sábado, 28 de julho de 2012

Abertura dos jogos olímpicos - por Terra (fotografia)

Serra e a imagem do PSDB - 2 - por Carlos Cunha (Blog do Nassif)

O PT surgiu como a extrema esquerda. Não que fosse, mas se posicionava como tal. Lembro em 1982 que usar as estrela vermelha de plástico era um sinal de extremismo, de reformas, quase de revolução. E historicamente o PT foi isso, talvez até não por sua ideologia mas como forma de se posicionar distante dos outros. Foi contra qualquer avanço que não fosse por ele pensado ou apropriado.

Lembro como nos deliciávamos com a lenda que no início do primeiro mandato dos deputados federais o Lula teve que comprar gravatas para todos.

Mas não foi este PT que chegou ao poder, para bem e para mal.

O Lula eleito em 2002 não era o mesmo Lula de 1982, visivelmente nos detalhes que você trouxe. O terno Ricardo Almeida, a barba muito bem aparada, a voz mais baixa e pausada. Não vejo o menor problema nisso, mas são os detalhes do que você falou.

O PSDB não foi construído para ser o contraponto do PT. Naquela época o PT era um partido utópico restrito a um grande líder e um bando de idealista com estrelas pequenas na camisa. A primeira capital com prefeito petista foi Fortaleza e a prefeita não ficou petista muito tempo.

O PSDB foi construído para ser o que o PT é hoje, um partido de centro esquerda. Sem revoluções, com poucas utopias. Por isso eles se vestiam como os políticos petistas se vestem hoje. Sem radicalismos, mesmo dos petistas mais velhos, que já foram radicais. Os radicais de verdade saíram do PT.

Talvez a transformação estética demonstre também esta transformação ideológica.

O problema foi que o governo do PSDB caiu no colo do FHC, que, como bom intelectual de segunda, era extremamente vaidoso. Oito anos de governo e algumas perdas de líderes mais a esquerda permitiram que FHC moldasse o PSDB pelos seus critérios.

Porém, isso deixou espaço para o PT assumir sua posição atual. Não convém discutir aqui se o governo do PT foi diferente do que o do PSDB. Convém mostrar que o PT assumiu exatamente este lugar de centro esquerda. Dialoga e se alia a atores políticos com os quais não ficaria num mesmo cômodo há vinte ou dez anos.

O maior erro do PSDB foi assumir o caminho da direita sem lutar. Foi permitir que o PT assumisse o discurso da divisão entre esquerda – juntos com o povo – e direita – contra o povo – que é tão repetido aqui. Assim, assumiu duas marcas muito difíceis para um partido político no Brasil: ser de direita e ser contra o povo.

Bem agora a parte do seu post, mais interessante.

Você está certo ao colocar a falta de representação da sociedade no PSDB. O partido envelheceu e foi incapaz de permitir novos nomes que pudessem assumir uma bandeira diferente. Mas isso não é um problema apenas dele, basta ver o PT em São Paulo. Lula percebeu que o problema do PT em São Paulo não era o povo de São Paulo – como alguns acreditam aqui – mas sim o PT de São Paulo. A mesma resistência ao novo que mantém o PSDB refém do Serra mantinha o PT paulista refém da Marta Suplicy. Como Mercadante era inofensivo, a rainha seria candidata pela terceira vez se Lula não assumisse com todo o seu peso a estratégia da eleição.

O problema é que enquanto Lula entendeu isso, FHC fica se olhando no espelho PSDB e acha feio todo o resto.

O pior é que sua análise da tentativa do Serra em virar "novo" é perfeita e mostra que alguns no PSDB já entenderam a necessidade do novo. Mas falta um Lula para obrigar os velhos a largarem o osso.

Libélula - por Denis Tolkishevsky (Coolvibe - Arte digital)

Sobre Serra - 1 - por JB Costa (Blog do Nassif)

Serra é um político mesquinho e covarde. Por que não vem à público debater? Não pede espaço onde se acha atacado para colocar seus pontos de vista? Ora, eu mesmo respondo: porque não os tem; porque resmungos, frases de efeitos e, principalmente, auto-referências não são argumentos nem idéias.

Serra é um fiasco. Pode ascender os maiores postos dessa nação e até mesmo o papado, se isso fosse possível, mas não passará de um ressentido, medíocre e resmungão. É um daqueles personagens que popularmente costuma de definir como "nascido de bunda para a Lua". Chegou aonde chegou menos por força de seu talento, trabalho ou qualquer outro valor intrínseco e, sim, por sempre encontrar terrenos aplainados. Até a fase mais aguda ou supostamente heróica na qual foi para o exílio, hoje à luz de análise mais rigorosa não pareceu tanto.

Como estou na fase de reposicionamentos faço hoje mais um: nunca escondi minha ojeriza para esse senhor, tanto pessoal como política; sempre o tive como um medíocre metido à besta. Entretanto, em várias ocasiões, algumas aqui neste blog, resguardava seu caráter democrático, ou seja, não via na sua nefasta figura pendores totalitários. Hoje me penitencio por esse equívoco. Serra tem, sim, postura e índole de ditador. Democracia na sua boca soa como vitupério. Cínica e hipócrita é o arrazoado que consubstancia essa ação a desfavor de dois jornalistas tradicionais e reconhecidamente competentes deste Brasil. O que está por trás dela é o mais puro instinto de perseguição de quem não tolera ser questionado.

Ai de nós, ai de nós, repito, se essa lástima tivesse sido eleito presidente da República.

Concurso NatGeo Traveler de fotografias 2012 - por Kamil Tamiola


Um aventureiro sobe os túmulos congelados do interior de uma caverna de gelo do cume alpino e está 3.800 metros acima do nível do mar.
(Fonte: blog do Nassif)

A blogofobia de José Serra - por Leandro Fortes (Brasília, eu vi)

A blogosfera e as redes sociais são o calcanhar de Aquiles de José Serra, e não é de agora. Na campanha eleitoral de 2010, o tucano experimentou, pela primeira vez, o gosto amargo da quebra da hegemonia da mídia que o apóia – toda a velha mídia, incluindo os jornalões, as Organizações Globo e afins. O marco zero desse processo foi a desconstrução imediata, on line, da farsa da bolinha de papel na careca do tucano, naquele mesmo ano, talvez a ação mais vexatória da relação imprensa/política desde a edição do debate Collor x Lula, em 1989, pela TV Globo. Aliás, não houvesse a internet, o que restaria do episódio do “atentado” ao candidato tucano seria a versão risível e jornalisticamente degradante do ataque do rolo de fita crepe montado às pressas pelo Jornal Nacional, à custa da inesquecível performance do perito Ricardo Molina.

A repercussão desse desmonte midiático na rede mundial de computadores acendeu o sinal amarelo nas campanhas de marketing do PSDB, mas não o suficiente para se bolar uma solução competente nas hostes tucanas. Desmascarado em 2010, Serra reagiu mal, chamou os blogueiros que lhe faziam oposição de “sujos”, o que, como tudo o mais na internet, virou motivo de piada e gerou um efeito reverso. Ser “sujo” passou a ser um mérito na blogosfera em contraposição aos blogueiros “limpinhos” instalados nos conglomerados de mídia, a replicar como papagaios o discurso e as diatribes dos patrões, todos, aliás, alinhados à campanha de Serra.

Ainda em 2010, Serra tentou montar uma tropa de trolls na internet comandada pelo tucano Eduardo Graeff, ex-secretário-geral do governo Fernando Henrique Cardoso. Este exército de brucutus, organizado de forma primária na rede, foi facilmente desarticulado, primeiro, por uma reportagem de CartaCapital, depois, por uma investigação do “Tijolaço.com”, blog noticioso, atualmente desativado, do ministro Brizola Neto, do Trabalho.

Desde então, a única estratégia possível para José Serra foi a de desqualificar a atuação da blogosfera a partir da acusação, iniciada por alguns acólitos ainda mantidos por ele nas redações, de que os blogueiros “sujos” são financiados pelo governo do PT para injuriá-lo. Tenta, assim, generalizar para todo o movimento de blogs uma realidade de poucos, pouquíssimos blogueiros que conseguiram montar um esquema comercial minimamente viável e, é preciso que se diga, absolutamente legítimo.

Nos encontros nacionais e regionais de blogueiros dos quais participo, há pelo menos três anos, costumo dar boas risadas com a rapaziada da blogosfera que enfrenta sozinha coronéis da política e o Poder Judiciário sobre essa acusação de financiamento estatal. Como 99% dos chamados blogueiros progressistas (de esquerda, os “sujos”) se bancam pelo próprio bolso, e com muita dificuldade, essa discussão soa não somente surreal, mas intelectualmente desonesta. Isso porque nada é mais financiado por propaganda governamental e estatal do que a velha mídia nacional, esta mesma que perfila incondicionalmente com Serra e para ele produz, não raramente, óbvias reportagens manipuladas. Sem a propaganda oficial do Banco do Brasil, da Caixa Econômica Federal e da Petrobrás, todos esses gigantes que se unem para defender a liberdade de imprensa e expressão nos convescotes do Instituto Millenium estariam mendigando patrocínio de açougues e padarias de bairro para sobreviver.

Como nunca conseguiu quebrar a espinha dorsal da blogosfera e é um fiasco quando atua nas redes sociais, a turma de Serra tenta emplacar, agora, a pecha de “nazista” naqueles que antes chamou de “sujo”. É uma estratégia tão primária que às vezes duvido que tenha sido bolada por adultos.

Um candidato de direita, apoiado pelos setores mais reacionários, homofóbicos, racistas e conservadores da sociedade brasileira a chamar seus opositores de nazistas. Antes fosse só uma piada de mau gosto.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Londres 2012 - por Terra


A saltadora australiana Sharleen Stratton treina no trampolim de 3 m.

Pitacos de Palmério Dória

Presidente paraguaio promete "tolerância zero" com ilegalidade: "Ilegal aqui, só eu".
*
O Maracanã tem o nome de um glorioso Filho; o Engenhão, de um bom filho ... ah, deixa pra lá.
*
A Rainha Vitória mandou tirar a Bolívia do mapa. A TV Globo tira a Olimpíada de Londres da programação. Isso é que é uma republiqueta.
*
Essas Olimpíadas são uma estratégia do lulopetismo para desviar a atenção da imprensa livre do julgamento do mensalão!
*
Pastor Estevam Hernandes estima que Marcha para Jesus reuniu 5 milhões. De dólares.
*
Serra, que afiou os caninos antes da campanha, quer abrir seu melhor sorriso na Transilvânia, onde vai gravar cenas pro horário eleitoral.
*
 Os EUA têm os atiradores que chacinam a esmo. Aqui nós temos a Rota.
*
Tudo sob controle: a PM de São Paulo mata 9 vezes mais que a polícia de todos os EUA.
*
Folha não sabe como tratar o norueguês Anders Breivik. Antes era "atirador". Agora é "ultradireitista". Terrorista, não. Tem olhos azuis.
*
Ao fim e ao cabo, Perillo é apenas mais um no Clube do Nextel.
*
TV Globo pode ser processada por sonegar notícias sobre Olimpíada de Londres.
*
Alckmin acha muito coerente o aumento de 45% na taxa de homicídios em julho: 45 é o número tucano.
*
Nuzman diz que o Brasil se prepara para a Olimpíada como potência. Mas a mão grande dele ainda é de Terceiro Mundo.
*
A situação da mídia gorda é desesperadora. Apela pra qualquer Roberto Jefferson que aparece.
*
Vera Fischer, mulher à prova de escândalo, explode amanhã no telão em Anjo Loiro, filme que a censura proibiu. Vera é a Xuxa sem culpa.
*
Rupert Murdoch deixa diretoria de jornais britânicos. Roberto Civita candidata-se ao lugar.
*
O secretário de Segurança de SP, Antônio Ferreira Pinto, tem mais o que fazer. Planejar a viagem a Tóquio com o filho pra ver o Corinthians.
*
Queda brusca de ciclistas no Rio. Thor voltou a dirigir.
*
FMI anuncia que economia brasileira acelera em agosto e crescimento chega a quase 5% em 2013. Quem pega a camisa de força da Míriam Leitão?
*
Aécio e Serra trocaram mensagem de congratulação pelo Dia do Amigo.
*
Presidente da Claro pede desculpas a clientes. Claro que os clientes não aceitam.
*
Candidatos tucanos fogem de FHC como o diabo da cruz. Mas seu amigo Ronaldo pode convidá-lo para a função de secretário trilíngue na Copa.
*
Atenção! Se avistar PM de SP a 1 km de distância, mesmo em dia de nevoeiro, erga as mãos, se entregue e peça que o leve à delegacia mais próxima.
*
Toffoli decidiu não se declarar impedido no julgamento do mensalão, mas antes vai ter que se entender com Eliane Cantanhêde e William Waack.
*
Dom Luiz Gonzaga, o Torquemada de Guarulhos, já foi despachado para o inferno, mas CNBB acha que aborto deve ser tema de campanha municipal.
*
Merval, além de acadêmico, coleciona quadros-negros: Demóstenes, Perillo, Arruda, Serra. Agora tá louco pra comprar um Álvaro Dias.
*
Folha troca “diretas-já” pela “direita-já".
*
Matusalém espera sentado entrada de Marta na campanha de Haddad. É questão de tempo.
*
Celso Amorim é um ministro sem defesa enquanto não mandar enquadrar o facínora que incentiva soldados a matar e torturar na rua do DOI-CODI.
*
Descobrimos no Fantástico, na entrevista-descarrego de Rosane, que Fernando Collor era íntimo de PC Farias. Meu Deus!
*
William Waack fez promessa a N.S. do Loreto, padroeira da aviação, que deixa de pilotar por 3 meses se Chávez, 15 pontos na frente, perder.
*
Até quando a grande imprensa vai ficar desfilando pelada quando todo mundo já viu os novos grampos do Policarpo e Veja?
*
Seria bem mais fácil acreditar que o importante são as crianças e adolescentes, e não o PIB, se o ministro da Educação fosse Darcy Ribeiro.
*
Novos grampos confirmam que Veja e Cachoeira não podem ser vendidos separadamente.
*
Lá se vai, Cachoeira abaixo, mais um presidenciável do PSDB e da mídia: Marconi Perillo.
*
Macumbeiros de Rosane Collor vão ser contratados para levantar audiência do programa de Fátima Bernardes.
*
Chifre é patrimônio. Devia ser declarado no IR, ensina Eike Maravilha. Mas Wilder Morais não o declara. Nem tampouco 2 shoppings em Goiás.
*
A matança em SP vai continuar. Não há como duvidar de um delegado chamado Jorge Carrasco, diretor do Departamento de Homícidios.
*
Quando é que Geraldo Alckmin assume o governo da Síria, ops, São Paulo?
*
FHC tem razão:"Gente importante pode fazer o que quiser e não paga o preço". Ele, por exemplo, está solto.
*
Karina Bacchi diz que posar nua foi ato de rebeldia contra imagem de boazinha. E todo mundo achando que era pra promover o piercing bem ali.
*
Grande imprensa diz que dom Eugênio escondeu 5 mil perseguidos políticos. 5 mil! Espero que apareça algum.
*
Epitáfio para dom Eugênio Sales: aqui jaz o capelão da ditadura.
*
Acredite se puder: o PSDB tem Comissão de Ética. Ora não me venham com Leréia!
*
Globo, Ricardo Teixeira e João Havelange. Tudo a ver.
*
Ciência decifrou o genoma da ancestral da banana. O do banana tá na cara do suplente de Demóstenes, que cedeu a mulher a Cachoeira.
*
Hobsbawn diz que Roosevelt não foi apenas um homem à frente de seu tempo. Foi um farol, iluminando o futuro. Algo assim como José Serra.
*
Stones abrem nova turnê cantando "Eu nasci há dez mil anos atrás".
*
FHC recebeu prêmio de US$ 1 milhão da biblioteca do Congresso dos EUA por serviços prestados a Tio Sam.
*
Imagine que a "tropa de choque" de Demóstenes era liderada pelo inefável Wellington Salgado, vulgo Pedro de Lara, homem de Sarney e Renan.
*
Força, William Waack! Você vai superar a falta de Demóstenes.
*
Ricardo Teixeira e Havelange receberam R$ 40 milhões de suborno, mas vão devolver à PM, seguindo exemplo dos sem-teto paulistas.
*
Demóstenes, ao sair do plenário, encontrou-se com Álvaro Dias: "Olá, eu sou você amanhã!"
*
Veja a meio-pau com a cassação de Demóstenes.
*
Lucifer está reclamando: "Que padre reaça é esse que chegou aqui?"
*
Depois do Paraguai, Álvaro Dias segue para os EUA em outra missão: dar uma força a Mitt Romney.
*
Tá certo que os tucanos se apunhalam uns aos outros, mas são unidos por um valor mais alto: uma irreprimível aversão ao povo.
*
"Num processo de multa de trânsito, o cidadão paraguaio tem 10 dias para apresentar sua defesa e mais 5 para recurso" -- Requião e o golpe.
*
Diogo Mainardi avisou que vem passar as férias aqui. A vigilância sanitária já foi avisada?
*
Serra evita bombardeio cirúrgico de bolinha de papel em primeiro dia de campanha.
*
Juquinha, ex-presidente da Valec e manda-chuva da Norte-Sul, engaiolado pela PF. Família Sarney em pânico. Agora só falta o Fernando.
*
Parafraseando comercial que a campanha de Obama bolou para Romney: "Serra acredita no Brasil e investe nas Ilhas Virgens Britânicas".
*
Shopping Higienópolis é podre de chique. Mais podre que chique.
*
Como a nova descoberta científica, os crentes mais sovinas podem dizer "Fica com uma partícula de Deus".
*
Negócio de ocasião: troca-se candidatura a prefeito de mentirinha de grande capital por qualquer Ministério dando sopa por aí.
*
Ferreira Gullar recita seus poemas em novo disco. Numa das faixas, "Agora eu já sey por que sou puxa-saco do Sarney".
*
Ali Kamel, William Waack e Merval Pereira estão na primeira leva do curso intensivo da Televisa: "Como se faz um presidente?"
*
Pelo que se viu no México, os golpistas da Televisa são muito mais criativos que os da Globo.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Arte digital (autor não encontrado)

Manifesto da antropofagia periférica – por Sérgio Vaz (Caros Amigos)

Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros.
A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade. Agogôs e tamborins acompanhados de violinos, só depois da aula.
Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a liberdade de opção. Contra a arte fabricada para destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da múltipla escolha.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar.
Do teatro que não vem do “ter ou não ter...”. Do cinema real que transmite ilusão.
Das Artes Plásticas, que, de concreto, quer substituir os barracos de madeiras.
Da Dança que desafoga no lago dos cisnes.
Da Música que não embala os adormecidos.
Da Literatura das ruas despertando nas calçadas.
A Periferia unida, no centro de todas as coisas.
Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais a arte vigente não fala.
Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala.
É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão. Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades. Um artista a serviço da comunidade, do país. Que armado da verdade, por si só exercita a revolução.
Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona.
Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à produção cultural.
Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril avantajado.
Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra eles ? “Me ame pra nós!”.
Contra os carrascos e as vítimas do sistema.
Contra os covardes e eruditos de aquário.
Contra o artista serviçal escravo da vaidade.
Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.

terça-feira, 17 de julho de 2012

O trem taverna - por Arnau Alemany (pintura)


Dom Eugênio Sales era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura - por José Ribamar Bessa Freire (Blog do Nassif)


No Blog Bob Fernandes

O tratamento que a mídia deu à morte do cardeal dom Eugenio Sales, ocorrida na última segunda-feira, com direito à pomba branca no velório, me fez lembrar o filme alemão "Uma cidade sem passado", de 1990, dirigido por Michael Verhoven. Os dois casos são exemplos típicos de como o poder manipula as versões sobre a história, promove o esquecimento de fatos vergonhosos, inventa despudoradamente novas lembranças e usa a memória, assim construída, como um instrumento de controle e coerção.

Comecemos pelo filme, que se baseia em fatos históricos. Na década de 1980, o Ministério da Educação da Alemanha realiza um concurso de redação escolar, de âmbito nacional, cujo tema é "Minha cidade natal na época do III Reich". Milhares de estudantes se inscrevem, entre eles a jovem Sônia Rosenberger, que busca reconstituir a história de sua cidade, Pfilzing – como é denominada no filme – considerada até então baluarte da resistência antinazista.

Mas a estudante encontra oposição. As instituições locais de memória – o arquivo municipal, a biblioteca, a igreja e até mesmo o jornal Pfilzinger Morgen – fecham-lhe suas portas, apresentando desculpas esfarrapadas. Ninguém quer que uma "judia e comunista" futuque o passado. Sônia, porém, não desiste. Corre atrás. Busca os documentos orais. Entrevista pessoas próximas, familiares, vizinhos, que sobreviveram ao nazismo. As lembranças, contudo, são fragmentadas, descosturadas, não passam de fiapos sem sentido.

A jovem pesquisadora procura, então, as autoridades locais, que se recusam a falar e ainda consideram sua insistência como uma ameaça à manutenção da memória oficial, que é a garantia da ordem vigente. Por não ter acesso aos documentos, Sônia perde os prazos do concurso. Desconfiada, porém, de que debaixo daquele angu tinha caroço – perdão, de que sob aquele chucrute havia salsicha – resolve continuar pesquisando por conta própria, mesmo depois de formada, casada e com filhos, numa batalha desigual que durou alguns anos.

Hostilizada pelo poder civil e religioso, Sônia recorre ao Judiciário e entra com uma ação na qual reivindica o direito à informação. Ganha o processo e, finalmente, consegue ingressar nos arquivos. Foi aí, no meio da papelada, que ela descobriu, horrorizada, as razões da cortina de silêncio: sua cidade, longe de ter sido um bastião da resistência ao nazismo, havia sediado um campo de concentração. Lá, os nazistas prenderam, torturaram e mataram muita gente, com a cumplicidade ou a omissão de moradores, que tentaram, depois, apagar essa mancha vergonhosa da memória, forjando um passado que nunca existiu.

Os documentos registraram inclusive a prisão de um judeu, denunciado na época por dois padres, que no momento da pesquisa continuavam ainda vivos, vivíssimos, tentando impedir o acesso de Sônia aos registros. No entanto, o mais doloroso, era que aqueles que, ontem, haviam sido carrascos, cúmplices da opressão, posavam, hoje, como heróis da resistência e parceiros da liberdade. Quanto escárnio! Os safados haviam invertido os papéis. Por isso, ocultavam os documentos.

Deus tá vendo

E é aqui que entra a forma como a mídia cobriu a morte do cardeal dom Eugênio Sales, que comandou a Arquidiocese do Rio, com mão forte, ao longo de 30 anos (1971-2001), incluindo os anos de chumbo da ditadura militar. O que aconteceu nesse período? O Brasil já elegeu três presidentes que foram reprimidos pela ditadura, mas até hoje, não temos acesso aos principais documentos da repressão.

Se a Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio último pela presidente Dilma Rousseff, pudesse criar, no campo da memória, algo similar à operação "Deus tá vendo", organizada pela Policia Civil do Rio Grande do Sul, talvez encontrássemos a resposta. Na tal operação, a Polícia prendeu na última quinta-feira quatro pastores evangélicos envolvidos em golpes na venda de automóveis. Seria o caso de perguntar: o que foi que Deus viu na época da ditadura militar?

Tem coisas que até Ele duvida. Tive a oportunidade de acompanhar a trajetória do cardeal Eugênio Sales, na qualidade de repórter da ASAPRESS, uma agência nacional de notícias arrendada pela CNBB em 1967. Também, cobri reuniões e assembleias da Conferência dos Bispos para os jornais do Rio – O Sol, O Paiz e Correio da Manhã, quando dom Eugênio era Arcebispo Primaz de Salvador. É a partir desse lugar que posso dar um modesto testemunho. Os bispos que lutavam contra as arbitrariedades eram Helder Câmara, Waldir Calheiros, Cândido Padin, Paulo Evaristo Arns e alguns outros mais que foram vigiados e perseguidos. Mas não dom Eugênio, que jogava no time contrário. Um dos auxiliares de dom Helder, o padre Henrique, foi torturado até a morte em 1969, num crime que continua atravessado na garganta de todos nós e que esperamos seja esclarecido pela Comissão da Verdade. Padres e leigos foram presos e torturados, sem que escutássemos um pio de protesto de dom Eugênio, contrário à teologia da libertação e ao envolvimento da Igreja com os pobres.

O cardeal Eugenio Sales era um homem do poder, que amava a pompa e o rapapé, muito atuante no campo político. Foi ele um dos inspiradores das "candocas" – como Stanislaw Ponte Preta chamava as senhoras da CAMDE, a Campanha da Mulher pela Democracia. As "candocas" desenvolveram trabalhos sociais nas favelas exclusivamente com o objetivo de mobilizar setores pobres para seus objetivos golpistas. Foram elas, as "candocas", que organizaram manifestações de rua contra o governo democraticamente eleito de João Goulart, incluindo a famigerada "Marcha da família com Deus pela liberdade", que apoiou o golpe militar, com financiamento de multinacionais, o que foi muito bem documentado pelo cientista político René Dreifuss, em seu livro "1964: A Conquista do Estado" (Vozes, 1981). Ele teve acesso ao Caixa 2 do IPES/IBAD.

Nós, toda a torcida do Flamengo e Deus que estava vendo tudo, sabíamos que dom Eugênio era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura. Se não sofro de amnésia – e não sofro de amnésia ou de qualquer doença neurodegenerativa – posso garantir que na época ele nem disfarçava, ao contrário manifestava publicamente orgulho do livre trânsito que tinha entre os militares e os poderosos.

"Quem tem dúvidas…basta pesquisar os textos assinados por ele no JB e n'O Globo" – escreve a jornalista Hildegard Angel, que foi colunista dos dois jornais e avaliou assim a opção preferencial do cardeal:

"A Igreja Católica, no Rio, sob a égide de dom Eugenio Salles, foi cada vez mais se distanciando dos pobres e se aproximando, cultivando, cortejando as estruturas do poder. Isso não poderia acabar bem. Acabou no menor percentual de católicos no país: 45,8%…"

Portões do Sumaré

Por isso, a jornalista estranhou – e nós também – a forma como o cardeal Eugenio Sales foi retratado no velório pelas autoridades. Ele foi apresentado como um combatente contra a ditadura, que abriu os portões da residência episcopal para abrigar os perseguidos políticos. O prefeito Eduardo Paes, em campanha eleitoral, declarou que o cardeal "defendeu a liberdade e os direitos individuais". O governador Sérgio Cabral e até o presidente do Senado, José Sarney, insistiram no mesmo tema, apresentando dom Eugênio como o campeão "do respeito às pessoas e aos direitos humanos".

Não foram só os políticos. O jornalista e acadêmico Luiz Paulo Horta escreveu que dom Eugênio chegou a abrigar no Rio "uma quantidade enorme de asilados políticos", calculada, por baixo, numa estimativa do Globo, em "mais de quatro mil pessoas perseguidas por regimes militares da América do Sul". Outro jornalista, José Casado, elevou o número para cinco mil. Ou seja, o cardeal era um agente duplo. Publicamente, apoiava a ditadura e, por baixo dos panos, na clandestinidade, ajudava quem lutava contra. Só faltou arranjarem um codinome para ele, denominado pelo papa Bento XVI como "o intrépido pastor".

Seria possível acreditar nisso, se o jornal tivesse entrevistado um por cento das vítimas. Bastaria 50 perseguidos nos contarem como o cardeal com eles se solidarizou. No entanto, o jornal não dá o nome de uma só – umazinha – dessas cinco mil pessoas. Enquanto isto não acontecer, preferimos ficar com o corajoso depoimento de Hildegard Angel, cujo irmão Stuart, foi torturado e morto pelo Serviço de Inteligência da Aeronáutica. Sua mãe, a estilista Zuzu Angel, procurou o cardeal e bateu com a cara na porta do palácio episcopal.

Segundo Hilde, dom Eugênio "fechou os olhos às maldades cometidas durante a ditadura, fechando seus ouvidos e os portões do Sumaré aos familiares dos jovens ditos "subversivos" que lá iam levar suas súplicas, como fez com minha mãe Zuzu Angel (e isso está documentado)". Ela acha surpreendente que os jornais queiram nos fazer acreditar "que ocorreu justo o contrário!", como no filme "Uma cidade sem passado".

Mas não é tão surpreendente assim. O texto de Hildegard menciona a grande habilidade, em vida, de dom Eugenio, em "manter ótimas relações com os grandes jornais, para os quais contribuiu regularmente com artigos". As azeitadas relações com os donos dos jornais e com alguns jornalistas em postos-chave continuaram depois da morte, como é possível constatar com a cobertura do velório. A defesa de dom Eugênio, na realidade, funciona aqui como uma autodefesa da mídia e do poder.

Os jornais elogiaram, como uma virtude e uma delicadeza, o gesto do cardeal Eugenio Sales que cada vez que ia a Roma levava mamão-papaia para o papa João Paulo II, com o mesmo zelo e unção com que o senador Alfredo Nascimento levava tucumã já descascado para o café da manhã do então governador Amazonino Mendes. São os rituais do poder com seus rapapés.

"Dentro de uma sociedade, assim como os discursos, as memórias são controladas e negociadas entre diferentes grupos e diferentes sistemas de poder. Ainda que não possam ser confundidas com a "verdade", as memórias têm valor social de "verdade" e podem ser difundidas e reproduzidas como se fossem "a verdade" – escreve Teun A. van Dijk, doutor pela Universidade de Amsterdã.

A "verdade" construída pela mídia foi capaz de fotografar até "a presença do Espírito Santo" no funeral. Um voluntário da Cruz Vermelha, Gilberto de Almeida, 59 anos, corretor de imóveis, no caminho ao velório de dom Eugênio, passou pelo abatedouro, no Engenho de Dentro, comprou uma pomba por R$ 25 e a soltou dentro da catedral. A ave voou e posou sobre o caixão: "Foi um sinal de Deus, é a presença do Espírito Santo" – berraram os jornais. Parece que vale tudo para controlar a memória, até mesmo estabelecer preço tão baixo para uma das pessoas da Santíssima Trindade. É muita falta de respeito com a fé das pessoas.

"A mídia deve ser pensada não como um lugar neutro de observação, mas como um agente produtor de imagens, representações e memória" nos diz o citado pesquisador holandês, que estudou o tratamento racista dispensado às minorias étnicas pela imprensa europeia. Para ele, os modos de produção e os meios de produção de uma imagem social sobre o passado são usados no campo da disputa política.

Nessa disputa, a mídia nos forçou a fazer os comentários que você acaba de ler, o que pode parecer indelicadeza num momento como esse de morte, de perda e de dor para os amigos do cardeal. Mas se a gente não falar agora, quando então? Stuart Angel e os que combateram a ditadura merecem que a gente corra o risco de parecer indelicado. É preciso dizer, em respeito à memória deles, que Dom Eugênio tinha suas virtudes, mas uma delas não foi, certamente, a solidariedade aos perseguidos políticos para quem os portões do Sumaré, até prova em contrário, permaneceram fechados. Que ele descanse em paz!

P.S: O jornalista amazonense Fábio Alencar foi quem me repassou o texto de Hildegard Angel, que circulou nas redes sociais. O doutor Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, historiador e professor da Universidade Federal do Amazonas, foi quem me indicou, há anos, o filme "Uma cidade sem passado". Quem me permitiu discutir o conceito de memória foram minhas colegas doutoras Jô Gondar e Vera Dodebei, organizadoras do livro "O que é Memória Social" (Rio de Janeiro: Contra Capa/ Programa de Pós- Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005). Nenhum deles tem qualquer responsabilidade sobre os juízos por mim aqui emitidos.

José Ribamar Bessa Freire e professor, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) e pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO)

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Dentro da luz - por Ezgi Polat (fotografia)

São Paulo entre 5 e 9 de julho – por Gilberto Maringoni (CartaMaior)

Os dias 5 e 9 de julho condensam caminhos pelos quais a história paulista poderia seguir. São dois tabus no estado. Um é esquecido, o outro é exaltado.

A primeira data marca uma violenta reação ao poder do atraso, tendo por base setores médios e populares. E a segunda representa a exaltação do atraso, capitaneada pela elite regional.

Dia 5 de julho, há 88 anos, uma intrincada teia de tensões históricas desaguou no episódio que ficaria conhecido como Revolução de 1924. Suas raízes estão no agravamento de problemas sociais, no autoritarismo dos governos da República Velha e em descontentamentos nos meios militares, que já haviam gerado o movimento tenentista, dois anos antes.

Naquele duro inverno, em meio a uma crise econômica, eclodiu uma nova sublevação. Tropas do Exército e da Força Pública tomaram quartéis, estações de trem e edifícios públicos e expulsaram da cidade o governador Carlos de Campos. No comando, em sua maioria, camadas da média oficialidade. Quatro dias depois, era instalado um governo provisório, que se manteria até 27 de julho. O país vivia sob o estado de sítio do governo Arthur Bernardes (1922-1926).

Entre as reivindicações dos revoltosos estavam: “1º Voto secreto; 2º Justiça gratuita e reforma radical no sistema de nomeação e recrutamento dos magistrados (...) e 3º Reforma não nos programas, mas nos métodos de instrução pública”. No plano político, destaca-se ainda “A proibição de reeleição do Presidente da República (...) e dos governadores dos estados”.

Várias guarnições de cidades próximas aderiram ao movimento. Apesar da falta de um programa claro, setores do operariado organizado apoiaram os revolucionários e exortaram a população a auxiliá-los no que fosse possível.

Bombas, tiros e mortes
As ruas da capital foram palco de intensos combates, com direito a fuzilaria, granadas e tiros de morteiros. Cerca de trezentas trincheiras e barricadas foram abertas em diversos bairros.

A partir do dia 11, o governador deposto, instalado nas colinas da Penha, seguindo determinações do presidente da República, decidiu lançar uma carga de canhões em direção ao centro. O objetivo era aterrorizar a população e forçá-la a se insurgir contra os rebelados.

De forma intermitente, os bairros operários da Mooca, Ipiranga, Belenzinho, Brás e Centro sofreram bombardeio por vários dias. Casas modestas e fábricas foram reduzidas a escombros e cadáveres multiplicavam-se pelas ruas.

Sem conseguir dobrar a resistência, o governo federal decidiu bombardear a cidade com aviões de combate.

O fim da rebelião
Três semanas depois de iniciada, a rebelião foi acuada. Dos 700 mil habitantes da cidade, cerca de 200 mil fugiram para o interior, acotovelando-se nos trens que saiam da estação da Luz. O saldo dos 23 dias de revolta foi 503 mortos e 4.846 feridos. O número de desabrigados passou de vinte mil. No final da noite do dia 28, cerca de 3,5 mil insurgentes retiraram-se da cidade com pesado armamento em três composições ferroviárias. O destino imediato era Bauru, no centro do estado.

Deixaram um manifesto, agradecendo o apoio da população: “No desejo de poupar São Paulo de uma destruição desoladora, grosseira e infame, vamos mudar a nossa frente de trabalho e a sede governamental. (...) Deus vos pague o conforto e o ânimo que nos transmitistes”.

As tensões não cessariam. No ano seguinte, parte dos revolucionários engrossaria a Coluna Prestes (1925-1927). Mais tarde, outros tantos protagonizariam – e venceriam - a Revolução de 30.

Promovida pelas camadas médias do meio militar, o levante ganhou apoio de parcelas pobres da população. Talvez por isso seja chamada de “a revolução esquecida”.

A revolução que não foi
A segunda data, 9 de julho, é marcada pelo estopim de uma revolução que não faz jus ao nome. É exaltada e cultuada como uma manifestação de defesa intransigente da democracia, ela faz parte da criação de certa mitologia gloriosa para São Paulo.

O evento, em realidade, representa a sublevação da oligarquia cafeeira contra a Revolução de 30, que a retirou do governo e se constituiu no marco definidor do Brasil moderno.

Aquele processo não pode ser visto apenas como uma tomada de poder por um punhado de descontentes. Suas causas envolvem as contrariedades nos meios militares e tensões do próprio desenvolvimento do país. A crise de 1929 acabara de chegar, colocando em xeque o liberalismo reinante.

A Revolução consolidou a expansão das relações capitalistas, que trouxe em seu bojo a integração ao mercado – via Estado – de largos contingentes da população. O mecanismo utilizado foi a formalização do trabalho.

As novas relações sociais e a intervenção do Estado na economia – decisiva para a superação da crise e para o avanço da industrialização - implicaram uma reconfiguração e uma modernização institucional do país. A conseqüência imediata foi a perda da hegemonia da economia cafeeira, centrada principalmente em São Paulo e parte de Minas Gerais. Percebendo as mudanças no horizonte, as classes dominantes locais foram à luta em 1932.

A locomotiva e os vagõesExplodiu então a rebelião armada das forças insepultas da República Velha e da elite paulista, querendo recuperar seu domínio sobre o país.

Tendo na linha de frente a Associação Comercial e a Federação das Indústrias (FIESP), o levante tinha entre seus líderes sobrenomes importantes do Estado, como Simonsen, Mesquita, Silva Prado, Pacheco e Chaves, Alves de Lima e outros. O movimento contou com expressivo apoio popular, uma vez que os meios de comunicação (rádio, jornais e revistas) reverberaram as demandas das classes altas.

A campanha que precedeu a sublevação exacerbou uma espécie de nacionalismo paulista, incentivado por grupos separatistas. Entre esses, notabilizava-se o escritor Monteiro Lobato. A síntese da aversão local ao restante do país expressava-se na difundida frase, que classificava o estado como “a locomotiva que puxa 21 vagões vazios”, em referência às demais unidades da federação.

Contradição em termosO objetivo do movimento, derrotado militarmente em 4 de outubro, era derrubar o governo provisório de Getulio Vargas e aprovar uma nova Constituição. Daí a criação do nome “revolução constitucionalista”, uma contradição em termos. Revolução é uma ação decidida a destruir uma ordem estabelecida. A expressão “constitucionalista” expressava uma tentativa recuperação do status quo, regido pela Carta de 1891. Se é “constitucionalista”, não poderia ser “revolução”.

Os sempre proclamados “ideais de 1932” são vagas referências à constitucionalidade e à democracia. Mas não existia, por parte da elite, nenhuma formulação que fosse muito além da recuperação da hegemonia paulista (leia-se, dos cafeicultores).

Exatos oitenta anos depois, o 9 de julho segue comemorado como a data magna do estado, uma espécie de 7 de setembro local. E os acontecimentos de 5 de julho de 1924 continuam como páginas obscuras de um passado distante.

A elite paulista voltaria ao poder em 1994, pelas mãos de Fernando Henrique Cardoso e do PSDB. Seu mote foi dado no discurso de despedida do senado, em 1994: “Um pedaço do nosso passado político ainda atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade. Refiro-me ao legado da Era Vargas, ao seu modelo de desenvolvimento autárquico e ao seu Estado intervencionista”.

Os objetivos desse setor continuaram os mesmos, décadas depois: realizar a contra-Revolução de 30.

As tensões entre as datas – 5 e 9 de julho – expressam duas vias colocadas até hoje nos embates políticos paulistas: a saída conservadora e a saída antielitista.


Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Fotografia - por Laoen


“O socialismo é uma doutrina triunfante” – entrevista com Antonio Candido (Brasil de Fato)

Aos 93 anos, Antonio Candido explica a sua concepção de socialismo, fala sobre literatura e revela não se interessar por novas obras

Crítico literário, professor, sociólogo, militante. Um adjetivo sozinho não consegue definir a importância de Antonio Candido para o Brasil. Considerado um dos principais intelectuais do país, ele mantém a postura socialista, a cordialidade, a elegância, o senso de humor, o otimismo. Antes de começar nossa entrevista, ele diz que viveu praticamente todo o conturbado século 20. E participou ativamente dele, escrevendo, debatendo, indo a manifestações, ajudando a dar lucidez, clareza e humanidade a toda uma geração de alunos, militantes sociais, leitores e escritores.

Tão bom de prosa como de escrita, ele fala sobre seu método de análise literária, dos livros de que gosta, da sua infância, do começo da sua militância, da televisão, do MST, da sua crença profunda no socialismo como uma doutrina triunfante. “O que se pensa que é a face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele”, afirma.

Brasil de Fato – Nos seus textos é perceptível a intenção de ser entendido. Apesar de muito erudito, sua escrita é simples. Por que esse esforço de ser sempre claro?
Antonio Candido – Acho que a clareza é um respeito pelo próximo, um respeito pelo leitor. Sempre achei, eu e alguns colegas, que, quando se trata de ciências humanas, apesar de serem chamadas de ciências, são ligadas à nossa humanidade, de maneira que não deve haver jargão científico. Posso dizer o que tenho para dizer nas humanidades com a linguagem comum. Já no estudo das ciências humanas eu preconizava isso. Qualquer atividade que não seja estritamente técnica, acho que a clareza é necessária inclusive para pode divulgar a mensagem, a mensagem deixar de ser um privilégio e se tornar um bem comum.

Brasil de Fato – O seu método de análise da literatura parte da cultura para a realidade social e volta para a cultura e para o texto. Como o senhor explicaria esse método?
Antonio Candido – Uma coisa que sempre me preocupou muito é que os teóricos da literatura dizem: é preciso fazer isso, mas não fazem. Tenho muita influência marxista – não me considero marxista – mas tenho muita influência marxista na minha formação e também muita influência da chamada escola sociológica francesa, que geralmente era formada por socialistas. Parti do seguinte princípio: quero aproveitar meu conhecimento sociológico para ver como isso poderia contribuir para conhecer o íntimo de uma obra literária. No começo eu era um pouco sectário, politizava um pouco demais minha atividade. Depois entrei em contato com um movimento literário norte-americano, a nova crítica, conhecido como new criticism. E aí foi um ovo de colombo: a obra de arte pode depender do que for, da personalidade do autor, da classe social dele, da situação econômica, do momento histórico, mas quando ela é realizada, ela é ela. Ela tem sua própria individualidade. Então a primeira coisa que é preciso fazer é estudar a própria obra. Isso ficou na minha cabeça. Mas eu também não queria abrir mão, dada a minha formação, do social. Importante então é o seguinte: reconhecer que a obra é autônoma, mas que foi formada por coisas que vieram de fora dela, por influências da sociedade, da ideologia do tempo, do autor. Não é dizer: a sociedade é assim, portanto a obra é assim. O importante é: quais são os elementos da realidade social que se transformaram em estrutura estética. Me dediquei muito a isso, tenho um livro chamado “Literatura e sociedade” que analisa isso. Fiz um esforço grande para respeitar a realidade estética da obra e sua ligação com a realidade. Há certas obras em que não faz sentido pesquisar o vínculo social porque ela é pura estrutura verbal. Há outras em que o social é tão presente – como “O cortiço” [de Aluísio Azevedo] – que é impossível analisar a obra sem a carga social. Depois de mais maduro minha conclusão foi muito óbvia: o crítico tem que proceder conforme a natureza de cada obra que ele analisa. Há obras que pedem um método psicológico, eu uso; outras pedem estudo do vocabulário, a classe social do autor; uso. Talvez eu seja aquilo que os marxistas xingam muito que é ser eclético. Talvez eu seja um pouco eclético, confesso. Isso me permite tratar de um número muito variado de obras.

Brasil de Fato – Teria um tipo de abordagem estética que seria melhor?
Antonio Candido – Não privilegio. Já privilegiei. Primeiro o social, cheguei a privilegiar mesmo o político. Quando eu era um jovem crítico eu queria que meus artigos demonstrassem que era um socialista escrevendo com posição crítica frente à sociedade. Depois vi que havia poemas, por exemplo, em que não podia fazer isso. Então passei a outra fase em que passei a priorizar a autonomia da obra, os valores estéticos. Depois vi que depende da obra. Mas tenho muito interesse pelo estudo das obras que permitem uma abordagem ao mesmo tempo interna e externa. A minha fórmula é a seguinte: estou interessado em saber como o externo se transformou em interno, como aquilo que é carne de vaca vira croquete. O croquete não é vaca, mas sem a vaca o croquete não existe. Mas o croquete não tem nada a ver com a vaca, só a carne. Mas o externo se transformou em algo que é interno. Aí tenho que estudar o croquete, dizer de onde ele veio.

Brasil de Fato – O que é mais importante ler na literatura brasileira?
Antonio Candido – Machado de Assis. Ele é um escritor completo.

Brasil de Fato – É o que senhor mais gosta?
Antonio Candido – Não, mas acho que é o que mais se aproveita.

Brasil de Fato – E de qual o senhor mais gosta?
Antonio Candido – Gosto muito do Eça de Queiroz, muitos estrangeiros. De brasileiros, gosto muito de Graciliano Ramos… Acho que já li “São Bernardo” umas 20 vezes, com mentira e tudo. Leio o Graciliano muito, sempre. Mas Machado de Assis é um autor extraordinário. Comecei a ler com 9 anos livros de adulto. E ninguém sabia quem era Machado de Assis, só o Brasil e, mesmo assim, nem todo mundo. Mas hoje ele está ficando um autor universal. Ele tinha a prova do grande escritor. Quando se escreve um livro, ele é traduzido, e uma crítica fala que a tradução estragou a obra, é porque não era uma grande obra. Machado de Assis, mesmo mal traduzido, continua grande. A prova de um bom escritor é que mesmo mal traduzido ele é grande. Se dizem: “a tradução matou a obra”, então a obra era boa, mas não era grande.

Brasil de Fato – Como levar a grande literatura para quem não está habituado com a leitura?
Antonio Candido – É perfeitamente possível, sobretudo Machado de Assis. A Maria Vitória Benevides me contou de uma pesquisa que foi feita na Itália há uns 30 anos. Aqueles magnatas italianos, com uma visão já avançada do capitalismo, decidiram diminuir as horas de trabalho para que os trabalhadores pudessem ter cursos, se dedicar à cultura. Então perguntaram: cursos de que vocês querem? Pensaram que iam pedir cursos técnicos, e eles pediram curso de italiano para poder ler bem os clássicos. “A divina comédia” é um livro com 100 cantos, cada canto com dezenas de estrofes. Na Itália, não sou capaz de repetir direito, mas algo como 200 mil pessoas sabem a primeira parte inteira, 50 mil sabem a segunda, e de 3 a 4 mil pessoas sabem o livro inteiro de cor. Quer dizer, o povo tem direito à literatura e entende a literatura. O doutor Agostinho da Silva, um escritor português anarquista que ficou muito tempo no Brasil, explicava para os operários os diálogos de Platão, e eles adoravam. Tem que saber explicar, usar a linguagem normal.

Brasil de Fato – O senhor acha que o brasileiro gosta de ler?
Antonio Candido – Não sei. O Brasil pra mim é um mistério. Tem editora para toda parte, tem livro para todo lado. Vi uma reportagem que dizia que a cidade de Buenos Aires tem mais livrarias que em todo o Brasil. Lê-se muito pouco no Brasil. Parece que o povo que lê mais é o finlandês, que lê 30 volumes por ano. Agora dizem que o livro vai acabar, né?

Brasil de Fato – O senhor acha que vai?
Antonio Candido – Não sei. Eu não tenho nem computador… as pessoas me perguntam: qual é o seu… como chama?

Brasil de Fato – E-mail?
Antonio Candido – Isso! Olha, eu parei no telefone e máquina de escrever. Não entendo dessas coisas… Estou afastado de todas as novidades há cerca de 30 anos. Não me interesso por literatura atual. Sou um velho caturra. Já doei quase toda minha biblioteca, 14 ou 15 mil volumes. O que tem aqui é livro para visita ver. Mas pretendo dar tudo. Não vendo livro, eu dou. Sempre fiz escola pública, inclusive universidade pública, então é o que posso dar para devolver um pouco. Tenho impressão que a literatura brasileira está fraca, mas isso todo velho acha. Meus antigos alunos que me visitam muito dizem que está fraca no Brasil, na Inglaterra, na França, na Rússia, nos Estados Unidos… que a literatura está por baixo hoje em dia. Mas eu não me interesso por novidades.

Brasil de Fato – E o que o senhor lê hoje em dia?
Antonio Candido – Eu releio. História, um pouco de política… mesmo meus livros de socialismo eu dei tudo. Agora estou querendo reler alguns mestres socialistas, sobretudo Eduard Bernstein, aquele que os comunistas tinham ódio. Ele era marxista, mas dizia que o marxismo tem um defeito, achar que a gente pode chegar no paraíso terrestre. Então ele partiu da ideia do filósofo Immanuel Kant da finalidade sem fim. O socialismo é uma finalidade sem fim. Você tem que agir todos os dias como se fosse possível chegar no paraíso, mas você não chegará. Mas se não fizer essa luta, você cai no inferno.

Brasil de Fato – O senhor é socialista?
Antonio Candido – Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo… tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais. Conversando com um antigo aluno meu, que é um rapaz rico, industrial, ele disse: “o senhor não pode negar que o capitalismo tem uma face humana”. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na mais-valia e no exército de reserva, como Marx definiu. É preciso ter sempre miseráveis para tirar o excesso que o capital precisar. E a mais-valia não tem limite. Marx diz na “Ideologia Alemã”: as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço. Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias… tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo na Rússia.

Brasil de Fato – Por quê?
Antonio Candido – Virou capitalismo. A revolução russa serviu para formar o capitalismo. O socialismo deu certo onde não foi ao poder. O socialismo hoje está infiltrado em todo lugar.

Brasil de Fato – O socialismo como luta dos trabalhadores?
Antonio Candido – O socialismo como caminho para a igualdade. Não é a luta, é por causa da luta. O grau de igualdade de hoje foi obtido pelas lutas do socialismo. Portanto ele é uma doutrina triunfante. Os países que passaram pela etapa das revoluções burguesas têm o nível de vida do trabalhador que o socialismo lutou para ter, o que quer. Não vou dizer que países como França e Alemanha são socialistas, mas têm um nível de vida melhor para o trabalhador.

Brasil de Fato – Para o senhor é possível o socialismo existir triunfando sobre o capitalismo?

Antonio Candido – Estou pensando mais na técnica de esponja. Se daqui a 50 anos no Brasil não houver diferença maior que dez do maior ao menor salário, se todos tiverem escola… não importa que seja com a monarquia, pode ser o regime com o nome que for, não precisa ser o socialismo! Digo que o socialismo é uma doutrina triunfante porque suas reivindicações estão sendo cada vez mais adotadas. Não tenho cabeça teórica, não sei como resolver essa questão: o socialismo foi extraordinário para pensar a distribuição econômica, mas não foi tão eficiente para efetivamente fazer a produção. O capitalismo foi mais eficiente, porque tem o lucro. Quando se suprime o lucro, a coisa fica mais complicada. É preciso conciliar a ambição econômica – que o homem civilizado tem, assim como tem ambição de sexo, de alimentação, tem ambição de possuir bens materiais – com a igualdade. Quem pode resolver melhor essa equação é o socialismo, disso não tenho a menor dúvida. Acho que o mundo marcha para o socialismo. Não o socialismo acadêmico típico, a gente não sabe o que vai ser… o que é o socialismo? É o máximo de igualdade econômica. Por exemplo, sou um professor aposentado da Universidade de São Paulo e ganho muito bem, ganho provavelmente 50, 100 vezes mais que um trabalhador rural. Isso não pode. No dia em que, no Brasil, o trabalhador de enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos que o banqueiro, está bom, é o socialismo.

Brasil de Fato – O que o socialismo conseguiu no mundo de avanços?
Antonio Candido – O socialismo é o cavalo de Troia dentro do capitalismo. Se você tira os rótulos e vê as realidades, vê como o socialismo humanizou o mundo. Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo. Cuba é uma coisa formidável, o mais próximo da justiça social. Não a Rússia, a China, o Camboja. No comunismo tem muito fanatismo, enquanto o socialismo democrático é moderado, é humano. E não há verdade final fora da moderação, isso Aristóteles já dizia, a verdade está no meio. Quando eu era militante do PT – deixei de ser militante em 2002, quando o Lula foi eleito – era da ala do Lula, da Articulação, mas só votava nos candidatos da extrema esquerda, para cutucar o centro. É preciso ter esquerda e direita para formar a média. Estou convencido disso: o socialismo é a grande visão do homem, que não foi ainda superada, de tratar o homem realmente como ser humano. Podem dizer: a religião faz isso. Mas faz isso para o que são adeptos dela, o socialismo faz isso para todos. O socialismo funciona como esponja: hoje o capitalismo está embebido de socialismo. No tempo que meu irmão Roberto – que era católico de esquerda – começou a trabalhar, eu era moço, ele era tido como comunista, por dizer que no Brasil tinha miséria. Dizer isso era ser comunista, não estou falando em metáforas. Hoje, a Federação das Indústrias, Paulo Maluf, eles dizem que a miséria é intolerável. O socialismo está andando… não com o nome, mas aquilo que o socialismo quer, a igualdade, está andando. Não aquela igualdade que alguns socialistas e os anarquistas pregavam, igualdade absoluta é impossível. Os homens são muito diferentes, há uma certa justiça em remunerar mais aquele que serve mais à comunidade. Mas a desigualdade tem que ser mínima, não máxima. Sou muito otimista. (pausa). O Brasil é um país pobre, mas há uma certa tendência igualitária no brasileiro – apesar da escravidão – e isso é bom. Tive uma sorte muito grande, fui criado numa cidade pequena, em Minas Gerais, não tinha nem 5 mil habitantes quando eu morava lá. Numa cidade assim, todo mundo é parente. Meu bisavô era proprietário de terras, mas a terra foi sendo dividida entre os filhos… então na minha cidade o barbeiro era meu parente, o chofer de praça era meu parente, até uma prostituta, que foi uma moça deflorada expulsa de casa, era minha prima. Então me acostumei a ser igual a todo mundo. Fui criado com os antigos escravos do meu avô. Quando eu tinha 10 anos de idade, toda pessoa com mais de 40 anos tinha sido escrava. Conheci inclusive uma escrava, tia Vitória, que liderou uma rebelião contra o senhor. Não tenho senso de desigualdade social. Digo sempre, tenho temperamento conservador. Tenho temperamento conservador, atitudes liberais e ideias socialistas. Minha grande sorte foi não ter nascido em família nem importante nem rica, senão ia ser um reacionário. (risos).

Brasil de Fato – A Teresina, que inspirou um livro com seu nome, o senhor conheceu depois?
Antonio Candido – Conheci em Poços de Caldas… essa era uma mulher extraordinária, uma anarquista, maior amiga da minha mãe. Tenho um livrinho sobre ela. Uma mulher formidável. Mas eu me politizei muito tarde, com 23, 24 anos de idade com o Paulo Emílio. Ele dizia: “é melhor ser fascista do que não ter ideologia”. Ele que me levou para a militância. Ele dizia com razão: cada geração tem o seu dever. O nosso dever era político.

Brasil de Fato – E o dever da atual geração?
Antonio Candido – Ter saudade. Vocês pegaram um rabo de foguete danado.

Brasil de Fato – No seu livro “Os parceiros do Rio Bonito” o senhor diz que é importante defender a reforma agrária não apenas por motivos econômicos, mas culturalmente. O que o senhor acha disso hoje?
Antonio Candido – Isso é uma coisa muito bonita do MST. No movimento das Ligas Camponesas não havia essa preocupação cultural, era mais econômica. Acho bonito isso que o MST faz: formar em curso superior quem trabalha na enxada. Essa preocupação cultural do MST já é um avanço extraordinário no caminho do socialismo. É preciso cultura. Não é só o livro, é conhecimento, informação, notícia… Minha tese de doutorado em ciências sociais foi sobre o camponês pobre de São Paulo – aquele que precisa arrendar terra, o parceiro. Em 1948, estava fazendo minha pesquisa num bairro rural de Bofete e tinha um informante muito bom, Nhô Samuel Antônio de Camargos. Ele dizia que tinha mais de 90 anos, mas não sabia quantos. Um dia ele me perguntou: “ô seu Antonio, o imperador vai indo bem? Não é mais aquele de barba branca, né?”. Eu disse pra ele: “não, agora é outro chamado Eurico Gaspar Dutra”. Quer dizer, ele está fora da cultura, para ele o imperador existe. Ele não sabe ler, não sabe escrever, não lê jornal. A humanização moderna depende da comunicação em grande parte. No dia em que o trabalhador tem o rádio em casa ele é outra pessoa. O problema é que os meios modernos de comunicação são muito venenosos. A televisão é uma praga. Eu adoro, hein? Moro sozinho, sozinho, sou viúvo e assisto televisão. Mas é uma praga. A coisa mais pérfida do capitalismo – por causa da necessidade cumulativa irreversível – é a sociedade de consumo. Marx não conheceu, não sei como ele veria. A televisão faz um inculcamento sublimar de dez em dez minutos, na cabeça de todos – na sua, na minha, do Sílvio Santos, do dono do Bradesco, do pobre diabo que não tem o que comer – imagens de whisky, automóvel, casa, roupa, viagem à Europa – cria necessidades. E claro que não dá condições para concretizá-las. A sociedade de consumo está criando necessidades artificiais e está levando os que não têm ao desespero, à droga, miséria… Esse desejo da coisa nova é uma coisa poderosa. O capitalismo descobriu isso graças ao Henry Ford. O Ford tirou o automóvel da granfinagem e fez carro popular, vendia a 500 dólares. Estados Unidos inteiro começou a comprar automóvel, e o Ford foi ficando milionário. De repente o carro não vendia mais. Ele ficou desesperado, chamou os economistas, que estudaram e disseram: “mas é claro que não vende, o carro não acaba”. O produto industrial não pode ser eterno. O produto artesanal é feito para durar, mas o industrial não, ele tem que ser feito para acabar, essa é coisa mais diabólica do capitalismo. E o Ford entendeu isso, passou a mudar o modelo do carro a cada ano. Em um regime que fosse mais socialista seria preciso encontrar uma maneira de não falir as empresas, mas tornar os produtos duráveis, acabar com essa loucura da renovação. Hoje um automóvel é feito para acabar, a moda é feita para mudar. Essa ideia tem como miragem o lucro infinito. Enquanto a verdadeira miragem não é a do lucro infinito, é do bem-estar infinito.

Antonio Candido de Mello e Souza nasceu no Rio de Janeiro em 24 de julho de 1918, concluiu seus estudos secundários em Poços de Caldas (MG) e ingressou na recém-fundada Universidade de São Paulo em 1937, no curso de Ciências Sociais. Com os amigos Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e outros fundou a revista Clima. Com Gilda de Mello e Souza, colega de revista e do intenso ambiente de debates sobre a cultura, foi casado por 60 anos. Defendeu sua tese de doutorado, publicada depois como o livro “Os Parceiros do Rio Bonito”, em 1954. De 1958 a 1960 foi professor de literatura na Faculdade de Filosofia de Assis. Em 1961, passou a dar aulas de teoria literária e literatura comparada na USP, onde foi professor e orientou trabalhos até se aposentar, em 1992. Na década de 1940, militou no Partido Socialista Brasileiro, fazendo oposição à ditadura Vargas. Em 1980, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Colaborou nos jornais Folha da Manhã e Diário de São Paulo, resenhando obras literárias. É autor de inúmeros livros, atualmente reeditados pela editora Ouro sobre Azul, coordenada por sua filha, Ana Luisa Escorel.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Arte digital - por Grzegorz Rutkowski (CoolVibe)


A disjunção entre prática e teoria na política - por Morales (Blog do Nassif)

Comentário ao post "O vale-tudo da política, por Mino Carta".

Recoloco uma referência que fiz em um comentário de outra postagem, muito elucidativa para analisar o praticismo em voga - o texto Crítica do Praticismo Revolucionário, de Sérgio Lessa:
http://www.sergiolessa.com/artigos_92_96/praticismo_1995.pdf

"Com o abandono do esforço teórico, a cada geração os “revolucionários” são mais ignorantes, e exibem uma maior estreiteza na sua concepção de mundo. São crescentemente incapazes de apreender a essência do processo histórico, perdendo-se nos seus meandros fenomênicos e fugazes. Sem a compreensão do mundo em que agem, suas práticas são marcadas pelo taticismo, pela absoluta falta de estratégia."
(...)
"Pari passu a esta disjunção entre prática e teoria, ocorre um outro processo, a ela intimamente articulado. Com o esgotamento da crise revolucionária dos anos vinte e os primeiros movimentos de estruturação do que viria a ser chamado, posteriormente, de Estado do Bem Estar Social, a luta política nos países capitalistas avançados é cada vez menos luta de massas contra a exploração capitalista, e cada vez mais a disputa burocratizada pelo poder no interior dos “aparelhos” políticos (partidos, sindicatos, associações, etc.): os militantes vão deixando de ser autênticos revolucionários para se converterem em “aparatchiks”, ou seja, funcionários burocráticos de estruturas stalinistas ou reformistas (não nos esqueçamos que, grosso modo, o stalinismo é contemporâneo à gênese e ao apogeu do Estado de Bem Estar Social) que há muito abandonaram a luta contra a exploração do homem pelo homem. Estes dois processos (a cisão teoria-prática e o abandono da luta revolucionária) se determinam reflexivamente, evoluem como faces de uma mesma moeda.
(...)
"Com isso as reviravoltas políticas se sucedem e são justificadas como acertadas continuações das igualmente justas linhas anteriores. É pífio o argumento de fundo a que sempre se recorre nessas ocasiões, mas suficiente para convencer o obediente militante stalinista: a concepção dialética da história “prova” que as coisas, com o tempo, se transformam “em seu contrário”. Assim, as reviravoltas são imprescindíveis. Cabe apenas, “dialeticamente”, demonstrar como elas são corretas."
(...)
"Isto tem duas conseqüências fundamentais para o nosso tema. Frente à incapacidade para entender o momento histórico, assim como para compreenderem a si próprios, os revolucionários terminam por fazer, da necessidade, virtude: como são incapazes de se constituírem enquanto uma alternativa estratégico-global ao mundo burguês, passam a compreender o “fazer política” como a busca de uma eficiência cotidiana no enfrentamento com a burguesia, centrando todos os seus (parcos) esforços teóricos na busca de uma alternativa ao poder burguês que não implique na revolução. Raciocinam eles que, se temos que ser alternativa à burguesia, temos que saber como administrar o Estado burguês melhor do que a própria burguesia, mostrando assim ao “povo” (pois a esta altura, a centralidade da classe operária já foi perdida) que os revolucionários são confiáveis e, por isso, a eles deve ser entregue o poder político.
Não percebem que este reformismo não tem a menor possibilidade de sucesso, pois administrar o Estado burguês tem apenas um significado histórico possível: se colocar a serviço da burguesia. Pequenas melhorias na administração pública, aqui e ali, são os melhores resultados possíveis de se colocar a serviço dos donos do capital, e tais “sucessos” apenas reforçam a ordem burguesa! Com isto não queremos sugerir uma condenação in totum da luta parlamentar, mas apenas sublinhar que ela pode ser taticamente necessária, mas jamais deixará de ter este conteúdo essencial.
Esse reformismo político, inerente ao praticismo contemporâneo, não é sua única consequência. Ao correr atrás dos fatos como o jumento atrás da cenoura, a militância se transforma numa roda viva que torna o estudo uma atividade impossível. Como toda ação é desprovida de uma orientação estratégica, apenas um enorme volume de prática pode manter o militante à tona na luta política. Busca-se, antes de mais nada, conquistar ou manter “postos” em sindicatos, associações ou no poder Legislativo e Executivo. Isto requer uma politicagem cotidiana, de conchavos e articulações, que exaure as suas energias. Além disso, nas “frentes de massa”, a luta por um lugar ao sol não é menos esgotante, tornando o cotidiano impermeável à “prática teórica”. Ao invés do revolucionário elevar o nível teórico das massas oprimidas (ou, se isto não é possível em todos os momentos históricos, ao menos de suas lideranças), o praticista termina por se rebaixar ao nível cultural a que a alienação burguesa reduziu os trabalhadores.”

domingo, 8 de julho de 2012

Vórtex - por Alexandra Pacula (pintura)


Quando o extraordinário acontece – por Saul Leblon (Blog das frases – CartaMaior)

Uma das dimensões transformadoras desta crise é romper a esférica blindagem política da qual se valeu o sistema financeiro para impor uma supremacia devastadora à economia e ao imaginário da sociedade. Por razões intrínsecas ao desenvolvimento capitalista, nenhum poder é tão organizado quanto o do dinheiro a juro. Ramificação local e escopo planetário lhe dão a prerrogativa de conduzir e induzir a globalização e, desse modo, os mercados nacionais. Institutos de pesquisas, universidades, jornalistas e partidos adestrados a sua lógica cuidam de reproduzir localmente uma hegemonia que subordina governos, mercados e visões de mundo ao interesses rentistas. Tudo revestido pelo cimento midiático, que faz estes parecerem uma extensão dos interesses gerais de toda sociedade.

A fraude recém descoberta no cálculo da Libor abre uma trinca adicional nesse lacre de muitas camadas. Embora noticiada como uma falcatrua técnica, na realidade ela autoriza questionamentos de amplitude e gravidade estruturais que extrapolam a reputação do Barclays - um dos seis maiores bancos do mundo, pego com a mão na cumbuca da manipulação de uma taxa de juro em benefício próprio.

A Libor, grosso modo, é obtida da média dos juros cobrados em empréstimos interbancários (entre bancos) na praça de Londres. Direta ou
indiretamente influencia um vasto leque de operações em todo o planeta.

O que se descobriu agora é que o Barclays (leia matéria do correspondente Marcelo Justo, em Londres), informava uma taxa inferior a que de fato pagava para obter caixa junto a outras instituições. A manobra deliberada visava reduzir sua despesa com produtos financeiros vendidos a milhares de investidores, pelos quais pagava juros atrelados à própria Libor.

A fragilidade intrínseca a esse sistema de formação de taxas de juros, que concede à parte interessada de um contrato o direito de determinar variáveis que afetam os dois lados, não é estranha ao Brasil. Aqui, a taxa básica de juros, a Selic, que remunera os títulos do governo, foi definida até muito recentemente com base na quase exclusiva opinião dos grandes agentes do mercado financeiro --diretamente interessados em robustecer o rendimento das carteiras de renda fixa de portifólios para os quais trabalham.

No caso da Libor é preciso lembrar que ela definiu parte substancial do pagamento de juros da dívida externa brasileira durante décadas. Significa que o país endividou-se e quebrou nos anos 80, ademais de rastejar na década seguinte, submetido a uma hemorragia de gastos com juros flutuantes, potencialmente manipuláveis pelos principais interessados em sangrar o país: os bancos credores. Se o Barclays o fez agora para baixo, por que o mesmo não pode ter ocorrido com sinal invertido no passado?

Entre os anos 70 e 90 o Brasil desembolsou cerca de US$ 280 bi em juros e amortizações pagos aos seus credores. Mais de US$ 220 bi desse total foram pagamentos feitos entre 1980 e 1990, ao final dos quais a dívida ainda era superior a US$ 120 bi e não parava de crescer. Em 1982 o Brasil quebrou; as torneiras dos bancos se fecharam. Restava o socorro do FMI. As cartas de condicionalidades assinadas para ter aceso a esses recursos--destinados a pagar juros -- deflagraram uma espiral de arrocho salarial e cortes de gastos públicos que dizimaram a capacidade de crescimento da economia. Tornariam o país um refém ainda mais vulnerável do sistema financeiro internacional. Qualquer semelhança com o martírio vivido hoje pelas sociedades grega, espanhola, portuguesa ,entre outras, não é coincidência,mas reprodução da mesma lógica.

O Brasil tampouco foi uma exceção nas mãos dos então responsáveis pela definição da Libor. Cálculos do economista Pierre Salama sugerem que na crise da dívida externa dos anos 80, o FMI impôs aos países pobres e em desenvolvimento um programa de arrocho que resultaria em transferências de recursos, na forma de juros e amortizações, de gravidade e volume superior às reparações de guerra impostas à Alemanha pelo Tratado de Versalhes. Desse ovo da serpente chocado ao final da Primeira Guerra surgiria o nazismo.

Há 20 anos quem duvidasse da lisura no cálculo da Libor era olhado com a mesma desfaçatez hoje dirigida aos que advogam o controle estatal sobre o sistema financeiro, como requisito para superação da crise mundial. O jornalista e escritor Bernardo Kuscinki foi para a Ingaterra em 1991 fazer seu pós doc munido de um projeto singular: investigar a hipótese de que a taxa Libor estava sendo manipulada em prejuízo dos países devedores.

Antes de viajar consultou um economista brasileiro que referendou suas suspeitas: 'Todo mundo sabe que existe a 'hora do Brasil' no mercado interbancário de Londres', ou seja, a hora de definir a lasca anual a ser extraída do lombo do país, ajustando-se a Libor para esse fim. Na City londrina, Kuscinski procurou especialistas para encorpar seu projeto. Foi recebido com risos e desdém. Desistiu e escolheu outro tema. Os fatos agora demonstram que a sua hipótese não era leviana.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

New York Times que saiu ontem! - por Jacob Sutton (fotografia)


Jimmy Carter: “Um recorde raro e cruel” - por Jimmy Carter (The New York Times - blog do Nassif)


Do New York Times,“A Cruel and Unusual Record” - Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Revelações de que altos funcionários do governo dos EUA decidem quem será assassinado em países distantes, inclusive cidadãos norte-americanos, são a prova apenas mais recente, e muito perturbadora, de como se ampliou a lista das violações de direitos humanos cometidas pelos EUA. Esse desenvolvimento começou depois dos ataques terroristas de 11/9/2001; e tem sido autorizado, em escala crescente, por atos do executivo e do legislativo norte-americanos, dos dois partidos, sem que se ouça protesto popular. Resultado disso, os EUA já não podem falar, com autoridade moral, sobre esses temas cruciais.

Por mais que os EUA tenham cometido erros no passado, o crescente abuso contra direitos humanos na última década é dramaticamente diferente de tudo que algum dia se viu nos EUA. Sob liderança dos EUA, a Declaração Universal dos Direitos do Homem foi adotada em 1948, como “fundamento da liberdade, justiça e paz no mundo”. Foi compromisso claro e firme, com a ideia de que o poder não mais serviria para acobertar a opressão ou a agressão a seres humanos. Aquele compromisso fixava direitos iguais para todos, à vida, à liberdade, à segurança pessoal, igual proteção legal e liberdade para todos, com o fim da tortura, da detenção arbitrária e do exílio forçado.

Aquela Declaração tem sido invocada por ativistas dos direitos humanos e da comunidade internacional, para trocar, em todo o mundo, ditaduras por governos democráticos, e para promover o império da lei nos assuntos domésticos e globais. É gravemente preocupante que, em vez de fortalecer esses princípios, as políticas de contraterrorismo dos EUA vivam hoje de claramente violar, pelo menos, 10 dos 30 artigos daquela Declaração, inclusive a proibição de qualquer prática de “castigo cruel, desumano ou tratamento degradante.”

Legislação recente legalizou o direito do presidente dos EUA, para manter pessoas sob detenção sem fim, no caso de haver suspeita de ligação com organizações terroristas ou “forças associadas” fora do território dos EUA – um poder mal delimitado que pode facilmente ser usado para finalidades autoritárias, sem qualquer possibilidade de fiscalização pelas cortes de justiça ou pelo Congresso (a aplicação da lei está hoje bloqueada, suspensa por sentença de um(a) juiz(a) federal). Essa lei agride o direito à livre manifestação e o direito à presunção de inocência, sempre que não houver crime e criminoso determinados por sentença judicial – mais dois direitos protegidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, aí pisoteados pelos EUA.

Além de cidadãos dos EUA assassinados em terra estrangeira ou tornados alvos de detenção sem prazo e sem acusação clara, leis mais recentes suspenderam as restrições da Foreign Intelligence Surveillance Act, de 1978, para admitir violação sem precedentes de direitos de privacidade, legalizando a prática de gravações clandestinas e de invasão das comunicações eletrônicas dos cidadãos, sem mandato. Outras leis autorizam a prender indivíduos pela aparência, modo de trajar, locais de culto e grupos de convivência social.

Além da regra arbitrária e criminosa, segundo a qual qualquer pessoa assassinada por aviões-robôs comandados à distância (drones) por pilotos do exército dos EUA é automaticamente declarada inimigo terrorista, os EUA já consideram normais e inevitáveis também as mortes que ocorram ‘em torno’ do ‘alvo’, mulheres e crianças inocentes, em muitos casos. Depois de mais de 30 ataques aéreos contra residências de civis, esse ano, no Afeganistão, o presidente Hamid Karzai exigiu o fim desse tipo de ataque. Mas os ataques prosseguem em áreas do Paquistão, da Somália e do Iêmen, que sequer são zonas oficiais de guerra. Os EUA nem sabem dizer quantas centenas de civis inocentes foram assassinados nesses ataques – todos eles aprovados e autorizados pelas mais altas autoridades do governo federal em Washington. Todos esses crimes seriam impensáveis há apenas alguns anos.

Essas políticas têm efeito evidente e grave sobre a política exterior dos EUA. Altos funcionários da inteligência e oficiais militares, além de defensores dos direitos das vítimas nas áreas alvos, afirmam que a violenta escalada no uso dos drones como armas de guerra está empurrando famílias inteiras na direção das organizações terroristas; enfurece a população civil contra os EUA e os norte-americanos; e autoriza governos antidemocráticos, em todo o mundo, a usar os EUA como exemplo de nação violenta e agressora.

Simultaneamente, vivem hoje 169 prisioneiros na prisão norte-americana de Guantánamo, em Cuba. Metade desses prisioneiros já foram considerados livres de qualquer suspeita e poderiam deixar a prisão. Mas nada autoriza a esperar que consigam sair vivos de lá. Autoridades do governo dos EUA revelaram que, para arrancar confissões de suspeitos, vários prisioneiros foram torturados por torturadores a serviço do governo dos EUA, submetidos a simulação de afogamento mais de 100 vezes; ou intimidados sob a mira de armas semiautomáticas, furadeiras elétricas e ameaças (quando não muito mais do que apenas ameaças) de violação sexual de esposas, mães e filhas. Espantosamente, nenhuma dessas violências podem ser usadas pela defesa dos acusados, porque o governo dos EUA alega que são práticas autorizadas por alguma espécie de ‘lei secreta’ indispensável para preservar alguma “segurança nacional”. Muitos desses prisioneiros – mantidos em Guantánamo como, noutros tempos, outros inocentes também foram mantidos em campos de concentração de prisioneiros na Europa – não têm qualquer esperança de algum dia receberem julgamento justo nem, sequer, de virem a saber de que crimes são acusados.

Em tempos nos quais o mundo é varrido por revoluções e levantes populares, os EUA deveriam estar lutando para fortalecer, não para enfraquecer cada dia mais, os direitos que a lei existe para garantir a homens e mulheres e todos os princípios da justiça listados na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Em vez de garantir um mundo mais seguro, a repetida violação de direitos humanos, pelo governo dos EUA e seus agentes em todo o mundo, só faz afastar dos EUA seus aliados tradicionais; e une, contra os EUA, inimigos históricos.

Como cidadãos norte-americanos preocupados, temos de convencer Washington a mudar de curso, para recuperar a liderança moral que nos orgulhamos de ter, no campo dos direitos humanos. Os EUA não foram o que foram por terem ajudado a apagar as leis que preservam direitos humanos essenciais. Fomos o que fomos, porque, então, andávamos na direção exatamente oposta à que hoje trilhamos.