz numa hidrelétrica. É possível que haja necessidade de investimentos públicos em alguns aeroportos. O Brasil terá que ter aeroportos regionais. Nós vamos criar a Secretaria de Aviação Civil com status de ministério, porque queremos uma verdadeira transformação nessa área. Para ela irá a Anac, a Infraero e toda a estrutura para fazer a política.

Valor: Quando a sra. vai mandar para o Congresso a medida provisória que cria a secretaria?
Dilma: Estou pensando em mandar até o fim deste mês.

Valor: Quem vai ocupar a pasta da Aviação?
Dilma: Ainda estamos discutindo em várias esferas um nome para a aviação civil.

Valor: O nome do Rossano Maranhão não está confirmado?
Dilma: Nós sempre pensamos no Rossano para várias coisas. Não só eu. O presidente Lula também. Nós o consideramos um excepcional executivo.

Valor: Eu gostaria de voltar à questão da inflação. A sra. disse que não vai derrubar a economia e vai derrubar a inflação. É isso?
Dilma: Não é só isso. Eu não negocio com inflação.

Valor: Há quem argumente, na ponta do lápis, que não é possível reduzir a inflação de 6% para 4,5% e crescer 4,5% a 5% ao ano.
Dilma: Você pode fazer várias contas. É só fazer um modelo matemático. Agora, se ela é real...

Valor: Mesmo com o corte de R$ 50 bilhões nos gastos públicos, a política fiscal do governo não é contracionista de demanda. Ela é menos expansionista do que foi no ano passado.
Dilma: Ela é uma política de consolidação fiscal.

Valor: O que significa isso?
Dilma: É porque achamos que o que estamos fazendo não é... É como cortar as unhas. Vamos ter que fazer sempre a consolidação fiscal. Na verdade, temos que fazer isso todos os anos, pois se você não olhar alguns gastos, eles explodem. Se libera os gastos de custeio, um dia você acorda e ele está imenso. Então, você tem que cortar as unhas, sempre. Nós estamos cortando as unhas do custeio, vamos cortar mais e vamos fazer uma política de gerenciar esse governo. Estamos passando em revista tudo o que pode ser cortado e isso tem que ser feito todos os anos.

Valor: O que significa não negociar com a inflação do ponto de vista de cumprimento da meta?
Dilma: Significa que a meta é de 4,5% e nós vamos perseguir 4,5%. Tem banda para cima, banda para baixo (margem de tolerância de 2 pontos percentuais), mas nós sempre tentamos, apesar da banda, forçar a inflação para a meta até tê-la no centro.

Valor: Os mercados não estão acreditando nisso. Acham que o Banco Central foi frouxo no aumento dos juros, até porque o Palácio do Planalto teria autorizado um aumento de 0,75 ponto percentual e o presidente do BC (Alexandre Tombini) não usou essa autorização...
Dilma: Eu não vejo o Tombini há um mês, não vejo e não falo. Aproximadamente... eu lembro uma vez que ele viajou e a última vez que falei com ele foi antes dessa viagem.

Valor: O Tombini é "dovish" [neologismo inglês derivado de 'dove', pombo, que indica um defensor de juros mais baixas e com postura mais tolerante com a inflação]?
Dilma: E eu sou arara (risos).

Valor: Preocupa a descrença dos mercados na política antiinflacionária?
Dilma: O mercado todo apostou que esse país ia para o beleléu em 2009. E no fim de 2009 a economia já tinha começado a se recuperar. O mercado apostou numa taxa de juro elevadíssima quando o mundo já estava em recessão. Então eu acho que o mercado acerta, erra, acerta, erra, acerta. Não acho que temos que desconsiderar o mercado, não. A gente tem que sempre estar atento à opinião dele, que integra um dos elementos importantes da realidade. Um dos principais, mas não o único. Eu vou considerar essa história de "dovish" e "hawkish" (pombo ou falcão) uma brincadeira, um anglicismo.

Valor: Mas o BC, no seu governo, tem autonomia?
Dilma: O Banco Central tem autonomia para fazer a política dele e está fazendo. Tenho tranquilidade de dizer que em nenhum momento eu tergiverso com inflação. E não acredito que o Banco Central o faça. Eu acredito num Banco Central extremamente profissional e autônomo. E esse Banco Central será profissional e autônomo. Não sei se não estão tentando diminuir a importância desse BC.

Valor: Por quê?
Dilma: Porque não tem gente do mercado na sua diretoria.

Valor: Mas pode vir a ter?
Dilma: Pode ter, sim. Falar que tem que ser assim ou assado é um besteirol. Desde que seja um nome bom, ele pode vir de onde vier.

Valor: A opção por fazer uma política monetária diferente, mesclada de juros e medidas prudenciais, pode estar criando um mal-estar?
Dilma: O mercado tem os seus instrumentos tradicionais, mas tem também os incorporados recentemente, no pós-crise. Você tem que fazer essa combinação. Não pode ser fundamentalista, não é bom. Conte com os dois que o efeito ocorre.

Valor: A sra. reiterou a meta de inflação de 4,5%, mas não mais para este ano, não é?
Dilma: Sobre isso, tem um artigo interessante escrito pelo Delfim (na edição de terça-feira do Valor), a respeito de que não existe uma lei divina que diz que a taxa de crescimento será de 3% e que a inflação será de 6%. Eu acho que isso é adivinhação.

Valor: As condições para o ano de 2011 não estão dadas?
Dilma: Não, depende da gente. Nós mostramos que não estava dado na hora da crise e vamos mostrar que não está dado também na hora da inflação e do crescimento sustentado da economia brasileira. Quando eu digo que tenho firme convicção de que não se negocia com a inflação, é para você saber que nós passamos todo o tempo olhando isso. Por isso eu acredito no que faz o Banco Central, no que faz o Ministério da Fazenda.

Valor: Tem um elemento já dado para 2012 que preocupa os analistas: a superindexação do salário mínimo no momento em que o país estará em plena luta antiinflacionária. Não seria hora, depois de 17 anos de plano de estabilização, de se desindexar tudo?
Dilma: No futuro nós vamos ter uma menor preocupação com a valorização do salário mínimo. Quando? Quando houver um crescimento sustentado nesse país.

Valor: Isso não dificulta o combate à inflação?
Dilma: O que aconteceu com o salário mínimo ao longo do tempo? Uma baita desvalorização. Seja porque ele não ganhava sequer a correção inflacionária, seja porque vinha de patamares muito baixos. Acho que o processo de valorização do salário mínimo ainda não se esgotou. Foi isso que nós sinalizamos aquele dia na Câmara (na votação da proposta de correção pela inflação e pelo PIB até 2015). Nós não fazemos qualquer negócio. Quando a economia vai mal, nós não vamos dar reajuste, ele será zero. Vamos dar a inflação. Quando a economia vai bem, com um atraso de um ano, nós damos o que a economia ganhou ali, porque acreditamos que houve um ganho global de produtividade e de crescimento sistêmico. O prazo de um ano (o reajuste é dado pelo PIB de dois anos anteriores) amortece, mas transfere ao trabalhador um ganho que é dele, é da economia como um todo.

Valor: Esse é um assunto resolvido até 2015, portanto?
Dilma: Dar ao trabalhador o direito de receber o ganho decorrente do crescimento do país, com o cuidado de não ser automático para você poder ter acomodação necessária, é fundamental. Acho que o acordo feito entre as centrais e o governo do presidente Lula dá conta dessa época que estamos vivendo, em que estamos valorizando o salário mínimo.

Valor: E depois, negocia-se outra regra?
Dilma: É, porque esta não vai dar conta de uma época futura neste país, onde teremos mantido uma taxa de crescimento sistemática, durante um período mais longo, mais de cinco anos, por exemplo. Aí, sim, você terá tido um nível de recuperação da renda que justifica você ter outra meta. Agora, o que nós fizemos e explicamos para as centrais foi manter o acordo que tinha uma sustentação política, uma sustentação de visão econômica da questão do salário mínimo.

Valor: O reajuste de 13,9% de 2012 corrigirá também as aposentadorias?
Dilma: Esse aumento vai para 70% dos aposentados que ganham salário mínimo. Quem ganha mais do que um mínimo não tem indexação. Em 2014 nós teremos que apresentar uma política para os anos seguintes.

Valor: Nessa ocasião ele poderá ser atrelado à produtividade?
Dilma: Não sei. Não acho que isso (a regra atual) seja uma indexação e quem está falando que é uma indexação tem imensa má vontade com o trabalhador brasileiro. Temos que fazer com que algumas regiões do país e alguns setores da sociedade cresçam a uma taxa maior do que a média para reduzir as desigualdades. Isso vale para o Nordeste, para o Norte, para a metade sul do Rio Grande do Sul, para o Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais e o Vale do Ribeira, em São Paulo. O mesmo se aplica a alguns setores da sociedade. Há, aí, uma estratégia que olha para o Brasil. O país não pode ser tão desigual. Isso não é bom politicamente, socialmente, e não é bom para a economia. O que nos aproxima da Índia, da Rússia e da China, os Bric, não é tanto o fato de sermos emergentes.

Valor: O que é?
Dilma: É o fato de que países que têm a oportunidade histórica de dar um salto para a frente, países continentais com toda a sorte de riquezas, quando sua população desperta e passa a incorporar o mercado, isso acelera o crescimento. É o que explica que o nosso crescimento pode ser maior do que o crescimento dos países desenvolvidos. Outro fator é se conseguirmos criar massivamente um processo de educação em todos os níveis para a população, e formação de pessoas ligadas à ciência e tecnologia que permita que o país comece a gerar inovação. Essas três coisas explicam muito os Estados Unidos e é nelas que temos que apostar para o Brasil dar um salto. Nós temos hoje uma janela de oportunidade única. Além disso temos petróleo, biocombustível, hidrelétrica, minério e somos uma potência alimentar. Não queremos ser só "commoditizados". Queremos agregar valor. Por isso insistimos em parcerias estratégicas com outros países. Agora mesmo vamos propor uma para os Estados Unidos.

Valor: Na visita do presidente Obama? Qual?
Dilma: Na área de satélites, especialmente para avaliação do clima, e parcerias em algumas outras áreas. Vou lhe dar um exemplo: acho fundamental o Brasil apostar na formação no exterior. Todos os países que deram um salto apostaram na formação de profissionais fora. Queremos isso nas ciências exatas - matemática, química, física, biologia e engenharia. Queremos parceria do governo americano em garantia de vagas nas melhores escolas. Nós damos bolsa. Vamos buscar fazer isso não só nos Estados Unidos, e de forma sistemática.

Valor: O que a sra. espera de fato dessa visita?
Dilma: Acho que tanto para nós quanto para os Estados Unidos o grande sumo disso tudo, o que fica, é a progressiva consciência de que o Brasil é um país que assumiu seu papel internacional e que pode, pelos seus vínculos históricos com os Estados Unidos e por estarmos na mesma região, ser um parceiro importantíssimo. Isso a gente constrói. Agora, essa consciência é importante. Nós não somos mais um país da época da "Aliança para o Progresso", um país que precisa desse tipo de ajuda. Não que a aliança para o progresso não tenha tido seus méritos, agora não é isso mais que o Brasil é. O Brasil é um país que os EUA tem que olhar de forma muito circunstanciada.

Valor: Como assim?
Dilma: Que outro país no mundo tem a reserva de petróleo que temos, que não tem guerra, não tem conflito étnico, respeita contratos, tem princípios democráticos extremamente claros e uma forma de visão do mundo tão generosa e pró-paz? Uma questão é fundamental: um país democrático ocidental como nós tem que ser um país que tenha perfeita consciência da questão dos direitos humanos. E isso vale para todos.

Valor: Para o Irã e para os EUA?
Dilma: Se não concordo com o apedrejamento de mulheres, eu também não posso concordar com gente presa a vida inteira sem julgamento (na base de Guantânamo). Isso vale para o Irã, vale para os Estados Unidos e vale para o Brasil. Também não posso dar uma de bacana e achar que o Brasil pode ficar dando cartas e não olhar para suas próprias mazelas, para o seu sistema carcerário, por exemplo, sua política com relação aos presos. E isso chega ao direito de uma criança comer, das pessoas estudarem. Isso é direito humano. Mas é também, no sentido amplo da palavra, o respeito à liberdade, a capacidade de conviver com as diferenças, a tolerância. Um país com as raízes culturais que nós temos, que tem uma cultura tão múltipla, e que tem esse gosto pelo consenso, pela conversa, tudo isso caracteriza uma contribuição que o Brasil pode dar para a construção da paz no mundo. Acho que o mundo nos vê como um país amigável.

Valor: A sra. disse recentemente que não fará reforma da previdência social. Mas a regulamentação da reforma da previdência do setor público que está parada no Congresso, será feita?
Dilma: Isso é outra coisa. Já está no Congresso e vamos tentar ver se ele vota. Mas não vamos tirar direitos do trabalhador, não. Nem vem que não tem!.

Valor: A regulamentação da previdência pública, com a criação dos fundos de previdência complementar, não seria apenas para os novos funcionários?
Dilma: É. Mas aí temos que ver como será feito. Não estamos ainda discutindo isso.

Valor: E a reforma tributária? Há informações que a sra. enviará quatro projetos distintos, mudando determinados tributos. É isso mesmo?
Dilma: Estão entrando no Brasil produtos importados com o ICMS lá embaixo. É uma guerra fiscal que detona toda a cadeia produtiva daquele setor. Mas não vou adiantar o que vamos enviar ao Congresso porque não está maduro ainda. Vamos mandar medidas tributárias e não uma reforma. Vamos mandar várias para ter pelo menos uma parte aprovada. Mandaremos também o Programa Nacional de Ensino Técnico (Pronatec) e o programa de Erradicação da Pobreza.

Valor: Como serão esses dois?
Dilma: Não posso lhe adiantar porque também não estão fechados. O Pronatec vai garantir que o ensino médio tenha um componente complementar profissional, de um lado, e, de outro lado, garantir que tenha uma formação para os trabalhadores brasileiros de forma que não sobre trabalhador numa área e falte em uma outra. Isso é um pouco mais complicado e não posso dar todas as medidas por que elas interferem em outros setores. Já a questão do ICMS é uma regulamentação que já está no Senado.

Valor: E a desoneração de folha salarial sai?
Dilma: Não posso lhe falar sobre as medidas tributárias.

Valor: São para este ano?
Dilma: Na nossa agenda é para este semestre.

Valor: Qual a proposta para a erradicação da pobreza?
Dilma: É chegar ao fim de quatro anos mais próximo de retirar da pobreza os 19 milhões de brasileiros que ainda faltam.

Valor: O instrumental é o Bolsa Família?
Dilma: Nos já começamos a mexer no Bolsa Família, aumentando a parte de crianças. É com isso, com uma parte do Pronatec, que vai ajudar, é com microcrédito, incentivo à agricultura familiar de uma outra forma. Estamos passando as tropas em revista e mudando muita coisa. E tem que ter sintonia fina. Há profissionais dedicados ao estudo da pobreza que diz que se você não focar, olhando a cara dela, você não consegue tirar as pessoas. E nós queremos, desta vez, estruturar portas de saída.

Valor: Para todos e não só para os 19 milhões a que a sra se referiu?
Dilma: Para todo mundo.

Valor: Uma porta de saída será o Pronatec?
Dilma: Também. As saídas estão aí e estão em manter a economia crescendo.

Valor: A reunião anual da Assembleia de Acionistas da Vale será dia 19 de abril. Nessa reunião deve se decidir sobre a permanência ou não do presidente Roger Agnelli, cujo contrato de trabalho termina dia 30 de abril. Ele será substituído ou pode ser reconduzido?
Dilma: Não sei.

Valor: A sra. não sabe?
Dilma: Você vai ficar estarrecida, mas não sei.

Comentário
É impressionante a forma como a entrevistadora verbaliza os interesses do mercado. Como pisa e repisa o assunto inflação, de modo a mascarar o real objetivo dos rentistas: o aumento da taxa de juros, pura e simplesmente.
Ou alguém acha que o mercado se preocupa com a inflação que corrói a renda do povo brasileiro?

Chega a ser cômico, a presidente dizer que não há ninguém do mercado no BC. E mais cômico ainda, a repórter, obviamente pedindo, perguntar: Mas pode vir a ter (alguém no BC)?.

Chamem o alienista pra salvar esta terra de loucos chamada Brasil.