domingo, 22 de maio de 2011

Paradoxal - por José Saramago

Outras vezes me perguntei por onde andava a esquerda, e hoje tenho a resposta: por aí algures, humilhada, a contar os míseros votos recolhidos e à procura de explicações por os ver tão poucos. O que chegou a ser, no passado, uma das maiores esperanças da humanidade, capaz de mobilizar vontades pelo simples apelo ao que de melhor caracterizava a espécie humana, e que veio criando, com a passagem do tempo, as mudanças sociais e os erros próprios, as suas próprias perversões internas, cada dia mais longe das promessas primeiras, assemelhando-se mais e mais aos adversários e aos inimigos, como se essa fosse a única maneira de se fazer aceitar, acabou por cair em meras simulações, nas quais conceitos doutras épocas chegaram a ser utilizados para justificar actos que esses mesmos conceitos haviam combatido. Ao deslizar progressivamente para o centro, movimento proclamado pelos seus promotores como demonstração de uma genialidade táctica e de uma modernidade imparável, a esquerda parece não ter percebido que se estava a aproximar da direita. Se, apesar de tudo isto, ainda é capaz de aprender com uma lição, esta que acaba de receber vendo a direita passar à sua frente em toda a Europa, então terá de interrogar-se sobre as causas profundas do distanciamento indiferente das suas fontes naturais de influência, os pobres, os necessitados, mas também os sonhadores, em relação ao que ainda resta das suas propostas. Não é possível votar na esquerda se a esquerda deixou de existir.

Curiosamente, e este é o paradoxo, o político a quem o título deste comentário se refere, é precisamente aquele que nesta altura preside aos destinos do país que desde há longuíssimo tempo tem desenvolvido uma política em todos os aspectos imperial e conservadora: Barack Obama. Dá que pensar. Uma acção política que, como tenho dito, pouco mais pretende que salvar os móveis de um capitalismo desregrado que esteve a ponto de devorar-se a si mesmo, aparece-nos agora, quase quase, como a realização de um sonho da esquerda. Aposto que muita gente, progressistas, socialistas, comunistas, anda por aí a perguntar-se: “E se Obama fosse presidente do meu partido?” Talvez seja a situações como esta que chamamos a ironia da História… Talvez seja, tão-somente, a importância do factor pessoal.

Quem matou o facínora? – por Celso Amorim (CartaCapital)

Naquele que viria a ser o seu último grande western, John Ford conta a história de um velho senador, Rance Stoddard (encarnado por James Stewart), que, acompanhado da esposa, Hallie (Vera Miles), viaja rumo a uma cidadezinha do Oeste americano para poder prestar a última homenagem a um velho amigo, recém-falecido, Tom Doniphon (John Wayne).

O filme logo nos transpõe, em um longo flash-back, para um período já distante, em que o então jovem advogado e futuro senador Stoddard, um tipo suave e urbano, chega ao vilarejo e conhece a bela Hallie, com quem viria mais tarde a se casar, mas que na época era a paquera de Tom, um sujeito rude, mas de bom caráter.

A rivalidade pela mocinha entre o brando e intelectualizado (para os padrões locais, bem entendido) Stewart e o caubói machão, vivido por Wayne, é sempre um subtema do filme, mas o verdadeiro enredo gira em torno da prepotência de um malfeitor que domina a cidade, Liberty (!) Valance.

Em razão de peripécias várias, em que questões de representação popular e liberdade de imprensa estão, de algum modo, envolvidas, o pacato Rance Stoddard é levado a um duelo com o violento Liberty. A cidade aguarda, aterrorizada, a morte certa do bom moço. Mas, miraculosamente, é ele quem mata o bandido e liberta os habitantes de um agente do mal.

Voltando à época atual, um velho jornalista (que fora ele próprio agredido e humilhado pelo bandido) conta a um foca a verdadeira versão. Não fora o mocinho da fita, mas o grosseiro, ainda que de boa índole, Tom (Os Brutos Também Amam, como filosoficamente afirmou o título em português de outro western famoso) quem, num misto de amor e desprendimento, além é claro de um sentido de defesa do bem comum, abatera o facínora. E o fizera escondido.

Diante da revelação inesperada, o jovem repórter, com seu zelo profissional pela verdade e a pureza da idade, pergunta se o público não teria o direito de conhecer os fatos tais como ocorreram, ainda que isso viesse a empanar o brilho da carreira do bem-sucedido senador, cujos primeiros passos estiveram ligados à improvável façanha. Ao que seu experiente colega responde, com proficiência paternal: “No Velho Oeste, há uma regra: quando o fato vira lenda, publique-se a lenda”.

O clássico de John Ford é uma metáfora quase perfeita de vários dos aspectos que cercaram a morte do arquiterrorista Osama bin Laden. Talvez a principal diferença seja a de que o personagem vivido por Lee Marvin (cuja curiosa alcunha era “liberdade”) estava armado e chegou a sacar do revólver. Entre os paralelos, o que mais salta aos olhos é a convicção de que a verdadeira justiça dispensa as formalidades de um julgamento.

Os bons e os justos sabem que o são, nasceram com essas virtudes, e o seu julgamento não falha: sabem também onde está o bem e onde está o mal. Não padecem de dúvidas hamletianas sobre a complexidade da existência humana. Rance Stoddard não o fez, mas poderia perfeitamente dizer depois de ter matado o facínora Valance (segundo ele cria, naquele momento): “Justice is done”. Ou, justiça foi feita. Seguramente foi esse o pensamento de todos os habitantes da cidadezinha de uma região onde não havia lugar para a ambiguidade moral (ou para uma “moral da ambiguidade”, como diria Simone de Beauvoir).

Tampouco deixa de chamar a atenção de quem acompanhou as reações iniciais ao momentoso feito, a questão, colocada de maneira talvez mais sutil, sobre quem foi o verdadeiro autor da façanha: o urbano, suave e pacifista presidente atual ou seu antecessor, cujo estilo e ideias, digamos assim, estavam mais próximos (até em razão de sua origem) do Velho Oeste. Quem foi o responsável pelo início da caçada, quem determinou ou aprovou os procedimentos ampliados ou aprimorados (enhanced) de investigação? E quem foi que disse, em tom de quem sabe perseguir uma causa justa, “nós o arrancaremos de sua toca” (we will smoke him out).

Tudo isso parece irrelevante quando o secretário-geral da ONU sacramenta do alto de sua autoridade moral de representante da Comunidade das Nações a ideia de que a justiça foi feita. Se for assim, pode alguém ingenuamente perguntar-se: para que tantos tribunais internacionais, tantos conselhos e comissões, já que a justiça pode ser obtida de forma tão mais simples e barata?

Em suma, para que relatores especiais sobre execução sumária, quando na verdade quem determina se um ato foi uma execução sumária ou a efetivação da justiça (natural, divina?) é seu próprio autor? Não entremos na discussão sobre a legalidade das ações recentes, à luz da Carta da ONU, da integridade territorial dos Estados ou das resoluções do Conselho de Segurança.

Supor que o direito à legítima defesa, para legitimar um ato praticado dez anos depois do que deu origem à reação, é esticar a corda um pouco demais. Como também é zombar da inteligência mesmo dos mais tolos e ingênuos sustentar que uma pessoa vivendo isolada do mundo, com algumas mulheres e filhos (e aparentemente se deleitando com filmes pornográficos), sem telefone ou internet, continuava a controlar a elaboração e execução de ações terroristas de alguma envergadura.

Certamente, ninguém, salvo os familiares mais próximos e alguns fanáticos, vai chorar a morte de Bin Laden. “O mundo tornou-se um lugar melhor com seu desaparecimento”, poderá alegar-se, o que de resto é verdade em relação a muitas outras pessoas, que nem por isso são abatidas sumariamente.

O que está em jogo são procedimentos de justiça interna e internacional, aquilo que os anglo-saxões chamam de due process. Com tantas outras situações no mundo, em que o vilão pode ser posto para correr (ou morrer), há razões para temer que o dito comum no faroeste sobre ladrões de gado passe a ser uma norma não escrita do Direito Internacional: “Enforque-se o cara, depois deem a ele um julgamento justo”.

Neste caso, aliás, a julgar pelo segredo em torno das fotos e a liberação altamente seletiva das informações, nem mesmo esse tipo de justiça póstuma deve ser esperada.

Amazônia: qual o código da nossa esquerda? - por Gilson Caroni Filho (Agência CartaMaior)

Será o Código Florestal a prova dos nove para o habitual transformismo que, vez por outra, visita forças do campo progressista? É hora de a esquerda se livrar do imaginário herdado do padrão fordista e incorporar a luta pela preservação natural ao seu horizonte político.
Gilson Caroni Filho

Equilíbrio ambiental e desenvolvimento sustentável são elementos indispensáveis para o futuro do país. Exigem do movimento ecológico uma reformulação radical que o torne matriz de uma nova esquerda. A Amazônia é um exemplo. Seu desmatamento é obra conjunta de latifundiários, grandes empresários e empresas mineradoras.

São os inimigos a serem confrontados prontamente. Será o Código Florestal a prova dos nove para o habitual transformismo que, vez por outra, visita forças do campo progressista? Ou talvez a inflexão de fundo seja de maior envergadura. É hora de a própria esquerda se livrar do imaginário herdado do padrão fordista e incorporar a luta pela preservação natural ao seu horizonte político. Fora disso, a palavra progressista torna-se um vocábulo vazio. Um atributo discutível para quem luta no campo democrático-popular. O ciclo da destruição das nossas florestas é sobejamente conhecido

Desde a década de 1960, a grilagem vem sendo ampliada por intervenções como o estímulo à mineração e à expansão da pecuária e da lavoura monoculturista, a abertura ou o asfaltamento de estradas e outros projetos ditos de “povoamento” e, como agora, no caso de projetos de hidrelétricas do Rio Madeira, “desenvolvimento”. E isso desde o simples anúncio, quando tais iniciativas ainda estão no papel.

Todos nós já vimos tramas semelhantes em filmes de faroeste, em que os robber barons tratam de se apossar, por quaisquer meios, das terras por onde vai passar a ferrovia ou ser feita a represa.

Uma vez estabelecida a ocupação, tem início a retirada da madeira de maior valor comercial, destinada às carvoarias e às indústrias moveleira e de construção civil, etapa que pode levar várias estações de corte. Exauridos tais recursos, segue-se a “limpeza” da área, por meio de corte raso e queimada, e o preparo da terra para pastagem.

Quando a extração de madeira se esgota, entra o gado, tipicamente de corte. Em algum momento, a posse é esquentada por títulos falsificados de propriedade que, exatamente por serem falsos, e porque os registros e fiscalização são precários, geralmente não aparecem nas estatísticas oficiais, em que as áreas griladas continuam figurando como terras da União.

Ironicamente, essas “propriedades” serão usadas como garantia para a obtenção de empréstimos e financiamentos junto a bancos, tanto privados como oficiais, e a agências de fomento.

A substituição do gado pela soja ou por outras lavouras extensivas é determinada, mais que por qualquer outro fator, pela demanda por essas commodities e por seus preços relativos nos mercados internacionais, sobre os quais o Brasil não tem qualquer controle: são buyer markets, mercados de compradores. No caso da soja, vale lembrar que há sinergia com a pecuária, já que parte significativa da colheita vai para a produção de farelo empregado em rações animais.

Além disso, o ciclo se expande continuamente. Pois, enquanto a lavoura está entrando numa área, os grileiros e as motosserras estão abrindo novas “frentes de ocupação” em outra, para a qual o gado por sua vez se expandirá ou mesmo deslocará, pois é muito mais fácil deslocar reses do que vegetais.

Se deixada ao sabor do mercado, a floresta de ontem se converte no polo madeireiro de hoje, no pasto de amanhã, na lavoura extensiva de depois de amanhã e, em última instância, em deserto.

O solo característico da Floresta Amazônica, embora rico em elementos não orgânicos como ferro e alumínio, é extremamente pobre em nutrientes, e por si só jamais seria capaz de sustentar florestas. E, no entanto, a floresta está lá. Como? O que sustenta a floresta em pé é a própria floresta.

A decomposição dos detritos vegetais e animais depositados pela própria floresta sobre seu solo forma a “terra preta de índio”, um fino tapete rico em húmus, e são os microorganismos aí presentes que produzem os nutrientes de que as árvores se alimentam.

Quando a cobertura florestal é removida, o ciclo se rompe. Pois a camada de “terra preta” é superficial e, sem a floresta para de um lado renovar os componentes orgânicos e de outro segurá-los, é rapidamente degradada. Até mesmo pela chuva, que nessas condições, sem a floresta para proteger o solo do impacto direto, carrega a terra para as barrancas dos rios acelerando a erosão.

Uma vez derrubada, portanto, a floresta não se recompõe. Disso sabe, ou deveria saber, o deputado Aldo Rebelo. O campo progressista não comporta alianças com forças antagônicas à sua história de combatividade, coerência e superação. Estamos vivendo um debate decisivo para a agenda que a esquerda pretende propor. O fio da navalha onde tudo perde a cor, e dificilmente se refaz, reaparece no cenário político. Como nas florestas degradadas.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Adeus à política partidária – por Luiz Carlos Bresser-Pereira (Folha de São Paulo)

Nos últimos dez anos, eu mudei, e o partido político que ajudei a criar, o PSDB, também mudou; chegou a hora de dizer adeus à política partidária

A vida é uma soma de compromissos e de identidades. Comprometemo-nos com nossa família, com nossos amigos, com nossos colegas de trabalho, com nossos companheiros de luta política, com nosso país, e, cada vez mais, com nossa humanidade.
Mas nossa identidade não é produto apenas da nossa liberdade; é também resultado da imagem que nos é atribuída pelos outros, porque é a fidelidade a ela que nos torna previsíveis e confiáveis.
Entretanto, o mundo em nossa volta muda constantemente, o que nos obriga a estar sempre prontos a nos repensarmos, ao mesmo tempo em que repensamos o mundo em transformação.
Nesses últimos dez anos, eu mudei, e o partido político que eu ajudei a criar, o PSDB, também mudou. A mudança foi tão grande que chegou a hora de dizer adeus a esse partido, e, mais amplamente, à política partidária. Nunca fui um político "stricto sensu", porque nunca me candidatei a cargo eletivo. Mas aceitei convites e ocupei cargos importantes, sempre identificado com uma centro-esquerda social-democrática e nacionalista.
Nos debates que precederam a fundação do PSDB, a decisão de denominá-lo um partido social-democrático deixava claro o compromisso de centro-esquerda do partido.
Entretanto, enquanto assinava a ata de fundação, estava claro para mim o risco que o novo partido corria. Se o PT, que naquela época se considerava um partido socialista revolucionário, chegasse ao poder, poderia acontecer aqui no país o que aconteceu com os partidos socialistas na Europa; o PT poderia se transformar em um partido social-democrático, e o PSDB seria empurrado para a centro-direita.
Foi isso o que aconteceu, com um agravante: o partido também não se identificou com um nacionalismo econômico essencial para que o Brasil alcance os níveis de bem-estar dos países ricos.
Em 1993, tentei, em conjunto com Oded Grajew, uma aproximação entre o PSDB e o PT, mas não havia espaço nos dois partidos para isso. Em 2002, em associação com Yoshiaki Nakano, fizemos uma proposta de política de crescimento com estabilidade para o PSDB, mas ela não chegou a ser discutida.
Enquanto isso ocorria, eu, que desde 1999 me dedico apenas às atividades acadêmicas, também mudei. Reforcei minha posição de centro-esquerda e retomei meu nacionalismo econômico, que se define por uma simples e dupla convicção: que é dever primeiro do governo defender os interesses do trabalho, do capital e do conhecimento nacionais, e que essa defesa deve ser feita pelos brasileiros seguindo sua própria cabeça, já que os países ricos são nossos competidores.
O nacionalismo econômico foi fundamental para que o Brasil crescesse aceleradamente entre 1930 e 1980, mas depois, no quadro da hegemonia neoliberal, foi abandonado. Ora, no contexto da globalização, o desenvolvimento de um país depende da existência de estratégia nacional de desenvolvimento ou de competição internacional.
Na medida em que as mudanças ocorriam em direções opostas, eu me distanciava cada vez mais do PSDB. Por isso, decidi desligar-me dele. Ainda nestas últimas eleições votei em José Serra nos dois turnos.
Quis, assim, honrar compromissos antigos com ele e com Fernando Henrique -um notável homem público e um amigo- e a memória de dois estadistas do partido: Mario Covas e Franco Montoro.
A partir daqui, fico livre de compromissos partidários, como é mais adequado para alguém como eu, que decidiu não mais exercer cargos públicos, mas ser um intelectual público independente, identificado, na medida do meu possível, com o Brasil e com seu povo.

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA, 76, professor emérito da FGV-SP, é colunista da Folha . Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney). É autor de, entre outras obras, "Desenvolvimento e Crise no Brasil" (Editora 34).

Comentário
Bresser Pereira é um intelectual de respeito. Porém, infelizmente, sua análise é demasiado tardia para ser levada em consideração. Quando ele afirma que é social-democrata, que é contra o neoliberalismo... onde estavam seus olhos durante o governo FHC? Se ele fizesse essa crítica em 1995, ainda vá lá, mas 16 anos depois?
Talvez a amizade tenha lhe toldado a visão. E para ele não ver o desastre que foram os anos de FHC, posso afirmar que tais antolhos não eram dos pequenos.

Pedido de impeachment de Gilmar Mendes não é notícia para a "grande imprensa" – por Blog do Mello

Pedido de impeachment de Gilmar Mendes não é notícia para a "grande imprensa" – por Blog do Mello
Nas versões nas bancas, nos telejornais e portais de notícias da chamada "grande imprensa" não há uma linha, uma frase, uma palavra sobre o pedido de impeachment do ministro Gilmar Mendes protocolado no Senado e na OAB pelo advogado Alberto de Oliveira Piovesan.
A "grande imprensa" que diz que tem o dever de informar, que se diz defensora ardente da liberdade de expressão, de imprensa, não dá informação alguma a seus leitores, telespectadores sobre o pedido. Para quem só se (des)informa por eles, não existe.
Não é possível que não haja uma estratégia por trás disso, uma combinação entre eles. Afinal, é um pedido de impeachment do homem que até há pouco tempo era o presidente do STF, do homem que percorreu o país emitindo opinião sobre os principais assuntos da vida brasileira, como um Simão Bacamarte a defender a sanidade do Judiciário.
Mas, o pedido de impeachment é uma das pontas da informação. A outra é o que há nele, as sérias acusações contra Gilmar Mendes que também não são levadas ao conhecimento da população, a quem a "grande imprensa" (e, mais importante que ela, a Constituição do país) diz ter o direito à informação:
(...) A referida reportagem informou, dentre outros fatos, que o Advogado Sergio Bermudes hospeda o Ministro Gilmar Ferreira Mendes quando este vem ao Rio de Janeiro, e que já hospedou-o em outras localidades, além de fornecer-lhe automóvel Mercedes Benz com motorista.
A citada reportagem informou também que o Ministro Gilmar Ferreira Mendes recebeu de presente, do mesmo Advogado Sergio Bermudes, uma viagem a Buenos Aires, Argentina, quando deixou a presidência do Supremo Tribunal Federal no ano passado (2010). E que o presente foi extensivo à mulher do Ministro, acompanhando-os o Advogado nessa viagem.
A citada reportagem informou ainda que o referido Advogado emprega e assalaria, acima do padrão, a mulher do Ministro. Evidente que no recesso do lar pode ela interferir junto ao marido a favor dos interesses do escritório onde trabalha, e de cujo titular é amiga íntima (sempre segundo a citada reportagem). É o canal de voz, direto e sem interferências, entre o Ministro e o Advogado.
Se comprovados estes fatos, notadamente a viagem de presente, ficará configurada violação de dever funcional, com consequente inabilitação para o cargo, eis que vedado o recebimento de benefícios ao menos pelo Código de Ética da Magistratura, precisamente seu artigo 17.
Será que nada disso é notícia? Por que o silêncio cúmplice?
Este pequeno blog vai ficar batendo na tecla, até que o ministro venha a público desmentir e desqualificar - se puder - as graves acusações que lhe são feitas.
Quem já chamou às falas um presidente da República também deve ser chamado às falas, porque ninguém pode estar acima das leis, pairando olímpico. Como não ficou o Simão Bacamarte original, que, ao final, internou-se na Casa Verde.
Nossa Casa Verde e Amarela e Azul e Branca aguarda o ministro.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Preparando o ataque

A denúncia que se avoluma sobre Antonio Palocci, o fato destacado pelo jornal Folha de São Paulo de seu patrimônio ter se elevado 20 vezes (de R$ 375 mil para cerca de R$ 7,5 milhões) em apenas 4 anos, pouco depois de ter saído do ministério, em muito fragilizará o governo Dilma.
Será sempre um ponto a se voltar (nos momentos oportunos – eleitorais) e, para abafar o caso agora, vêm as muitas concessõe$$$ à base aliada.

Observo que a imprensa tem concentrado as denúncias no governo – e preservando a figura da presidente Dilma.
É uma estratégia, no meu ponto de vista, muito inteligente. Ficam avolumando na cabeça da população o mau funcionamento do governo – e a Dilma por estar, individualmente, preservada, não responde, não se defende. Quando chegar um momento decisivo (eleitoral ou de denúncia mais grave), vinculam todos os problemas do governo nas costas da Dilma. E será tarde, ela não terá mais como reagir, pois, institucionalmente avalizou que os meios de comunicação representam a opinião pública – o que é uma falácia.

A verdade é que seria uma boa ocasião para ejacular Antonio Palocci do governo e tentar imprimir uma marca mais produtiva em sua gestão, tanto por questões éticas como ideológicas.

De qualquer modo, sobre a saída de Palocci do governo, não tenho isenção para pedir sua saída: por mim ele não teria nem chegado perto de entrar no governo.

Pedido de impeachment de Gilmar equivale a um BO

A leitura do pedido de impeachment do Ministro Gilmar Mendes (aqui referido como Gilmar Dantas (*)), que o advogado Alberto de Oliveira Piovesan protocolou no Senado e na OAB (**)  é uma descrição detalhada das gritantes ilegalidades cometidas por este ministro de Fernando Henrique Cardoso.
O amigo navegante tem à disposição a íntegra do pedido – de resto totalmente ignorado pelo PiG (***).
Mas, para facilitar a leitura, este ansioso blogueiro relembra alguns fatos.
O advogado carioca Sergio Bermudes trabalha para o passador de bola apanhado no ato passar bola.
Dantas, lembre-se, foi condenado pela mais alta Corte da Justiça Britânica como mentiroso e fraudador de contas bancárias – apesar dos esforços bem remunerados de Bermudes.
Bermudes defende Dantas no STJ – onde o Ministro Macabu pode ter a faculdade de anular a Satiagraha, onde Dantas é incriminado dos pés à cabeça, como já demonstrou a revista Época, ao tratar das relações de Dantas com FHC; e aqui também, ao descrever as relações do lobbista de Dantas com o motorista de Cerra.
(O lobbista de Dantas, depois de conseguir o que queria do motorista de Cerra, diz “maravilha das maravilhas !”.)
Além de estar incriminado na Carta Capital, de forma irrefutável, no parecer que um probo delegado da Polícia Federal – nem tudo está perdido – encaminhou ao Ministério Público Federal.
Bermudes defende Dantas. Ponto.
Onde for.
Bermudes emprega a mulher de Gilmar.
Bermudes emprega o filho de Macabu.
Bermudes empresta o apartamento no Morro da Viúva, no Rio, em frente à cobertura de Roberto Carlos, ao casal Gilmar Dantas.
Empresta a Mercedes com motorista.
Empresta ao casal o apartamento que tem na Quinta Avenida em Nova York, facing the park.
Bermudes pagou uma passagem a Buenos Aires para o casal Gilmar Dantas.
Para que Gilmar e a mulher pudessem “desencarnar” do estafante trabalho da presidência do Supremo.
Só ?
Não !
Na hora de dar os dois HCs Canguru ao condenado pela Justiça Britânica, quem advertiu o Supremo Presidente do Supremo do perigo que havia ali na Satiagraha ?
A Guio.
Quem é a Guio ?
A funcionária de Bermudes e mulher do Gilmar.
A Guio !
É pouco, amigo  navegante ?
Quer mais ?
Quando houve a festa ao aniversario do escritório de Bermudes, no Copa, no Rio (o Bermudes sabe viver a vida !), quem foi para a porta receber os convidados ?
Gilmar Dantas !
Quer mais, amigo navegante ?
De quem mais Bermudes é advogado ?
Da Rede Globo, que trata Gilmar a leite de pato.
Além disso, Piovesan descreve as íntimas relações do casal Gilmar Dantas com o dono de uma empresa relação publicas, de codinome “Consultor Jurídico”.
A Consultor Jurídico é regiamente paga por Dantas, como demonstra esse estudo sobre o “Sistema Dantas de Comunicação”.
O dono da empresa foi o cupido do casamento do casal Gilmar.
Ele selecionou a música para o reatamento do namoro.
Que chic !
E quando o relações públicas lança uma publicação especial, Gilmar Dantas abre as portas de um solene auditório do Supremo para festejar o insigne lançamento.
Quer mais, amigo navegante ?
Quando era Advogado Geral da União (de FHC), segundo o testemunho do respeitado jurista Dalmo Dallari, Gilmar contratou seu próprio estabelecimento de ensino para dar curso a servidores da AGU.
É pouco, amigo navegante ?
Quer mais ?
Tem !
Durante a Presidência Excelsa de Gilmar Dantas (*) no Conselho Nacional de Justiça, o corajoso professor Joaquim Falcão destituiu o Juiz Ari Ferreira de Queiroz, de Goiânia, que era sócio proprietário do Instituto de Ensino e Pesquisa Cientifica, uma escola semelhante à de Gilmar Dantas, embora mais modesta.
“Pode um juiz  contribuir com o prestígio de seu cargo, que é público, para beneficiar os interesses privados seus e/ou de outros  ?“ perguntou-se Falcão.
E o Gilmar ?
Quer mais, amigo navegante ?
Piovesan lembra que, segundo a Folha, o Padim Pade Cerra, em plena campanha eleitoral, telefonou para Gilmar sobre os dois documentos para o eleitor votar.
Quanto mais documentos fossem pedidos, melhor para o Cerra.
Gilmar pediu vistas no julgamento.
E depois votou do jeito que, por coincidência, atendia aos interesses eleitorais do Cerra.
Segundo o repórter da Folha (****), Cerra saudou Gilmar de “meu presidente” !
“Meu presidente”!
Quem disse a quem ?
Cerra a Gilmar ou Gilmar a Cerra ?
Piovesan lembra que o corajoso ministro Joaquim Barbosa, além de falar dos capangas de Gilmar, naquele vídeo memorável, disse que Gilmar Mendes é “violento, atrabiliário e aparelhou o Supremo para seus interesses monetários e partidários”.
Viva o Brasil !

Clique aqui para ler “As 37 ações contra PHA. Dantas quer criar jurisprudência e calar blogosfera”.
Paulo Henrique Amorim

(*) Clique aqui para ver como um eminente colonista do Globo se referiu a Ele. E aqui para ver como outra eminente colonista da GloboNews e da CBN se refere a Ele.
(**) A OAB, segundo amigo navegante deste ansioso blog, passou a ser conhecida como “OABril de 1001 Utilidades”, na notável jestão do Dr Ophir.
(***) Em nenhuma democracia séria do mundo, jornais conservadores, de baixa qualidade técnica e até sensacionalistas, e uma única rede de televisão têm a importância que têm no Brasil. Eles se transformaram num partido político – o PiG, Partido da Imprensa Golpista.
(****) Folha é um jornal que não se deve deixar a avó ler, porque publica palavrões. Além disso, Folha é aquele jornal que entrevista Daniel Dantas DEPOIS de condenado e pergunta o que ele achou da investigação; da “ditabranda”; da ficha falsa da Dilma; que veste FHC com o manto de “bom caráter”, porque, depois de 18 anos, reconheceu um filho; que matou o Tuma e depois o ressuscitou; e que é o que é,  porque o dono é o que é; nos anos militares, a Folha emprestava carros de reportagem aos torturadores.

domingo, 15 de maio de 2011

Discurso de Luiz Claudio Cunha - por Paulo Henrique Amorim (Conversa Afiada)

O Conversa Afiada tem o prazer de oferecer ao amigo navegante trechos do discurso proferido por Luiz Claudio Cunha, na cerimônia de diplomação de Notório Saber em Jornalismo, na Universidade de Brasília, no dia 9 de maio:

O jornalismo é a atividade humana que depende essencialmente da pergunta, não da resposta. O bom jornalismo se faz e se constrói com boas perguntas. O jornalismo de excelência se faz com excelentes perguntas.

Eu era uma criança de 12 anos quando irrompeu o golpe de março de 1964. Mas, como as crianças da escola de Realengo, já tinha a idade suficiente para reconhecer a violência, para sofrer o trauma, para sentir o medo. Os efeitos do longo pesadelo de 21 anos se projetaram no calendário. Meu primeiro voto para presidente da República só aconteceu quando tinha 38 anos. Cassaram nossa cidadania, limitaram nossa liberdade, calaram nossos amigos, exilaram nossos líderes, machucaram nosso povo.

Atacaram com violência maior o que mais assusta os tiranos: a universidade, o santuário do conhecimento, a trincheira do livre-pensamento, a sede da consciência crítica. Profanaram o espaço desta universidade, a Universidade de Brasília, a academia que estava no coração da nova ordem sem coração, o regime que combatia a força das ideias pela ideia da força armada, desalmada, desatinada.

Um regime que expurgou da UnB seus dois primeiros reitores, nomes primeiros da educação e do compromisso ético com a escola e com a liberdade do pensamento: Darcy Ribeiro, criador e fundador da UnB, e Anísio Teixeira, lançador do movimento da ‘Escola Nova’ – uma escola que enfatizava o desenvolvimento do intelecto e a capacidade de julgamento. Juntos, Darcy e Anísio assentaram os pilares desta universidade. Anísio inventou na Liberdade, o bairro mais populoso e pobre de Salvador nos anos 1940, a ‘Escola Parque’, que tinha padaria, um jornal diário e uma rádio comunitária por alto-falante, com médico e dentista e turno integral para as crianças. O modelo revolucionário inspirou Darcy a criar os CIEPs anos depois, no Rio de Janeiro. Anísio também ajudou a fundar a SBPC e a CAPES e dirigiu o INEP, Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, onde defendia o fim do ensino religioso obrigatório nas escolas.

A nova ordem que trazia a desordem institucional afastou ambos, Darcy e Anísio, da UnB, de Brasília, das escolas, dos jovens, do país. Em 12 de março de 1971, auge da violência do mandato do notório general Médici, Anísio desapareceu no Rio, depois de visitar o amigo Aurélio Buarque de Holanda. Os militares disseram que ele estava detido, mas não informaram o seu paradeiro. Dois dias depois, seu corpo foi encontrado, sem sinais de queda nem hematomas, no fundo do poço do elevador do prédio de Aurélio, na praia de Botafogo. Causa da morte: ‘acidente’.

Aqueles eram tempos estranhos, muito estranhos, quando nem os acidentes deixavam rastro.

Pensadores e mestres como Darcy e Anísio resumem bem a história do país e da UnB. E nenhum estudante simboliza melhor esta universidade do que o primeiro lugar em Geologia do ano de 1965, um jovem goiano de 18 anos chamado Honestino Guimarães. É um dos 144 desaparecidos políticos do país. Presidente da Federação dos Estudantes Universitários de Brasília, foi preso pelo Exército e expulso da universidade por reagir à invasão do campus da UnB em 1968. Caiu na clandestinidade com o AI-5, chegou à presidência nacional da UNE e foi preso em outubro de 1973.

A jornalista brasiliense Taís Morais fez as perguntas certas e, no seu livro Sem Vestígios (Prêmio Jabuti de 2006), descobriu o macabro trajeto final de Honestino, percorrendo todo o alfabeto de siglas letais da repressão brasileira: detido no Rio de Janeiro pelo CENIMAR (Centro de Informações da Marinha), trazido a Brasília pelo CIE (Centro de Informações do Exército), torturado durante cinco meses no PIC (Pelotão de Investigações Criminais, no subsolo do prédio do Comando do Exército, na Esplanada dos Ministérios) e levado em fevereiro de 1974 a Marabá num jatinho fretado da Líder Táxi Aéreo por quatro agentes do CIE liderados por um certo major-aviador Jonas, do CISA (Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica).

Lá, no sul do Pará, Honestino foi executado e enterrado na selva pelas tropas que combatiam a guerrilha do Araguaia. Honestino desapareceu aos 26 anos, mas o hoje coronel-aviador da reserva (R-1), com nome, sobrenome e endereço conhecido, circula sem chamar a atenção por Brasília, sem que nenhum jornalista se aproxime dele para fazer uma simples e básica pergunta: − Coronel Jonas, o que aconteceu com Honestino?

A prepotência não permitia perguntas para números sem resposta: 500 mil cidadãos investigados pelos órgãos de segurança; 200 mil detidos por suspeita de subversão; 50 mil presos só entre março e agosto de 1964; 11 mil acusados nos inquéritos das Auditorias Militares, 5 mil deles condenados, 1.792 dos quais por ‘crimes políticos’ catalogados na Lei de Segurança Nacional; 10 mil torturados apenas na sede paulista do DOI-CODI; 6 mil apelações ao Superior Tribunal Militar (STM), que manteve as condenações em 2 mil casos; 10 mil brasileiros exilados ; 4.862 mandatos cassados, com suspensão dos direitos políticos, de presidentes a governadores, de senadores a deputados federais e estaduais, de prefeitos a vereadores; 1.148 funcionários públicos aposentados ou demitidos; 1.312 militares reformados; 1.202 sindicatos sob intervenção; 245 estudantes expulsos das universidades pelo Decreto 477 que proíbe associação e manifestação; 128 brasileiros e 2 estrangeiros banidos; 4 condenados à morte (sentenças depois comutadas para prisão perpétua); 707 processos políticos instaurados na Justiça Militar; 49 juízes expurgados; 3 ministros do Supremo afastados, o Congresso Nacional fechado por três vezes; 7 Assembleias estaduais postas em recesso; censura prévia à imprensa e às artes; 400 mortos pela repressão; 144 deles desaparecidos até hoje.

No início de 1962 oficiais das Forças Armadas foram a São Paulo para um encontro com o jornalista Júlio de Mesquita Filho, a quem entregaram um documento sobre as normas que iriam comandar o governo militar após a queda de Jango. O grupo, integrado pelos generais Cordeiro de Farias e Orlando Geisel, foi mais explícito com o dono de O Estado de S.Paulo: o novo regime queria ficar no poder por pelo menos cinco anos, o que viria a ser a primeira mentira do golpe. O regime militar perdurou quatro vezes mais.

Animado com a conversa, Mesquita chegou ao ponto de sugerir oito nomes para o futuro ministério golpista. O jornalista, acreditem, chegou a fazer o rascunho de um Ato Institucional para fechar Senado, Câmara e Assembleias e para cassar mandatos. Ironia da história: o instrumento de força esboçado por Júlio Mesquita era o mesmo a que a ditadura submeteria seu jornal em 1968 com o AI-5. Os ex-amigos do golpe confabulado pelo dono do Estadão forçariam o jornal a cobrir os espaços censurados nas páginas com versos de Camões e receitas de bolo.

Precisamos lembrar, devemos contar.

Guerrilha não se confunde com terrorismo, definido sim pelo deliberado objetivo de infundir terror entre a população civil, sob o risco assumido de vítimas inocentes – como no caso do terror consumado do 11 de Setembro em Nova York, como no caso do terror frustrado da bomba do Riocentro no Rio de Janeiro. É por isso que ninguém, nem mesmo um cínico, se atreve a escrever “terroristas de Sierra Maestra” ou “terroristas do Araguaia”.

Eram guerrilheiros, não terroristas. Terrorista era o Estado, que usou da força e abusou da violência para alcançar e machucar dissidentes presos, indefesos, algemados, pendurados, desprotegidos diante de um aparato impiedoso que agia à margem da lei, na clandestinidade, nos porões, torturando e matando sob o remorso de um codinome, encoberto na treva de um capuz. Terroristas eram os assassinos de Honestino Guimarães, Vladimir Herzog, David Capistrano da Costa, Manoel Raimundo Soares, Stuart Angel Jones, Manoel Fiel Filho, Paulo Wright, Zuzu Angel, entre tantos outros.

“A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram”, ensinou Ulysses Guimarães, no dia da promulgação da Constituição de 1988. “Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”, reforçou Ulysses.

A hipocrisia nacional diz que a mera lembrança desses nomes e fatos não passa de revanchismo, de mera volta ao passado.
Uma médica chilena, torturada em 1975 e eleita presidente em 2006, desmente isso: “Só as feridas lavadas cicatrizam”, ensina Michelle Bachelet.

O Supremo Tribunal Federal teve, no ano passado, a chance de lavar esta ferida. E, vergonhosamente, abdicou desse dever.

Apenas dois dos nove ministros do STF – Ricardo Lewandowski e Carlos Ayres Brito – concordaram com a ação da OAB, que contestava a anistia aos agentes da repressão. “Um torturador não comete crime político”, justificou Ayres Brito. “Um torturador é um monstro. Um torturador é aquele que experimenta o mais intenso dos prazeres diante do mais intenso sofrimento alheio perpetrado por ele. Não se pode ter condescendência com o torturador. A humanidade tem o dever de odiar seus ofensores porque o perdão coletivo é falta de memória e de vergonha”.

Apesar da veemência de Ayres Brito, o relator da ação contra a anistia, ministro Eros Grau, ele mesmo um ex-comunista preso e torturado no DOI-CODI paulista, manteve sua posição contrária: “A ação proposta pela OAB fere acordo histórico que permeou a luta por uma anistia ampla, geral e irrestrita”, disse Eros Grau, certamente esquecido ou desinformado, algo imperdoável para quem é juiz da mais alta Corte e também sobrevivente da tortura. A anistia de 1979 não é produto de um consenso nacional. É uma lei gestada pelo regime militar vigente, blindada para proteger seus acólitos e desenhada de cima para baixo para ser aprovada, sem contestações ou ameaças, pela confortável maioria parlamentar que o governo do general Figueiredo tinha no Congresso: 221 votos da ARENA, a legenda da ditadura, contra 186 do MDB, o partido da oposição.

Nada podia dar errado, muito menos a anistia controlada.

Amplo e irrestrito, como devia saber o ministro Grau, era o perdão indulgente que o regime autoconcedeu aos agentes dos seus órgãos de segurança. Durante semanas, o núcleo duro do Planalto de Figueiredo lapidou as 18 palavras do parágrafo 1° do Art. 1° da lei que abençoava todos os que cometeram “crimes políticos ou conexos com estes” e que não foram condenados. Assim, espertamente, decidiu-se que abusos de repressão eram “conexos” e, se um carcereiro do DOI-CODI fosse acusado de torturar um preso, ele poderia replicar que cometera um ato conexo a um crime político. Assim, numa única e cínica penada, anistiava-se o torturado e o torturador.

Em 22 de agosto de 1979, após nove horas de tenso debate, o Governo aprovou sua anistia, a 48ª da história brasileira. Com a pressão da ditadura, aprovou-se uma lei que não era ampla (não beneficiava os chamados ‘terroristas’ presos), nem geral (fazia distinção entre os crimes perdoados) e nem irrestrita (não devolvia aos punidos os cargos e patentes perdidos).

Mesmo assim, o regime suou frio: ganhou na Câmara dos Deputados por apenas 206 votos contra 201, graças à deserção de 15 arenistas que se juntaram à oposição para tentar uma anistia mais ampliada. Um dos mentores do ‘crime conexo’ era o chefe do Serviço Nacional de Informações, o SNI, general Octávio Aguiar de Medeiros, signatário da anistia de agosto de 1979.

Menos de dois anos depois, em abril de 1981, um Puma explodiu antes da hora no Riocentro, no Rio de Janeiro. Tinha a bordo dois agentes terroristas do Exército: o sargento Guilherme do Rosário, que morreu com a bomba no colo, e o capitão do DOI-CODI Wilson Machado, que sobreviveu impune e, apesar das feias cicatrizes no peito, virou professor do Colégio Militar em Brasília.

Em 24 de abril passado, em trabalho admirável, os repórteres Chico Otávio e Alessandra Duarte, de O Globo, revelaram ao país a agenda pessoal do sargento morto, a agenda que o Exército considerou desimportante para seu arremedo de investigação. Pois lá estão anotados os nomes reais (sem codinome) e os telefones de 107 pessoas, de oficiais graduados a soldados, de delegados a detetives, passando pelo Estado-Maior da PM e o comando da Secretaria de Segurança. Nessa ‘Rede do Terror’ que conspirava para endurecer o regime não consta o nome de um único guerrilheiro. Todos os terroristas, ali, integravam o aparelho de Estado, patrono da complacente autoanistia que não satisfazia nem seus radicais.

O nome mais ilustre da agenda é Freddie Perdigão, membro de um certo ‘Grupo Secreto’ organização paramilitar de direita que jogava no fechamento político. Perdigão era coronel da Agência Rio do SNI do general Medeiros. Nada mais cínico e nada mais conexo do que isso.

O ‘Grupo Secreto’ é responsável por algumas das 100 bombas que explodiram no Rio e São Paulo entre a anistia de agosto de 1979 e o atentado do Riocentro de abril de 1981, endereçadas a bancas de jornal, publicações alternativas da oposição, Assembleia Legislativa e às sedes da OAB e da ABI.

Apesar da equivocada decisão do Supremo, o Brasil acaba de ser condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA por se eximir da investigação e punição aos agentes do Estado responsáveis pelo desaparecimento forçado de 70 guerrilheiros do Araguaia. “A Lei da Anistia do Brasil é incompatível com a Convenção americana, carece de efeito jurídico…”, criticou a Corte da OEA.

Em novembro passado, o Ministério Público Federal em São Paulo ajuizou ação civil pública pedindo a responsabilização civil de três oficiais das Forças Armadas e um da PM paulista sobre morte ou desaparecimento de seis pessoas e a tortura de outras 20 detidas em 1970 pela Operação Bandeirante (Oban), o berço de dor e sangue do DOI-CODI, a sigla maldita que marcou o regime e assombrou os brasileiros. O capitão reformado do Exército Maurício Lopes Lima é frontalmente acusado pelos 22 dias de suplício a uma das presas, líder da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Nome da presa torturada: Dilma Rousseff.

Agora presidente, Dilma Rousseff encara este desafio que intimidou os cinco homens que a antecederam no Palácio do Planalto a partir de 1985, quando acabou a ditadura: a punição aos torturadores do golpe de 1964. Não será por revanchismo, mas pelo dever ético de todo país que respeita a verdade, a memória e sua história. Como fazem com altivez a Argentina, o Uruguai, o Chile ao lavar suas feridas, feias como as nossas.

Quando fui chamado para trabalhar na revista Veja em Porto Alegre, em 1971, o chefe da sucursal era Paulo Totti. Aos 32 anos, era o mais talentoso jornalista do Rio Grande do Sul, a melhor escola que um repórter poderia ter. Em dezembro de 2007, cinco meses antes de completar 70 anos, Totti conquistou o Prêmio Esso de Economia com uma reportagem sobre a China, publicada no diário Valor Econômico. O melhor jornalista gaúcho há 40 anos é ainda hoje um dos grandes repórteres brasileiros. É dele esta frase consoladora:
– A função do repórter é a única que vai sobreviver no jornalismo do futuro. Sempre vamos precisar, no futuro, de alguém que pergunte.

Totti disse e eu completo: o importante – ontem, hoje e sempre – é duvidar e perguntar.

Espero que o título honroso que a UnB hoje me confere seja o reconhecimento não às respostas que obtive, mas às perguntas que fiz ao longo destas últimas quatro décadas.

sábado, 14 de maio de 2011

"Minha reação diante da morte de Osama" – por Noam Chomsky (Agência CartaMaior)

Poderíamos perguntar a nós mesmo como reagiríamos se um comando iraquiano pousasse de surpresa na mansão de George W. Bush, o assassinasse e, em seguida, atirasse seu corpo no Oceano Atlântico. Sem deixar dúvidas, seus crimes excederam em muito os que Bin Laden cometeu, e não é um "suspeito", mas sim, indiscutivelmente, o sujeito que "tomou as decisões", quem deu as ordens de cometer o "supremo crime internacional, que difere só de outros crimes de guerra porque contém em si o mal acumulado do conjunto".
Noam Chomsky - Guernica Magazine

Fica cada vez mais evidente que a operação foi um assassinato planejado, violando de múltiplas maneiras normas elementares de direito internacional. Aparentemente não fizeram nenhuma tentativa de aprisionar a vítima desarmada, o que presumivelmente 80 soldados poderiam ter feito sem trabalho, já que virtualmente não enfrentaram nenhuma oposição, exceto, como afirmara, a da esposa de Osama bin Laden, que se atirou contra eles.

Em sociedades que professam certo respeito pela lei, os suspeitos são detidos e passam por um processo justo. Sublinho a palavra "suspeitos". Em abril de 2002, o chefe do FBI, Robert Mueller, informou à mídia que, depois da investigação mais intensiva da história, o FBI só podia dizer que "acreditava" que a conspiração foi tramada no Afeganistão, embora tenha sido implementada nos Emirados Árabes Unidos e na Alemanha.

O que apenas acreditavam em abril de 2002, obviamente sabiam 8 meses antes, quando Washington desdenhou ofertas tentadoras dos talibãs (não sabemos a que ponto eram sérias, pois foram descartadas instantaneamente) de extraditar a Bin Laden se lhes mostrassem alguma prova, que, como logo soubemos, Washington não tinha. Portanto, Obama simplesmente mentiu quando disse na sua declaração da Casa Branca, que "rapidamente soubemos que os ataques de 11 de setembro de 2001 foram realizados pela al-Qaeda".

Desde então não revelaram mais nada sério. Falaram muito da "confissão" de Bin Laden, mas isso soa mais como se eu confessasse que venci a Maratona de Boston. Bin Laden alardeou um feito que considerava uma grande vitória.

Também há muita discussão sobre a cólera de Washington contra o Paquistão, por este não ter entregado Bin Laden, embora seguramente elementos das forças militares e de segurança estavam informados de sua presença em Abbottabad. Fala-se menos da cólera do Paquistão por ter tido seu território invadido pelos Estados Unidos para realizarem um assassinato político.

O fervor antiestadunidense já é muito forte no Paquistão, e esse evento certamente o exacerbaria. A decisão de lançar o corpo ao mar já provoca, previsivelmente, cólera e ceticismo em grande parte do mundo muçulmano.

Poderíamos perguntar como reagiríamos se uns comandos iraquianos aterrizassem na mansão de George W. Bush, o assassinassem e lançassem seu corpo no Atlântico. Sem deixar dúvidas, seus crimes excederam em muito os que Bin Laden cometeu, e não é um "suspeito", mas sim, indiscutivelmente, o sujeito que "tomou as decisões", quem deu as ordens de cometer o "supremo crime internacional, que difere só de outros crimes de guerra porque contém em si o mal acumulado do conjunto" (citando o Tribunal de Nuremberg), pelo qual foram enforcados os criminosos nazistas: as centenas de milhares de mortos, milhões de refugiados, destruição de grande parte do país, o encarniçado conflito sectário que agora se propagou pelo resto da região.

Há também mais coisas a dizer sobre Bosch (Orlando Bosch, o terrorista que explodiu um avião cubano), que acaba de morrer pacificamente na Flórida, e sobre a "doutrina Bush", de que as sociedades que recebem e protegem terroristas são tão culpadas como os próprios terroristas, e que é preciso tratá-las da mesma maneira. Parece que ninguém se deu conta de que Bush estava, ao pronunciar aquilo, conclamando a invadirem, destruírem os Estados Unidos e assassinarem seu presidente criminoso.

O mesmo passa com o nome: Operação Gerônimo. A mentalidade imperial está tão arraigada, em toda a sociedade ocidental, que parece que ninguém percebe que estão glorificando Bin Laden, ao identificá-lo com a valorosa resistência frente aos invasores genocidas.

É como batizar nossas armas assassinas com os nomes das vítimas de nossos crimes: Apache, Tomahawk (nomes de tribos indígenas dos Estados Unidos). Seria algo parecido à Luftwaffe dar nomes a seus caças como "Judeu", ou "Cigano".

Há muito mais a dizer, mas os fatos mais óbvios e elementares, inclusive, deveriam nos dar mais o que pensar.

(*) Noam Chomsky é professor emérito do Departamento de Linguística e Filosofía del MIT. É autor de numerosas obras políticas. Seus últimos livros são uma nova edição de "Power and Terror", "The Essential Chomsky" (editado por Anthony Arnove), uma coletânea de seus trabalhos sobre política e linguagem, desde os anos 1950 até hoje, "Gaza in Crisis", com Ilan Pappé, e "Hopes and Prospects", também disponível em áudio.

Escritor britânico mostra 'lado obscuro' de João Paulo II: papa corrupto, leniente com a pedofilia e extremamente político – por Manuela Andreoni (O Globo)

RIO - A beatificação de Karol Wojtyla, o Papa João Paulo II, seis anos após sua morte, só não foi mais rápida que a da Madre Teresa de Calcutá, que ocorreu cinco anos depois do falecimento da religiosa, em 1997. Qual o motivo de tanta pressa? Quem responde é o crítico voraz da Igreja Católica, o britânico David Yallop, autor dos livros "Em nome de Deus", que trata da misteriosa morte do Papa João Paulo I, 33 dias após ser proclamado chefe da Igreja, e "Poder e Glória", sobre o lado obscuro do papado do recém-beatificado Karol Wojtyla.
Defensor da tese de que João Paulo I foi assassinado porque queria acabar com a lavagem de dinheiro feita por meio do Banco do Vaticano, que investigou em seu livro, Yallop acredita que Karol Wojtyla, o seu sucessor no comando da Santa Sé, era corrupto, leniente com a pedofilia e extremamente político. Católico, o autor britânico ainda persiste em sua fé e, mesmo discordando do conservadorismo do Vaticano, afirma que até frequenta igrejas, por mais que nunca vá a missa. "É estranho, mas eu acredito no poder da reza", conta.

O que o senhor achou da beatificação de Karol Wojtyla?
Pelos próprios parâmetros do Vaticano, está havendo muita pressa no julgamento disso. De fato, é a primeira vez desde que ele morreu que uma pessoa recebeu o benefício da remoção do que eles costumavam chamar de "advogado do diabo", ou seja, um clérigo sênior que era nomeado para tomar uma posição bem crítica em relação a todas as provas que fossem reunidas para que qualquer pessoa seja considerada para a beatificação. Mas (essa posição) foi abolida, ironicamente por João Paulo II. Então, ele se beneficiou de sua própria decisão. Aliás, este é o homem que criou mais santos no curso de seu papado, de 1978 até 2005, que todos os papas antes dele juntos.

Por que essa pressa?
Do momento em que ele se tornou papa, as mentiras e as desinformações começaram. É dito que ele se comportou de forma corajosa durante a Segunda Guerra Mundial e que salvou as vidas de muitos judeus. Isso não é verdade. É dito que ele sofreu muito durante a guerra, trabalhando em condições de escravo. Isso não é verdade, ele tinha um trabalho assalariado, pago pelo Reich... Eu acho que o Bento XVI foi obrigado a fazer isso pelas pessoas a seu redor. Você lembra quando o João Paulo II morreu, teve aquela grande erupção na Praça de São Pedro pedindo para beatificá-lo imediatamente. Então, com menos de dois meses depois de sua morte, eles já haviam começado o processos. Não se tem notícias sobre algo assim! Mas eu acho que o que eles temiam eram pessoas como eu e das coisas que nós descobrimos e tornamos públicas.

Em seu livro o senhor denuncia a corrupção no Vaticano. O que lhe faz pensar que João Paulo II fazia parte dela?
João Paulo I, Albino Luciani, deixou foi uma série de ações que ele ia começar a implementar, ele ia tirar pessoas do Banco do Vaticano, tirar alguns padres e cardeais corruptos. E ele disse ao seu secretário de Estado, um homem chamado Cardeal Jean Villot, o que ele pretendia fazer e o cardeal ficou muito chateado com isso e ele (João Paulo I) disse que era o papa e podia fazer o que quisesse, e foi para a cama e morreu. E, se ele tivesse vivido, aquelas coisas seriam postas em seus lugares na manhã seguinte. Quando Wojtyla tomou poder, mais ou menos um mês depois, foi falado a ele muito precisamente que mudanças eram essas que Luciani queria fazer, mas ele não queria saber de prosseguir aquele caminho. Então, isso te diz alguma coisa sobre sua reação à corrupção.

Por que ele não mexeu nisso?
Ele tinha uma visão de que a Igreja não lavaria o seu linho sujo em público. Ele dizia que tinha um quarto especial em cada casa, falando solidamente sobre a Igreja Católica, onde as pessoas deveriam ir para discutir esses assuntos e que eles não deveriam deixar aquele quarto, o quarto secreto, como ele chamava.
Mas João Paulo II é aclamado pela comunidade internacional...
Eu não estou dizendo que este homem não fez boas ações, mas ele também fez más ações. Ele encobriu escândalos de pedofilia na Igreja. Foi primeiro chamado à atenção dele em 1984 ou 1985 por três homens, dois deles padres e outro advogado, que estavam muito preocupados com a pedofilia nos Estados Unidos. Eles haviam criado um documento, de 100 páginas, do qual eu tenho cópia, que era o caminho que a Igreja deveria tomar em relação a isso. Este não era um documento que pregava tolerância zero sobre o abuso de crianças. Este era um documento para proteger a Igreja, dizendo "olha, se você não tomar essas providências para impedir os padres que abusam de crianças, você vai quebrar financeiramente". Eles previram que custaria à Igreja algo como US$ 2 bilhões. Falando em número hoje, custou ao Vaticano US$ 10 bilhões, para pagar às vítimas.

Por que a aclamação de seu papado, então?
No momento em que ele morreu, ele era um dos homens mais populares do planeta. O que me deixa muito chocado é que se você pedisse para as pessoas que o ouviram falar para citar qualquer coisa que ele tenha dito, ou como os afetou... Era como se ela tivessem ido a um show de pop. Elas gostavam do espetáculo e depois seguiam com a vida. Lembravam daquele momento porque ele era um homem muito carismático. Ele podia falar mais de 50 línguas - não muito bem, mas o suficiente para falar feliz natal -, mas não escutava em nenhuma. Era um homem muito dogmático.

E o que o senhor acha do papado de Bento XVI até agora?
Eu acho que ele prova que há vida após a morte, porque é como o Papa João Paulo II novamente. Um homem que é rígido, um homem que é tão hostil à homossexualidade, tão hostil aos contraceptivos, hostil a tantas coisas que o senso comum diz... Você tem que voltar ao início de tudo e dar outra olhada. Porque a maioria das coisas que eles apoiam e pregam não tem nada a ver com as origens da fé. Você não achará nada no Novo Testamento que dirá que você não pode ter um relacionamento homossexual.

E o senhor é católico ainda assim?
Eu me descreveria como um católico pensante, representante de uma minoria. A maioria deles não é pensante. Eles estão seguindo porque são treinados, condicionados quando crianças. Existem pedaços da fé, como um estilo de vida, e não estou falando da doutrina e dos dogmas, mas do que Cristo nos ensinou, que são maravilhosos. Mas estamos longe disso agora. Se Jesus Cristo fosse para uma reza agora nos portões de Sant'anna, em Roma, ele não conseguiria passar, seria preso.

E você acredita em milagres?
É estranho, mas eu acredito no poder da reza. Eu já vi funcionar. Mas o negócio dessa mulher que supostamente foi curada por João Paulo II... Eu acho que é uma fantasia. Talvez ela não tenha sido diagnosticada direito para começar.

E ele vai conseguir seu segundo milagre, necessário para a canonização?
Nada é mais certo.

Comentário
Há de se tratar também, que durante o papado de João Paulo II a igreja católica não avançou, não progrediu. Por que uma mulher, por exemplo, não pode ter todos os sacramentos de um homem dentro da igreja? Quem, com o pensamento de hoje, pode concordar com uma aberração destas?
Outra coisa, a não liberação do casamento para padres. O que se observa é que, sem os padres – que são intelectualmente preparados para assumir sua função, possuem uma preparação superior que a grande maioria dos pastores para realizar as homilias – a igreja católica vem definhando, pois não possui gente preparada nem disponibilidade suficiente de padres para realizar as obrigações da igreja.
Não é só no Brasil que a igreja católica vem perdendo fieis aos montes, encastelada num artificialismo pobre, presa dentro de um mundo de contos de fadas, alheia aos problemas sociais da região onde atua, enquanto o Vaticano vive na sua riqueza opulenta.
Ainda haveria muito o que falar, o entrevistado nem trata do que João Paulo II e Bento XVI fizeram com a teologia da libertação. Não por acaso, com a derrocada deste grupo, a igreja católica definhou no Brasil e na América Latina. Não por acaso.

A falta de sabedoria das elites – por Paul Krugman (Tijolaço)

Os últimos três anos foram um desastre para a maioria das economias ocidentais. Os Estados Unidos registram desemprego em massa e de longo prazo pela primeira vez desde os anos 30. Enquanto isso, a moeda comum europeia está se desmantelando. Como é que tudo saiu tão errado?

Bem, o que tenho ouvido com frequência cada vez maior das elites econômicas - homens que se declaram sábios e costumam ser respeitados quanto pontificam a respeito do tema - é que a maior parte dos problemas aconteceu por causa do público. A ideia é a de que essa confusão surgiu porque os eleitores queriam alguma coisa sem ter de pagar por ela, e políticos desprovidos de força de vontade decidiram conquistar o eleitorado ao realizar suas vontades insensatas.

Portanto, o momento parece bom para apontar que essa interpretação de que a culpa é do público não só distorce as coisas em favor da elite como está completamente errada.

A verdade é que estamos vivendo hoje um desastre que foi criado de cima para baixo. As políticas que resultaram nos problemas que vivemos não surgiram em resposta à demanda do público. Foram, com poucas exceções, políticas defendidas por pequenos grupos de pessoas influentes - o mais das vezes, as mesmas pessoas que agora estão tentando dizer aos demais cidadãos que é preciso seriedade. E ao tentar transferir a culpa à população em geral, as elites estão fracassando em realizar uma reflexão muito necessária quanto aos erros catastróficos que cometeram.

Permitam-me concentrar minha atenção ao acontecido nos Estados Unidos, e depois comentar de passagem a situação na Europa.

Hoje em dia, os norte-americanos não param de receber sermões sobre a necessidade de reduzir o déficit orçamentário. Esse foco mesmo representa uma distorção de prioridades, porque nossa preocupação imediata deveria ser criar empregos. Mas suponha que a conversa se restrinja ao déficit, e faça a seguinte pergunta: o que aconteceu ao superávit orçamentário de que o governo federal norte-americano desfrutava em 2000?

A resposta é tripla. Primeiro, vieram os cortes de impostos de Bush, que elevaram a dívida nacional norte-americana em cerca de US$ 2 trilhões nos 10 anos passados. Depois, as guerras no Iraque e Afeganistão, que custaram cerca de US$ 1,1 trilhão em dívidas adicionais. E por fim a Grande Recessão, que resultou tanto em colapso na arrecadação tributária quanto em aumentos consideráveis nos gastos com benefícios aos desempregados e outros programas de seguro social.

Quem foi responsável por todas essas decisões que causaram estouro de orçamentos? Não foram as pessoas comuns.

O presidente George W. Bush reduziu os impostos para servir à ideologia de seu partido, e não em resposta a uma imensa demanda popular - e a maior parte dos cortes beneficiou uma minoria pequena e já afluente.”

Da mesma forma, Bush escolheu invadir o Iraque porque era algo que ele e seus assessores desejavam fazer, e não por que os norte-americanos estivessem exigindo guerra contra um regime que nada teve a ver com o 11 de setembro. Na verdade, foi preciso conduzir uma campanha de vendas muito enganosa a fim de conquistar o apoio dos norte-americanos à invasão, e mesmo assim os eleitores jamais apoiaram a guerra de forma tão sólida quanto à elite política e de sabichões políticos norte-americana.

Por fim, a Grande Recessão foi causada por um sistema financeiro descontrolado, que ganhou força demais devido a uma desregulamentação imprudente. E quem foi responsável por essa desregulamentação? Pessoas poderosas em Washington, estreitamente ligadas ao setor financeiro. Permitam-me menção especial a Alan Greenspan, que desempenhou papel crucial tanto na desregulamentação financeira quanto na aprovação dos cortes de impostos de Bush - e que agora, claro, está entre aqueles que nos passam sermões quanto ao déficit.

Portanto, foi o mau juízo das elites, e não a cobiça do homem comum, que causou o déficit nos Estados Unidos. E a situação na Europa é bastante parecida.

Nem seria preciso dizer que não é isso que as autoridades econômicas europeias alegam. A história oficial na Europa hoje em dia é que os governos dos países em crise cederam mais do que deveriam às massas, prometendo demais aos eleitores enquanto arrecadavam impostos de menos. E a história, devo admitir, procede de maneira razoavelmente precisa com relação à Grécia. Mas isso não foi de modo algum o que aconteceu na Irlanda e Espanha, ambas as quais tinham dívida baixa e superávit orçamentários pouco antes da crise.

A verdadeira história da crise europeia é que os líderes do continente criaram uma moeda única, o euro, sem criar as instituições necessárias a lidar com as contrações e expansões que surgiriam na zona do euro. E o esforço por unificar a moeda europeia foi o exemplo mais claro de projeto imposto de cima para baixo, uma visão de elite imposta a eleitores fortemente relutantes.

Será que isso tudo importa? Por que deveríamos nos preocupar com os esforços para transferir aos cidadãos comuns a culpa pelas más políticas?

Uma resposta é a simples prestação de contas. As pessoas que defenderam políticas causadoras de estouros de orçamento, nos anos Bush, não deveriam ser autorizadas a agora se retratarem como parte da linha dura orçamentária; as pessoas que elogiaram a Irlanda como exemplo de gestão econômica não deveriam pregar sobre governo responsável.

Mas a resposta mais ampla, em minha opinião, é que, ao inventar sobre nossa atual situação histórias que absolvem as pessoas responsáveis por ela, estaremos perdendo a oportunidade de aprender com a crise. A culpa precisa ser atribuída a quem a merece, e nossas elites precisam arcar com os seus erros. De outra forma, causarão estrago ainda maior nos próximos anos.

sábado, 7 de maio de 2011

A crise no PSDB (blog do Nassif)

PSDB corre o risco de se tornar uma legenda maldita - por Eleonora De Lucena (Folha de São Paulo)

CIENTISTA POLÍTICO DIZ QUE O PARTIDO VIVE CRISE PROFUNDA E PRECISA DE UM CHEFE PARA SUPERÁ-LA


Depois de abocanhar quase 44 milhões de votos na última eleição presidencial, o PSDB vive a sua pior crise.

Para enfrentá-la precisa ter um único chefe. A opinião é de Leôncio Martins Rodrigues, 76. Cientista político próximo do PSDB e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ele teme pelo futuro dos tucanos. "O PSDB corre esse risco de virar uma legenda maldita", afirma.

Na entrevista, Leôncio diz estranhar o silêncio do ex-governador José Serra e comenta o desmanche na oposição. Para ele, a falta de perspectiva de poder e a disputa entre as lideranças tucanas explicam o momento conturbado.

Folha - Essa é a maior crise que o PSDB já viveu?
Leôncio Martins Rodrigues - Sim. Nunca houve uma crise assim tão forte.

Como o sr. explica essa crise?
A intelectualidade erra. Minha impressão é que o PSDB está sem uma mensagem e não tem liderança. Ou melhor, tem liderança demais. Duas grandes lideranças, Aécio e Serra, e esse é o problema. Partido só tem um chefe. Partido com dois chefes briga. Isso faz parte da essência da política. Os bolcheviques tinham um chefe: Lênin. Quando o pobre Lênin morreu, Stálin e Trótski brigaram de morte. O partido tem de ter uma só liderança.

E o governador Alckmin?
Você pode pôr também o Alckmin [como liderança].

Onde foi parar o capital político exibido pelo PSDB na eleição? Ele se evaporou?
Grande parte da votação de Serra não era de votos tucanos ideologicamente. Foi um voto anti-Lula, anti-Dilma, por ela representar a continuidade do Lula e do PT. Dilma muito habilmente entrou no eleitorado de classe média, que se encanta com o fato de ela ser mais taciturna, de ser mais comedida no falar, de falar melhor.
Pode ter havido uma divisão do trabalho: o Lula fica com a parte popular, enquanto ela se orienta para um eleitorado um pouco mais culto e de renda mais elevada. Eu já vi vários amigos que tinham votado no Serra fazendo muitos elogios à Dilma. A mídia também está fazendo. Isso vai fortalecer brutalmente, não sei se o PT, mas a Dilma.

O crescimento do governismo, que o PSDB não consegue deter, explica a crise?
É o terceiro mandato que eles não têm a Presidência. Isso provoca crise. Perderam muitos Estados, tiveram a bancada diminuída. O político se comporta para ganhar as eleições: se a mensagem não dá votos, ele muda.

Há uma debandada do PSDB. É a falta de perspectiva de poder que explica?
Os partidos fazem programas para chegar ao poder, e não vão ao poder para realizar programas. Então, mudam. Eles não vão ficar perdendo tempo, perdendo eleições, gastando dinheiro. Não conseguem arrecadar, não conseguem bons contribuintes sem a perspectiva de ganhar o poder. Têm que mudar, não tem conversa. Tem legendas no Brasil que, com certa frequência, se tornam malditas. Arena, depois o PFL. E eles vão mudando.

O DEM é a maldita da vez?
O DEM não é ainda. O DEM foi criado para evitar uma legenda maldita, mas se arrisca a ficar também.

E o PSDB?
O PSDB corre esse risco de virar uma legenda maldita.

O PSDB é o partido da direita?
De jeito nenhum. O PSDB foi um partido moderno. Fernando Henrique teve muita coragem de tomar medidas, de inventar uma cultura política brasileira, com as privatizações, as agências, o Proer. Foi um partido modernizador do capitalismo no Brasil.

Qual vai ser a característica do PSDB daqui para frente?
Eu não sei. O político sempre quer ascender, mas depende das possibilidades. Aécio vem de um Estado importante, tem ambições, mas tem de enfrentar outros. Não sei o que vai acontecer, mas acho que pode ser muito mal para o país.

O quê?
A liquidação do PSDB.

O sr. acredita nessa hipótese?
Liquidar eu não diria, porque criar um novo partido é uma coisa um pouco complicada. Mas a perspectiva de juntar com outro partido pode ser boa, porque os partidos recebem muito dinheiro do Estado, não é?

A fusão com o DEM seria boa para o PSDB e para o DEM?
Não sei.

Se essa fusão se confirmar, o PSDB não será um partido mais à direita do que é hoje?
O que é ser de esquerda? Stálin era de esquerda? Os termos direita e esquerda são usados na luta política para desmoralizar o adversário.

O sr. concorda com a tese de que a linha seguida por Alckmin é mais conservadora do que a de Serra ou Aécio?
O PSDB sempre foi um partido paulista. Você se lembra dos líderes. Do outro lado tinha o Aécio, que não era tão importante. Mas os partidos sempre têm uma característica regional muito marcada. O PSDB não conseguiu entrar no Rio. Tem outro problema.
As lideranças do PSDB estão envelhecendo. Não houve o surgimento de uma nova liderança, mais jovem, que encontrasse uma nova mensagem capaz de galvanizar parte da população. O PT teve mais gana para chegar ao poder, de gente que vinha mais de baixo, de classe média. Gente que queria ascender mais, com mais garra. E teve um líder muito bom desse ponto de vista, o Lula, que soube galvanizar mais as massas, levar um pouco de emoção também ao campo da política. O PSDB não está conseguindo levar. Seria preciso que ele tivesse formado novas lideranças. Não apareceram novas lideranças.
Não sei para onde vai o Serra. Vai disputar a prefeitura? Seria esmagado pelos adversários imediatamente. A primeira coisa que iriam fazer é lembrar que ele assinou em cartório que não iria abandonar a prefeitura, e largou. Isso dificulta muito que ele possa concorrer à Prefeitura de São Paulo. Vai ficar esperando a nova eleição? É muito tempo sem cargo.

E a fusão PSDB-DEM?
Você tem mais dinheiro, mais tempo de TV, mais poder de chantagem, mais votos no Legislativo. Você pode chantagear melhor o Executivo. Mas, em compensação, você tende a aumentar a confusão interna. É mais gente disputando o poder e mais alas. Se o partido não surge de um impulso da própria sociedade, a confusão aumenta. Eu não sei como vão dividir, quem é que vai mandar.

E o papel do Aécio? Ficou mais complicado com o evento no Rio, a recusa ao bafômetro, a carteira vencida?
Seguramente o cacife dele baixa bastante. Para um candidato que tem um comportamento de playboy conta muito mal. Porque o presidente da República tem que aparentar responsabilidade, seriedade. Não dá para ficar passeando em alta velocidade e se recusar a cumprir certos rituais, como o bafômetro, ter carteira de motorista em dia. Proceder dessa maneira é dizer: estou acima da lei. Isso em campanha vai ser jogado contra ele. Pioraram muito as chances dele: depois desse episódio terá mais dificuldade para agrupar o PSDB. O Aécio teria de fincar um pé em São Paulo. Ele não consegue. Você não pode ser uma liderança nacional se não conquista São Paulo.

Isso não beneficia Serra? Por que ele está tão calado? Não seria hora de ele, que galvanizou tantos votos há poucos meses, tomar a frente do partido e botar ordem na casa?
Teoricamente, concordo com você. Mas não tenho a menor ideia de por que ele está tão calado. É possível que tenha ficado um pouco abatido com a derrota.

Quem botará ordem na casa?
Em princípio seria o Serra. Mas ele vai encontrar um obstáculo, que não é nada bobo: o Alckmin. Alckmin é muito esperto. Sabe se conter, não é tão açodado assim.
O que deveria ter acontecido seria o surgimento de uma liderança forte, nacional, com mais ou menos 50 anos, com experiência, que se dispusesse a viajar pelo Brasil, ficar conhecido, ganhar apoios locais dos caciques, dos pequenos caciques locais. Mas isso não apareceu.

PSDB: a hora tardia da reflexão política – por Luis Nassif

Por mais que tente analisar, não consigo ver futuro no PSDB. Haverá o PSDB de Alckmin e o de Aécio, mas não o PSDB nacional, como alternativa de pensamento e poder.
O que Leôncio coloca em sua entrevista é uma espécie de neossebastianismo intelectual: um cavaleiro que surgirá no horizonte no seu cavalo branco, armado de ideias e de liderança, ou quem sabe um El Cid Campeador, e ressuscitará o partido.
Não é assim.
Embora não tivesse militância, como o PT, o PSDB que chegou ao Real era fruto de circunstâncias históricas únicas. Eram os combatentes da ditadura que, em determinado momento, fugiram do fisiologismo do PMDB.
Naquelas circunstâncias, o partido passou a ganhar adeptos na sociedade civil. Não apenas a mídia, sua maior aliada, mas setores modernos, de diversos segmentos econômicos e sociais.
No meu livro "Os Cabeças de Planilha" escrevo sobre vários temas de modernização, sementes plantadas nos anos 80 e 90, que começam a florescer nos anos 90. A questão da descentralização, do estado enxuto (porém forte), dos programas de qualidade, da inovação, a herança da Constituinte, criando cidadãos, definindo recursos obrigatórios para saúde e educação etc.
FHC tornou-se o receptador automático de todas essas ideias, porque, depois dos problemas dos governos Sarney, Collor e Itamar, pela primeira vez parecia-se ter um governo racional. Para ele convergiram as esperanças dos setores racionais do país, segmentos técnicos, universitários, pessoal de inovação, gestão, saúde, meio ambiente, novas ONGs desenvolvendo tecnologias sociais.
A visão do Leôncio – de que ideias brotam do nada – é inexplicável para alguém que era apresentado como do exército intelectual de FHC. A rigor, FHC não desenvolveu um só tema modernizante. Limitou-se a ficar em estado de êxtase com o sucesso do real, repetindo bobagens como "uma nova Renascença chegando", sem conseguir coordenar o exército que se apresentava.
Esse momento, mágico, único, foi jogado fora por FHC e mais ainda por esse enorme blefe chamado José Serra.
Quando Serra foi eleito, escrevi um artigo dizendo que ou ele rompia com o fernandismo e inaugurava o serrismo (modo de dizer que seria fundamental a reciclagem de ideias no PSDB) ou desapareceria. Ele me ligou e disse que era amigo de FHC e jamais romperia com ele. Eu falando de princípios programáticos e ele pensava nas relações pessoais – típicas do compadrio da tradição social e política brasileira mais atrasada.
Até pouco tempo atrás, eram tucanas as melhores cabeças na área de inovação e universidade. Geraldo Alckmin jamais conseguiu aproveitá-las, por não ter visão sobre o tema. Quando Serra entrou, imaginei que faria uma revolução na economia paulista, trazendo as ideias desses quadros. Que nada! Um dia encontrei um dos principais militantes da inovação, serrista de primeira hora. Perguntei: e aí? E ele: não dá, o homem tem raiva da Universidade.
Até 2002, o PT não tinha conseguido se apossar ainda de nenhuma das bandeiras modernizantes. Mas tinha a bandeira mais forte: o aprofundamento das políticas sociais, a reação contra a fome e a miséria, resultantes óbvias do processo de cidadania deflagrado pela Constituinte e da extraordinária insensibilidade social no discurso público de FHC.
Agora se entra em novo tempo político e econômico em que se percebe o desenvolvimento como algo sistêmico. E o PSDB ingressa sem votos, sem quadros e sem a menor condição de ser o receptador das novas ideias: todas ficaram com os governos Lula e Dilma, na passagem do PT de oposição a governo.
Inovação? O Ministério de Ciências e Tecnologia de Sergio Rezende e Aluizio Mercadante levaram os melhores quadros. Gestão? Dilma é a gestora e tem como assessor de luxo Jorge Gerdau. Desenvolvimentismo? Os irmãos Mendonça de Barros tentaram lançar a bandeira, quando montaram sua revista, mas não houve nenhuma repercussão nas hostes tucanas. Hoje os desenvolvimentistas estão no governo Dilma.
E Dom Sebastião FHC fala genericamente em conquistar a nova classe média que está se formando. Conquistar como? No gogó?
Essa conquista, a formação de princípios programáticos se dá na prática, na criação de políticas específicas que tragam resultados. É essa soma de ideias, em cada setor, que comporá o desenho final de partido. Não há necessidade de formulações abstratas. O que se exige é clareza sobre algumas ideias básicas, que ajudem e consolidar a percepção geral sobre o partido, mas apenas após aparecerem resultados dessas políticas específicas.
E quais são as ideias-forças atuais? Inclusão social, o sonho do suposto destino manifesto de grande potência, a transição do modelo financista para o desenvolvimentista (sem abrir mão dos benefícios de um mercado de capitais desenvolvido), a integração regional, o aprimoramento da gestão pública.
O PT ampliado tem as bandeiras, os quadros técnicos, a militância.
E alguém acha que um partido de proveta como o PSD irá conseguir repetir a saga do velho PSDB? E alguém acha que o PSDB atual conseguirá renascer das cinzas em circunstâncias que nada têm mais a ver com as que motivaram sua criação?
No período de abundância o partido não criou quadros, não criou militância, não criou um modo de governar. Era um caciquismo permanente e a arrogância de quem se julgava portador das grandes verdades. Não será agora, dividido, sem ideias, sem militância, que conseguirá.
Como disse José Sarney antes das eleições, a nova oposição sairá das entranhas da situação.

Os impasses do PSDB - 2 – por Bento (blog do Nassif)

Deveriam corrigir a chamada da entrevista para "cientista político próximo de Serra". A análise do sujeito é tão rasa e chapa-branca em relação a seu mentor que beira o ridículo. Às poucas perguntas objetivas e que realmente demandam seu conhecimento técnico, tais como os efeitos de fusões partidárias, o sujeito responde com "não sei", "pode ser". Já às questões mais complexas e que beiram um exercício de adivinhação, tais como o futuro do PSDB, ele responde de imediato e sem embasamento algum.
Senão vejamos. O analista diz que o PSDB é moderno que FHC modernizou a política do país, mas logo depois cobra do partido como se comporte como máfia siciliana - só pode haver um capo di tutti capi, senão dá bagunça.
Uma hora diz que o partido precisa ter inserção nacional e na outra critica a ascensão de lideranças como Aécio e Alckmin porque "só pode haver um chefe" (referindo-se a Serra como se ele fosse de fato chefe de alguma coisa hoje além da meia dúzia de asseclas tucanos de sempre e de Kassab, que de resto vai acabar perdendo o controle até de seu próprio partido se continuar a fazer o jogo de seu mentor paulista).
Chega ao cúmulo de afirmar que o PSDB carece de liderança intelectual, jogando FHC para escanteio de vez, ao invés de pelo menos lembrar a recente iniciativa dele, ainda que desastrada, de dar alguma coerência temática ao partido. Chega ao cúmulo de falar que o partido está perdendo estados - se tem uma coisa que o PSDB não perdeu, foram eleições estaduais, ainda que os governadores do eixo centro-sul estejam mais preocupados (por motivos óbvios) em manter uma boa relação com o governo federal para tocar obras do que em se meter nessas brigas fratricidas que dizem respeito unicamente ao PSDB paulista.
Que o PSDB está enfraquecido é óbvio, mas daí a dizer que o partido está a beira da morte ou de se tornar uma legenda "maldita", nem mesmo na cabeça do mais cândido dos petistas de SP isso faria sentido.
Essa tese da morte iminente do PSDB - e por conseguinte, da oposição - é balela e, de resto, só interessa a uma pessoa neste país: José Serra. É a ele que interessa essa tolice de que alguém tem que tomar as rédeas do PSDB, como se partidos políticos numa democracia fossem cavalos ensandecidos que só podem ser controlados pelo pulso firme de um líder inconteste.
O que está acontecendo com o PSDB é algo que já deveria ter acontecido há muito tempo, pois é ótimo para o partido (e, cada vez mais, também essencial): a transferência de poder dentro da legenda para outros Estados e o enfraquecimento relativo do sempre superdimensionado braço paulista do partido.
Não se vê em qualquer outro Estado movimentação de tucanos como essa para o PSD em SP - no restante do país, é o DEM quem está sangrando. Mas, por algum motivo, querem transformar a crise do PSDB paulista em crise nacional e falência generalizada da oposição.
Sim senhor, ela pode virar sim uma crise de proporções mostruosas, se a vontade da mídia e desse grupo cada vez mais minoritário dentro do PSDB triunfar e, como sugeriu a jornalista, Serra tome as rédeas do partido. Daí realmente não haverá mais espaço para a oxigenação tão necessária ao partido. Mas no final das contas, vai ver é exatamente isso que esse pessoal quer.

Os impasses do PSDB - 3 - por Daniel Diniz (blog do Nassif)

Pode ser tudo isso, mas tenho pra mim que um relevante deflagrador da crise contemporânea do PSDB está lá atrás, no momento de seu máximo sucesso.
O PSDB chegou ao poder muito cedo, com apenas seis ou sete anos de existência. Ainda não havia governado nada, excetuando uma ou outra prefeitura (se não me engano), não havia passado por momentos de depuração partidária (como o PT nos anos 1980, como no caso da eleição de Tancredo, etc).
Ao lado disso, foi sendo sistematicamente abençoado por uma mídia simpática aos seus quadros e suas idéias. Ainda há de se escrever, historiográfica e corretamente, sobre o deslumbramento real da imprensa com FHC. Muito se fala que havia interesses, etc. Havia, claro. Mas havia um enorme otimismo em relação ao seu governo e sua figura. Mesmo no final do seu segundo governo, ainda se suspirava pela falta que aquela inteligência e fina estampa fariam. FHC encarnava muito fielmente o sonho cosmopolita daquela elite, inclusive na imprensa. Pois bem. Ao lado disso, havia o PSDB real, conchavado com o PFL, que cresceu, entre 1994 e 1998, de forma assustadora.
, atualmente, foi muito hábil na tendência ao inchaço que todo o partido tem quando chega ao governo. O PT cresceu sim, mas não inchou. Antes, fez inchar os coligados. O PT implodiu e reorganizou todos os seus coligados - do que o maior e mais completo exemplo é o próprio PL que lhe foi vice em 2002 e do qual nada sobrou em pé.
O PSDB, conquanto tenha também permitido o crescimento tangencial de seus coligados, inchou mais que todos eles. Não havia canto do país sem um prefeito do PSDB - que geralmente tinha origem na Arena, etc, etc. Completamente deslumbrado com o súbito crescimento, o partido tornou-se refém de um jogo em que, grau a grau, perdeu o controle. Uma coisa é FHC subir no palanque com ACM no interior da Bahia em 1994, para garantir uma vitória naquela eleição e impor sua agenda modernizante.
Outra, muito diferente, eram os inúmeros coronéis e assemelhados espalhados pelo Brasil profundo mantendo suas estruturas coronelistas aliados ao governo pretensamente modernizante. Ludibriado pela idéia de 20 anos no poder - que hoje o partido critica no PT mas que Sérgio Motta defendia para os tucanos - o PSDB aceitou lenientemente todo o tipo de quadro, qualquer tipo de crescimento.
Ao lado disso, e também daqueles tempos, determinada arrogância de FHC - inclusive aqui mesmo no Nassif tão bem diagnosticada - que não podia facilmente aceitar alguém a lhe fazer sombra.
É fato que o PT hoje, sobretudo após o mensalão, tem poucos quadros nacionais com capilaridade e viabilidade eleitoral; contudo, também é fato que Lula soube e, possivelmente, saberá, operar o milagre de forjar esse quadro do nada se preciso for (o que a eleição de Dilma parece confirmar). E, atente-se, aceitando e açulando a noção de que o outro poderia ser muito melhor que ele próprio.
O PSDB de FHC, inclusive por meio do que gostava de transparecer o próprio ex-presidente, parecia ter sido o melhor que os tucanos poderiam oferecer; o PT de Lula sempre buscou sublinhar, inclusive por meio da fala do próprio Lula, que iniciava-se em Lula uma fase especial que ainda prometia muito.
Inchado artificialmente em nível muito além do controlável e sem uma liderança internamente construída para fazer frente aquilo que partido, imprensa e classe média tradicional consideraram a fase de ouro do governo federal brasileiro, o PSDB, na medida em que afastou-se do poder (e sem pra ele conseguir retornar eleição após eleição) viu minarem os quadros que, originariamente para ele acorreram no calor do primeiro governo.
Já na última eleição presidencial tornava-se claro: sobraram apenas os fundadores, mais uma meia dúzia que chegou depois e que ajuntou-se a um dos lados para construir a face mais agressiva da campanha de 2010. Era natural portanto que, queimada toda a gordura acumulada em oito anos de governo nos oito de oposição, sobrasse ao PSDB real (o dos fundadores) se desarticular por completo pois já estava sem gordura e, o principal, sem um novo FHC.
A entrevista de Leôncio Martins parece clara: não se considera, fora de Minas, um Aécio lider. Nem Serra ou Alckmin de fato. Não há um novo FHC; talvez por isso o choro isolado do ex-presidente em artigos que ora exortam uma oposição ideologicamente morta ora lamuriam um governo que em nada se parece com o seu.
O PSDB acabou. Assim como o DEM. O que virá em seus lugares? O PSD? Kassab aprofundou uma política higienista em São Paulo; Kátia Abreu é a principal liderança contra a reforma agrária no país e os Borhausen, bem, dispensam comentários. Ou seja, quando se pensa que a coisa vai melhorar, é aí que piora tudo mesmo.

Comentário


De fato, o PSDB tinha tudo em 1994, tudo pra fazer um ótimo governo. Porém, Fernando Henrique Cardoso acabou se transformando, junto com Fernando Collor e Arthur Bernardes, num dos três piores presidentes da história do Brasil. É impressionante. FHC conseguiu fazer o mais difícil.

Hoje, de fato, o partido nada mais é do que um projeto de poder. Talvez, (apenas talvez) em algum momento, não tenha sido. Alguém de boa vontade pôde ter sido enganado, mas há muito, desde o deslumbramento de FHC na presidência, não há nada, absolutamente nada que preste no PSDB em termos de ideias, projetos, gestores. Nada.

Como poderia ter defensores fora da mídia, se toda a ideologia por eles defendida, o famoso consenso de Washington, fracassou clamorosamente em todos os países em que foi implementado. Todos os países – na ordem e evolução que tais políticas foram implementadas – foram quebrando: México, Rússia, Tigres Asiáticos, Uruguai, Brasil, Argentina, etc.

Tudo que FHC fez, tudo que defendeu, terminou de ser enterrado com o crash da bolsa em 2008. Acabou. Não há mais o que debater, não há mais como sequer tentar argumentar sobre o neoliberalismo implementado pelos tucanos: o mesmo foi sepultado pela história.

O PSDB somente subsiste por causa de seus insaciáveis aliados na mídia. E, vejam bem, como a mídia ajudou este partido. Mesmo com todo apoio, com toda a puxação de saco, com todas as críticas feitas à esquerda e ao PT (mesmo quando estes eram somente oposição), toda a rasgação de seda em favor de FHC, e qual é o resultado? Você entra num comércio, num supermercado, num ônibus, e pronuncia as palavras Fernando Henrique Cardoso, e logo os mais variados palavrões são pronunciados para descrevê-lo.

Não é à toa.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Só choveu na horta da Kátia - por Leandro Fortes (CartaCapital)

A senadora Kátia Abreu, do Tocantins, era um dos orgulhos do DEM até se bandear para o recém-criado PSD, do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, do qual, inclusive, poderá ser a primeira presidenta. Enquanto era um dos expoentes do ex-PFL, Kátia aproveitou-se como pôde da sigla. Nas eleições de 2010, criou uma falsa campanha nacional para, via caixa do partido no Tocantins, arrancar dinheiro de produtores rurais em todo o Brasil e eleger o filho, Irajá Abreu (DEM-TO), para a Câmara dos Deputados, e outros nove deputados estaduais para sua base política local. Tudo sem que a direção nacional do DEM tivesse conhecimento.


A ideia de convocar os “cidadãos e militantes” do agronegócio Brasil afora para bancar a campanha dos ruralistas foi posta em prática graças à capilaridade e ao poder econômico da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), presidida pela senadora. De posse do cadastro da instituição, ela usou o serviço de mala direta para mandar boletos bancários de 100 reais cada, a fim de garantir recursos extras para a eleição e reeleição de candidatos ruralistas. Nas eleições de 2010, a senadora coordenou as finanças da campanha do candidato José Serra, do PSDB, à Presidência. Ou seja, usou uma entidade de classe para fazer política partidária. Oficialmente, a CNA “atua na defesa dos interesses dos produtores rurais brasileiros junto ao governo federal, ao Congresso Nacional e aos tribunais superiores do Poder Judiciário, nos quais dificilmente um produtor, sozinho, conseguiria obter respostas para as suas demandas”.


A questão não se resume apenas a um dilema ético-institucional. Para convocar os produtores a bancar as campanhas dos ruralistas, Kátia Abreu tornou-se protagonista de um vídeo de 1 minuto e 32 segundos, ainda disponível no YouTube, intitulado “Ajude-nos nessa missão”. O programa foi criado para ser veiculado, na internet, dentro do site www.agropecuariaforte.com.br, atualmente fora do ar, produzido pela equipe da senadora para divulgar as agendas de campanha dos candidatos ruralistas e os interesses dos latifundiários a serem defendidos durante as eleições passadas.


O mais interessante é que, a certa altura do vídeo, a senadora apela aos produtores para “garantirmos a presença, no Congresso Nacional, de parlamentares dispostos a assumir, sem medo, as grandes causas do campo”. Para tal, conclama a todos a “eleger e reeleger” deputados e senadores ligados ao agronegócio “independente (sic) do estado ou do partido”.


Em seguida, explica que todo o dinheiro doado seria depositado “em conta exclusiva do meu partido”, para, segundo ela, “ter mais controle sobre a arrecadação”. A tal conta exclusiva pertencia ao diretório regional do DEM do Tocantins, do qual ela, por coincidência, era também presidenta. De fato, ela manteve total controle sobre a arrecadação.


De acordo com o site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 6.485 eleitores atenderam ao pedido da senadora e lá depositaram 648,5 mil reais. Outras 330 empresas também atenderam ao apelo e, juntas, doaram outros 66 mil reais para a campanha a favor da “agropecuária forte”. Acontece que o dinheiro irrigou somente a horta da turma tocantinense de Kátia Abreu. Os demais candidatos defensores do agronegócio no resto do País nunca viram brotar um só centavo em suas contas de campanha.


Ainda segundo o registro do TSE, feito a partir da prestação de contas do diretório do DEM em Palmas, revela-se que somente dez candidatos receberam recursos oriundos do fundo ruralista criado pela parlamentar: nove deputados estaduais do Tocantins, que formam a base da senadora no estado, e seu filho Irajá Silvestre Filho, deputado federal eleito. Para facilitar a eleição do rebento, a mãe conseguiu, inclusive, mudar o sobrenome dele: o jovem passou a chamar-se, nas eleições passadas, Irajá Abreu. Dos 1,4 milhão de reais arrecadados pelo DEM do Tocantins (dos quais 714 mil reais vieram da campanha de Kátia Abreu), 200 mil reais foram para a campanha de Irajá Abreu.


Titular da Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados, onde atua como lobista do latifúndio nacional, Irajá Abreu chegou a ser autuado, em Palmas, por desacatar policiais militares, após ser multado por se recusar a retirar o carro de um estacionamento privativo de táxis. “Quem é você para me pedir documentação?”, bradou o filho da senadora para o PM que o interpelou. No episódio, o jovem ruralista, de 27 anos, ficou tão furioso que foi preciso chamar reforço policial para contê-lo.


Ao saber da história por CartaCapital, a direção nacional do DEM mostrou-se surpresa. De acordo com a assessoria de imprensa da sigla, o partido chegou a ser consultado, no ano passado, da viabilidade de se montar a tal campanha de arrecadação para candidatos ruralistas. Kátia Abreu, informa a direção do partido, foi “expressamente” desautorizada a fazê-lo. Internamente, avaliou-se que esse tipo de arrecadação poderia causar problemas na Justiça Eleitoral. Ainda assim, a senadora levou o projeto adiante, sem o conhecimento do partido e sem jamais ter prestado conta do dinheiro arrecadado.


Apenas pelo site do TSE foi possível à direção nacional do DEM descobrir que o dinheiro da campanha “Ajude-nos nessa missão” foi distribuído para apenas quatro outros candidatos do partido no estado, além do filho da parlamentar. Os beneficiados foram Darlom Jacome Parrião, Antonio Poincaré Andrade Filho, Maria Auxiliadora Seabra Rezende e Silas Rodrigues Damaso. Também receberam apoio Amélio Cayres de Almeida, Wilmar Martins Leite Júnior e José Bonifácio Gomes de Souza, filiados ao PR, Ailton Parente Araújo (PSDB) e Gerônimo dos Santos Lopes Cardoso (PMDB). Kátia Abreu não atendeu aos pedidos de entrevista.

Comentário
Esta é a cara, o resumo deste“novo” partido, o PSD.

A blindagem do crime econômico - por Fausto M. De Sanctis (Valor Econômico)

O Senado Federal aprovou, em 7 de abril, o substitutivo ao Projeto de Lei nº 111, de 2008, da Câmara dos Deputados, que altera dispositivos do Código de Processo Penal (CPP) relativos a medidas cautelares como a prisão processual, a fiança e a liberdade provisória. A proposta, que na Câmara tramitou sob o número 4.208, cria medidas alternativas à prisão preventiva - mantida, porém, a prisão especial para autoridades e determinados profissionais.
O texto, que agora depende apenas da sanção da presidente Dilma Rousseff para entrar em vigor após 60 dias, consagra, no que se refere aos presos, o monitoramento eletrônico mediante concordância, a proibição de frequentar determinados locais ou a de se comunicar com certas pessoas e o recolhimento em casa durante a noite e nos dias de folga. A prisão, de fato, só se aplicará aos crimes considerados "de maior potencial ofensivo", ou seja, aos crimes dolosos com pena superior a quatro anos ou nos casos de reincidência. Além disso, o projeto aprovado amplia os casos de concessão de fiança.
Alardeia-se que essas alterações no Código de Processo Penal diminuiriam o índice de presos provisórios existentes no país, que hoje chegaria a 44% da população carcerária atual. De fato, sua aprovação afastaria a possibilidade de prisão nos casos de crimes graves consumados, como o crime de quadrilha ou bando; autoaborto; lesão corporal dolosa, ainda que grave; maus tratos; furto; fraude; receptação; abandono de incapaz; emprego irregular de verbas públicas; resistência; desobediência; desacato; falso testemunho e falsa perícia; todos os crimes contra as finanças públicas; nove dos dez crimes de fraudes em licitações (o remanescente tentado), contrabando ou descaminho.

Com a vigência da norma, a prisão estará praticamente inviabilizada no país
O projeto aprovado no Congresso Nacional também prevê o descabimento da prisão nos crimes tentados de homicídio, ainda que qualificado; infanticídio; aborto provocado por terceiro; lesão corporal seguida de morte; furto qualificado; roubo; extorsão; apropriação indébita, inclusive previdenciária; estupro; peculato; corrupção passiva, advocacia administrativa e concussão; corrupção ativa e lavagem de dinheiro. Também estariam afastados da prisão os autores de crimes ambientais e de colarinho branco - sejam consumados ou tentados - e ainda parte dos crimes previstos na Lei de Drogas, inclusive os casos de fabricação, utilização, transporte e venda tentados.
Em outras palavras, a prisão estará praticamente inviabilizada no país, já que se exige a aplicação, pelo juiz, de um total de nove alternativas antes dela, restringindo-a sensivelmente. O legislador resolveu "resolver". O crime econômico e financeiro, em quase toda a sua extensão, ficou de fora. Aos olhos do legislador, o crime econômico não seria grave. Seria correta a concretização de um garantismo que nem o jurista e filósofo italiano Luigi Ferrajoli seria capaz de idealizar? Seria o direito penal do amigo? Por outro lado, o Congresso manteve a prisão em condições especiais para autoridades e para os detentores de diploma de curso superior. Temeu excesso de poder - preocupação, aliás, que não se observa para os que não detenham a benesse processual.
Se o projeto aprovado for sancionado e se tornar lei, vislumbra-se um processo penal de secessão, que representará um meio certo de alcançar um resultado, longe, no entanto, de constituir um instrumento legítimo. Trabalhar-se-ia com a ideia de que se não é bem entendido, não se reage, consuma-se e fulmina-se. O argumento de que "sempre foi assim" não pode paralisar o indivíduo e a sociedade e instrumentalizar o legislador. Exige-se uma forma de agir que nasça no âmbito de cada um, refletindo no tecido social e político, no qual "servir" dê o tom e não "ser servido". Deferência aos atributos de honestidade, exemplaridade e respeito.
A democracia concretiza-se apenas quando quem toma decisões o faz em nome do interesse de todos. Educação, consciência cívica e cultura da licitude hão de ser a base para a virada real do país rumo ao futuro que desejamos, no qual as pessoas tomam a luta para si e sirvam de exemplo. Um lugar onde aves de rapina não mais encontrarão farelos humanos. O progressivo entendimento passa a ser senso comum. Aí sim a prisão cautelar encontrará o tratamento necessário. Um instrumento que, embora lamentável, é útil. E, principalmente, destinado aos graves crimes sem exceção, sujeitando todas as pessoas, independentemente do status econômico, social ou político.