quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Oito anos após derrubar lei da anistia, Argentina condena 18 militares por tortura e homicídios - por Marcia Carmo (BBC Brasil)

Oito anos após o fim das leis de anistia, a Justiça da Argentina condenou, nesta quarta-feira, 16 militares por crimes contra a humanidade. Os oficiais foram responsabilizados por torturas e mortes ocorridas na Escola Superior da Marinha (Esma), em Buenos Aires.

Na sentença, treze foram condenados à prisão perpetua e os outros a mais de dezoito anos de prisão. Dois foram absolvidos.

Trata-se do julgamento que reuniu o maior número de militares desde que as leis que anistiavam os oficiais da última ditadura argentina foram revogadas, em 2003. O júri também é o primeiro da chamada "mega causa da Esma", por reunir centenas de casos.

A Esma foi definida por entidades de direitos humanos como "um dos maiores centros de detenção clandestina e de extermínio" da última ditadura argentina (1976-1983).

Durante a leitura da sentença, o juiz disse que os réus foram "condenados por perseguições, homicídio qualificado e roubo de bens da vitima".

Veredicto

Os acusados foram condenados por crimes contra 86 pessoas, das quais 28 continuam desaparecidas e cinco foram assassinadas.

A decisão da Justiça foi tomada após 22 meses de investigação. Mais de 160 pessoas foram ouvidas.
O veredicto foi transmitido ao vivo pelas principais emissoras de televisão do país e através de um telão em frente ao tribunal, em Buenos Aires.

Familiares das vitimas acompanharam o julgamento na sala de audiência do tribunal e aplaudiram quando foi lida a sentença.

Vítimas

A Justiça estima que cinco mil vítimas da ditadura argentina passaram pelas instalações da Esma.
Entre as vitimas "de tormentos e homicídios" está Azucena Villaflor, uma das fundadoras da organização Mães da Praça de Maio, que denunciava a repressão e procurava um filho desaparecido na época.

Duas freiras francesas que apoiavam o grupo, Alice Domon e Leonie Duquet, e o escritor Rodolfo Walsh também estiveram presos na Esma.

"É um dia histórico. Marca o enorme avanço na luta coletiva pelos direitos humanos", disse Patrícia Walsh, filha do escritor, cujo corpo nunca foi encontrado.

Maternidade clandestina

No local chegou a existir uma maternidade clandestina, segundo a organização Avós da Praça de Maio. O grupo luta para identificar os filhos de militantes que deram a luz no local e tiveram seus bebês adotados por membros da ditadura.

Entre os condenados a prisão perpétua está o ex-capitão de fragata Alfredo Astiz, que ficou conhecido como "anjo loiro" ou "anjo da morte".

Astiz foi acusado de se infiltrar em entidades de direitos humanos e de entregar doze pessoas aos repressores, entre as quais Azucena Villaflor.

Em entrevista à BBC Brasil, a advogada Carolina Varsky, da ONG CELS (Centro de Estudos Legais e Sociais), disse que o veredicto era esperado "há muito tempo". "Muitas famílias lutaram durante anos por este momento", disse.

Anistia

A investigação sobre os crimes cometidos na Esma foi aberta nos anos 1980, após a redemocratização do país. O inquérito foi depois arquivado com as leis do Ponto Final (1986) e da Obediência Devida (1987).
As leis, que anistiaram os agentes da ditadura, foram promulgadas durante o governo do presidente Raul Alfonsín (1983-1989).

Em 2003, o Congresso aprovou um projeto de lei enviado pelo então presidente Nestor Kirchner (2003-2007) que abriu caminho para o retorno dos julgamentos.

Na mesma ocasião, a Justiça também declarou inconstitucionais os indultos dados pelo ex-presidente Carlos Menem (1989-1999) beneficiando repressores e ex-guerrilheiros.

Ativistas de direitos humanos esperam que a Justiça ainda dê seu veredicto sobre casos vinculados aos chamados ‘voos da morte’, quando presos políticos eram lançados vivos no rio da Prata e no mar.

Por determinação do ex-presidente Kirchner, a Esma foi transformada em um "centro cultural e de memória".

Comentário
Coisa de país sério.

Hipocrisia contra o WikiLeaks - por Paulo Moreira Leite (Época)

Há menos de um mês, um número colossal de jornalistas levantou-se para defender uma propaganda de sutiã e calcinha.

Agora, ouço o silêncio barulhento sobre o bloqueio econômico ao Wikileaks. É de envergonhar.

Vamos combinar. O sutiã e a calcinha de Gisele Bundchen faziam parte de uma campanha publicitária. Como diz o estatuto do conselho que regula o trabalho das agências, é um debate que expressa a liberdade de expressão comercial. Você pode até considerar que o esforço para tirar a propaganda do ar foi um absurdo mas tem de reconhecer que há uma diferença nessa discussão.

O Wikileaks é parte da liberdade de expressão — sem adjetivos. Com certeza, seus documentos incomodam. São provocadores, como acontece com todas revelações que mostram que o rei está nu.


Foi assim, há mais de três décadas, com os papéis do Pentágono, que, graças a uma senteça da Suprema Corte, o New York Times pode divulgar em plena Guerra do Vietnã, trazendo para o público americano as discussões internas de Washington sobre o conflito.

A liberdade de expressão pode ser tão inconveniente como toda denúncia que incomoda os donos do poder nos EUA, na França, na Russia e no Brasil.

Ao liberar um conjunto de 250 000 documentos da diplomacia americana o Wikileaks prestou um favor à democracia mundial. Contribuiu para a transparência. Permitiu que os cidadãos ficassem melhor informados sobre a atuação do governo americano. Flagrou figurões que diziam uma coisa em público e falavam o oposto quando se encontravam com a diplomatas dos EUA.

Numa demonstração de que não pretendia fazer um serviço leviano nem irresponsável, o Wikileaks entregou seu arquivo para respeitáveis veículos da imprensa internacional, reconhecidos por sua credibilidade e senso de responsabilidade. Nos EUA, o órgão escolhido foi o New York Times. Na França, Le Monde. Na Espanha, El País. E assim por diante.

Mesmo assim, a Casa Branca decidiu mobilizar sua máquina política para sufocar a organização. Mantém atrás das grades o militar que é suspeito — apenas isso, suspeito — de fornecer os documentos divulgados.

Seria equivalente a mandar prender o executivo do FBI que estava por trás das denúncias que alimentaram o escândalo Watergate.

Traduzindo em termos brasileiros e atuais, seria o mesmo que o governo Dilma Rousseff mandar prender o PM que faz acusações contra o ministro dos Esportes Orlando Silva — e olha que ele nem sempre se apoia em documentação tão sólida para dizer o que diz. Imagino a reação.

Não importa. Washington foi mais fundo. Pressionou empresas de cartão de crédito e outras instituições financeiras para cortar os canais de financiamento do Wikileaks, num esforço óbvio para inviabilizar seu funcionamento. Numa demonstração de que o mercado nem sempre obedece a uma célebre mão invisível, elas preferiram atender aos apelos da Casa Branca e interromper os pagamentos que garantiam o funcionamento do Wikileaks.

É inacreditável.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Fifa quer submissão do esporte e do país a seus negócios - por Marcelo Semer (Terra magazine)

Lendo a Lei Geral da Copa, conclui que a Fifa não quer mais organizar o mundial no Brasil.

Quer organizá-lo em um país imaginário. Pasárgada talvez, onde pode reescrever todas as leis, pelo menos enquanto durar o campeonato.

A Fifa quer rapidez e não embaraços para os vistos de quem participa do evento e de quem lucra com ele. Quer ultrapassar prazos e obstáculos para a garantia da propriedade intelectual. Quer uma justiça rápida e ágil para as causas que enfrentar, ou que a União enfrentar por ela.

Mas tudo isso apenas até o apito da final no Maracanã. Depois, o Brasil tem a permissão para continuar sendo o Brasil.

É curioso que pensando em uma lei para garantir tamanha segurança ao evento, a entidade tenha concordado em marcar seu glorioso início para um estádio que ainda nem sequer existe.

Que segurança quer a Fifa? A dos negócios, certamente.

Para quem conhece o direito, sabe que a lei da Copa pode ser tudo, menos geral. É a mais específica legislação com que já tive contato - não tem o atributo comum das leis de serem genéricas ou perenes. Tudo o que nela está escrito se desmanchará no ar em dezembro de 2014. Até mesmo os crimes, que a entidade pretende criar no país para proteger, adivinhe só, os lucros.

A Fifa não se preocupa com legados, só com a terraplanagem para negócios.

Se o leitor for se atrever a ler o projeto de lei, sugiro Liza Minelli cantando "Money makes the world go around", em Cabaret, como fundo musical. Vai compreender melhor do que se trata.

A Fifa quer a submissão do país a suas regras, nas quais já é lei a submissão do futebol ao dinheiro.

Que outra razão existiria para estipular os crimes do marketing de intrusão ou de emboscada e querer proibir que produtos de outros fornecedores possam ser vendidos inclusive nas "vias de acesso" aos estádios?

Garantiremos o espetáculo ou o bom futebol prendendo as belas holandesas que chamaram atenção dos câmeras na África do Sul, propagandeando uma cerveja que nem soubemos qual era? Ou apreendendo isopores dos camelôs de beira do estádio?

Andaria melhor a federação do futebol, interessar-se pelo "corpore sano" do esporte, banindo ela mesma a publicidade de bebidas alcóolicas. Evitaria que mais gerações de jovens torcedores se iniciassem tão cedo no vício. Quem sabe de quebra pouparíamos algumas vidas que vem sendo dizimadas por motoristas irresponsáveis.

Nós já devíamos ter aprendido a confusão que é misturar, em alta medida, esporte, Estado e negócios.

Melhor exemplo que a exploração dos bingos, a pretexto de municiar ONGs ligadas ao esporte dito amador não precisamos.

A Lei Pelé, de 1998, arregaçou as portas para a exploração do jogo e acabou por agregar o crime organizado nas entranhas do esporte, sobrando resquícios até mesmo para o Judiciário. Abriu-se uma caixa de Pandora que não fecharia tão fácil, como temos visto mais recentemente.

Para quem não tiver a oportunidade de lucrar com a Copa, ela será certamente um continente de frustrações.

Remoções de moradores de habitações populares já são constantes nas capitais. A higienização das ruas está em marcha, como pretexto para a salvaguarda de crianças carentes. O dinheiro público será concretado em arenas privadas que poucos conseguirão frequentar durante ou mesmo depois da Copa.

Se o campeonato fosse em outro país, quem sabe podíamos pensar um pouco mais no futebol para tentar evitar o que parece ser um desastre anunciado: a seleção nem chegar a conhecer o novo Maracanã.

Para quem supõe estranheza com o tamanho do poder de uma entidade internacional com começo, meio e fim lucrativo, devia entender o recado que os indignados estão espalhando mundo afora, de Cairo a Barcelona, de Nova York a São Paulo.

O poder não está restrito a quem tem voto. Está na Fifa, está em Wall Street, está na grande mídia, bem além dos partidos.

O que os indignados estão denunciando é justamente a submissão dos Estados às grandes corporações, independente de seus governos e até mesmo de suas oposições.

Situações que resultam em ajudas financeiras estratosféricas a bancos que quebram e cortes de verbas públicas destinadas justamente a quem sofre com as perdas.

Ou a submissão dos interesses do país a negócios transitórios que acabam por beneficiar basicamente os mesmos 1%.

Quando o campeonato começar, quem vai ocupar seus gramados?


Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

O aparelhamento do Estado e a formação da “militância playmobil”

Os ataques da imprensa sobre o Ministério dos Esportes e o PCdoB podem até não dar em nada, mas algumas coisas começam a ficar muito claras.
A mídia se baseia em alguns fatos concretos, como a gravação da conversa de um ex-militante com um filiado ao partido, e outros nem tão razoáveis assim, como a aquisição de um terreno por parte do Ministro, que a princípio não parece possuir bens fora do padrão. Neste último caso é uma especulação descabida, mas que não invalida os outros fatos.
Mas o que ninguém está falando se relaciona ao que realmente está acontecendo e nem mesmo o Ministério faz questão de esconder: a absurda utilização do dinheiro público para aparelhamento de um partido.
São várias ONG´s organizadas por filiados do PCdoB espalhadas pelo Brasil sendo sustentadas com recursos públicos, em um aparelhamento descarado.
Vamos supor que não houvesse problemas com a prestação dos serviços, e que as acusações de que 20% estariam sendo desviados não existisse.
Se estiver tudo certo já estará tudo errado.
A justificativa de que é um procedimento legal não invalida o questionamento político do aparelhamento estatal com a finalidade de fazer política. Não dei (e muito menos milhões de pessoas) meu voto em Dilma (no segundo turno) nem em Lula para que fosse dado ao PCdoB o direito de distribuir centenas de milhões de reais entre ONG´s de partidários.
Outro pergunta completamente cabível é: suponhamos que o PM que denunciou Orlando seja um bandido, como é que o partido e o Ministério se envolvem política e administrativamente com um camarada deste quilate?
Quem precisa esclarecer isso é o próprio partido, e não a mídia.
Particularmente acho pouco provável o próprio Ministro ter se envolvido em negócios com o PM denunciante, mas que a máquina do Ministério, especialmente à época de Agnelo Queiroz, se envolveu, não resta dúvidas.
O pior é a cegueira que toma conta de uma parte da esquerda, que nem ao menos questiona o aparelhamento da estrutura estatal, como se isso fosse uma coisa normal.
Começa-se a partir do princípio de que mandar dinheiro para uma ONG amiga fazer um projeto ao invés de enviar a uma Prefeitura é algo absolutamente normal.
 
Militância “aguerrida” não questiona mais nada
Esperava-se certo comportamento republicano da esquerda, mas foi justamente o contrário.
Nem mesmo a direitona do Governo Collor e Sarney foi tão longe.
Como disse o Senador Cristovam Buarque hoje pelo Twitter: “Pior da corrupção é que está formando uma geração de militantes cínicos.”
Parece que estamos formando uma massa de playmobils. Não se questiona, não se envergonha, apenas defende, como se bonecos fossem.
Não importa se um deputado se junta ao que há de pior na política para aprovar uma nova lei ambiental, ou mesmo se o Governo esquece que utilizou um discurso terrorista em relação à privatização e logo depois parte para privatizar aeroportos. O que importa é que o “centralismo democrático” manda e a manada obedece.
E se alguém se coloca contra, rapidamente é classificado como direitoso ou de estar fazendo o jogo da direita. O maniqueísmo exarcebado conceitua um lado como “progressista” e outro como “atrasado”, como se fosse possível uma verdade absoluta.
O cidadão nem se dá o direito de colocar meia dúzia de neurônios críticos para funcionar, para avaliar se o que sai na mídia tem ou não fundamento. Se está contra meu partido, está errado.
No fundo são energúmenos em estado bruto.
Uma vergonha para todos os que sonham por um país decente.

Juiz critica monopólios na mídia e aponta manipulação em cobertura da RBS - por Marco Aurélio Weissheimer (Cartamaior)

O presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), João Ricardo dos Santos Costa, criticou a cobertura que o jornal Zero Hora fez de um seminário sobre liberdade de imprensa e Poder Judiciário, em Porto Alegre. A matéria sobre o evento omitiu a parte do debate relacionada aos monopólios de comunicação. “Esse é um caso paradigmático: em um evento promovido para discutir a liberdade de imprensa, a própria imprensa comete um atentado à liberdade de imprensa ao omitir um dos principais temas do evento", diz o juiz em entrevista à Carta Maior.
Marco Aurélio Weissheimer

No dia 21 outubro, a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) e a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) promoveram, em Porto Alegre, um seminário para discutir liberdade de imprensa e Poder Judiciário. O convite para o encontro partiu da ANJ que já promoveu um debate similar junto ao Supremo Tribunal Federal ((Ver artigo de Venício LimaDireito à comunicação: o “Fórum” e a “Ciranda”). Os interesses temáticos envolvidos no debate não eram exatamente os mesmos. Enquanto que a ANJ e as suas empresas afiliadas estavam mais interessadas em debater a liberdade de imprensa contra ideias de regulação e limite, a Ajuris queria debater também outros temas, como a ameaça que os monopólios de comunicação representam para a liberdade de imprensa e de expressão.

O jornal Zero Hora, do Grupo RBS (e filiado a ANJ) publicou no sábado (24/10/2011) uma matéria de uma página sobre o encontro. Intitulada “A defesa do direito de informar”, a matéria destacou as falas favoráveis à agenda da ANJ – como as da presidente da associação, Judith Brito, e do vice-presidente Institucional e Jurídico da RBS, Paulo Tonet – e omitiu a parte do debate que tratou do tema dos monopólios de comunicação. Na mesma edição, o jornal publicou um editorial furioso contra o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, acusando-o de querer censurar o jornalismo investigativo (Ver matéria: Tarso rechaça editorial da RBS e diz que empresa manipulou conteúdo de conferência). No mesmo editorial, o jornal Zero Hora apresentou-se como porta-voz da “imprensa livre e independente” e afirmou que “a credibilidade é a sua principal credencial”.

Agora, dois dias depois de o governador gaúcho acusar a RBS de ter manipulado o conteúdo de uma conferência que proferiu no Ministério Público do RS, omitindo uma parte que não interessava à construção da tese sobre a “censura ao jornalismo investigativo”, mais uma autoridade, desta vez o presidente da Ajuris, João Ricardo dos Santos Costa, vem a público criticar uma cobertura da RBS, neste caso, sobre o evento promovido em conjunto com a ANJ. A omissão da parte do debate relacionada ao tema do monopólio incomodou o presidente da Associação de Juízes.

“Esse é um caso paradigmático: em um evento promovido para discutir a liberdade de imprensa, a própria imprensa comete um atentado à liberdade de imprensa ao omitir um dos principais temas do evento que era a discussão sobre os monopólios de comunicação”, disse João Ricardo dos Santos Costa em entrevista à Carta Maior.

Na entrevista, o presidente da Ajuris defende, citando Chomsky, que “o maior obstáculo à liberdade de imprensa e de expressão são os monopólios das empresas de comunicação”. A “credibilidade” reivindicada pela RBS no editorial citado não suporta, aparentemente, apresentar a voz de quem pensa diferente dela. “O comportamento do jornal em questão ao veicular a notícia suprimindo um dos temas mais importantes do debate, que é a questão dos monopólios, mostra justamente a necessidade daquilo que estamos defendendo”, destaca o magistrado.

Carta Maior: Qual foi o objetivo do seminário sobre Liberdade de Imprensa e Poder Judiciário e quais foram os principais temas debatidos no encontro realizado dia 21 de outubro em Porto Alegre?

João Ricardo dos Santos Costa: A Ajuris foi procurada pela Associação Nacional de Jornais (ANJ) para promover um evento com o objetivo de debater liberdade de imprensa e o Poder Judiciário. A relação se justifica pelo grande número de questões que chegam ao Judiciário envolvendo a atividade jornalística. Essas questões envolvem, muitas vezes, decisões que limitam a divulgação de certas matérias. Pois bem, fomos procurados para fazer esse debate que gira em torno de dois valores constitucionais: a liberdade de expressão e a independência do Judiciário. Para alguns haveria um aparente conflito entre esses dois princípios. Nós nos dispomos, então, a construir por meio do debate o que significa a convivência desses dois valores em sociedade democrática. Esse foi o grande desafio que esse evento pretendia enfrentar.

Há duas posições veementes neste debate. De um lado há aqueles que não admitem nenhum tipo de cerceamento à informação; de outro, há aqueles que não admitem qualquer tipo de restrição ao trabalho do Judiciário. Do ponto de vista constitucional, cabe ao Judiciário solucionar todos os conflitos, inclusive os que envolvem a imprensa. A imprensa não está fora das regulações judiciais. Há um embate muito forte entre essas duas posições. Se, de um lado, a ANJ buscou explorar o tema da liberdade de imprensa sob a ótica da atividade judicial, nós buscamos fazer um debate sobre a questão constitucional da liberdade de imprensa, no que diz respeito à distribuição de concessões aos veículos de comunicação.

Carta Maior: Por que a Ajuris decidiu abordar o tema da liberdade de imprensa sob essa ótica?

João Ricardo dos Santos Costa: Chomsky tem dito que o maior obstáculo à liberdade de imprensa e de expressão são os monopólios das empresas de comunicação. Não só ele, aliás. Vários pensadores contemporâneos dizem a mesma coisa. Para nós, esse é o cerne da questão. Hoje não há pluralidade, não há apropriação social da informação. O que existe é o interesse econômico que prepondera. Os editoriais são muito mais voltados aos negócios. Hoje mesmo, o editorial de um jornal local [Zero Hora/RBS] expressa preocupação com a vitória de Cristina Kirchner na Argentina dizendo que seria um governo populista que teria explorado o luto [pela morte de Néstor Kirchner] para se reeleger.

Há toda uma preocupação sobre o que representa esse governo para os negócios das empresas de comunicação, em especial no que diz respeito ao conflito entre o governo argentino e o grupo Clarín. A sociedade brasileira só tem conhecimento do lado da empresa de comunicação. A visão do governo argentino sobre esse tema nunca foi exposta aqui no Brasil.

E aí vem uma questão fundamental relacionada à liberdade de imprensa. O problema não é o que os meios de comunicação veiculam, mas sim o que omitem. Esse é o grande problema a ser superado.

Carta Maior: E esse tema foi debatido no seminário?

João Ricardo dos Santos Costa: No nosso evento, eu lembro de uma fala do deputado Miro Teixeira. Ele disse que a história da censura envolve o cerceamento de grandes pensadores da humanidade, como Descartes, Locke, Maquiavel, Montesquieu, entre outros. Citou isso para exemplificar os danos sociais dessa censura. Mas hoje o que nós observamos é que os grandes pensadores contemporâneos são cerceados não pelos censores que existiam antigamente, mas pelos próprios detentores dos meios de comunicação. Os grandes meios de comunicação não veiculam, não debatem hoje os grandes pensadores da humanidade. Nomes como Amartya Sen, Noam Chomsky, Hobsbwan, entre outros, não têm suas ideias discutidas na mídia, não são procurados para se manifestar sobre as grandes questões sociais. Não são chamados pela grande mídia para dar sua opinião e o que acaba prevalecendo é o interesse do capital financeiro, que é aquele que não vai pagar a conta da crise.

Eu dou esse exemplo para demonstrar a gravidade do problema representado por esse monopólio, esse interesse econômico preponderante sobre o direito à informação. Esse interesse diz incessantemente para a sociedade que a única saída para superar a crise atual é por meio do sacrifício dos mais pobres e dos setores médios da população. Não se toca na questão do sacrifício do setor financeiro. Este setor não pode ter prejuízo. Quem vai ter prejuízo é a sociedade como um todo, mesmo que isso atinja direitos fundamentais das pessoas.

Então, esse debate sobre a democratização dos meios de comunicação é extremamente importante e deve começar a ser feito de forma transparente para que a sociedade se aproprie do que realmente está acontecendo e que possa ter autonomia em suas decisões e mesmo influenciar a classe política que hoje está entregue aos grandes financiadores de campanha que são os mesmos que fornecem a informação enlatada que estamos recebendo. Nós, da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, estamos propondo esse debate para a sociedade.

Carta Maior: Esse debate que o senhor relatou não apareceu na cobertura midiática do encontro pelo grupo RBS, que participou do mesmo. O jornal Zero Hora dedicou uma página ao encontro, com uma matéria intitulada “A defesa do direito de informar”, sem fazer nenhuma menção a essa parte do debate envolvendo os temas do monopólio e da democratização dos meios de comunicação. Como é que a Ajuris, que propôs esse debate, recebe esse tipo de cobertura?

João Ricardo dos Santos Costa: O comportamento do jornal em questão ao veicular a notícia suprimindo um dos temas mais importantes do debate, que é a questão dos monopólios, mostra justamente a necessidade daquilo que estamos defendendo. É como eu disse antes: o problema maior é aquilo que é omitido, aquilo que não é revelado. Esse é um caso paradigmático: em um evento promovido para discutir a liberdade de imprensa, a própria imprensa comete um atentado à liberdade de imprensa ao omitir um dos principais temas do evento que era a discussão sobre os monopólios de comunicação. Nós não vamos nos omitir em tratar desse assunto por mais dolorido que ele possa ser. É evidente que não é um assunto que deva ser banalizado. Ele é o mais importante de todos. Estamos tratando de pluralidade de pensamento.

Carta Maior: No debate, o deputado federal Miro Teixeira defendeu que a liberdade de imprensa é um direito absoluto. Qual sua opinião sobre isso?

João Ricardo dos Santos Costa: Eu compartilho a ideia de que não há nenhum direito absoluto, não pode haver. Neste contexto de monopólio, menos ainda. Liberdade absoluta de imprensa em um contexto onde sequer a Constituição Federal é cumprida. no sentido de proibir a existência de monopólios. É algo completamente daninho à democracia. Outra coisa com a qual eu também não concordo , envolvendo esse debate, é a afirmação do ministro Marco Aurélio Buzzi (do Superior Tribunal de Justiça) de que nós temos liberdade até para matar. Nós não temos liberdade para matar. Não vejo, dentro da nossa organização jurídica e de sociedade, que tenhamos liberdade para matar. Do fato de, no Código Penal brasileiro, “matar alguém...pena de tanto a tanto” aparecer como uma expressão afirmativa, não se segue o direito de matar. Nós não podemos matar e não podemos violar o Direito. Não temos essa liberdade. Não temos a liberdade de tirar a liberdade das outras pessoas. O direito individual não chega a esse radicalismo que se pretende com essa afirmação de que a liberdade de imprensa é um direito absoluto.

Carta Maior: A ANJ realizou recentemente, no Supremo Tribunal Federal (STF), um seminário semelhante a este realizado no Rio Grande do Sul. Há, portanto, uma óbvia preocupação com a posição do Poder Judiciário neste debate. Qual é, na sua avaliação, o papel do Judiciário neste contexto?

João Ricardo dos Santos Costa: O fato de se debater, em primeiro lugar, é um grande caminho para amadurecer esses institutos que, aparentemente, estão colidindo, na sociedade. É lógico que o Judiciário, nesta e em outras grandes questões da sociedade brasileira, tem sido provocado a se pronunciar. Muito pela ineficiência do Poder Legislativo. O STF tem decidido sobre questões que o Legislativo se mostra incapaz de resolver: união homoafetiva, aborto, demarcação de terras indígenas, células-tronco, entre outros. A pressão envolvendo esses temas está vindo para cima do Judiciário. E o Judiciário, por sua formatação de autonomia e independência, ele se mostra menos vulnerável a pressões. Decidir é da essência do Poder Judiciário, desagradando um dos lados em litígio.

Quando esse lado é muito poderoso, os danos à instituição podem ser pesados. Numa decisão, por exemplo, que contraria os interesses de um monopólio de comunicação, esse monopólio joga todo esse seu poder para atingir a credibilidade do Judiciário como instituição. Creio que aí aparece um outro grande debate que deve ser feito sobre até que ponto esse tipo de postura não corrói a nossa democracia.

Comentário
Nem só de Gilmar Dantas é feito o judiciário brasileiro...

domingo, 23 de outubro de 2011

O tablet do Eike e a registradora dos nossos capitalistas - por Fernando Brito

O empresário Eike Batista disse que uma das razões de ter se oferecido para ser sócio da Foxconn, fabricante de tablets de Taiwan que vai se instalar no Brasil, é a de que “adora trazer modernidade para o Brasil”.

Pode ser, mas do que Eike Batista gosta mesmo é de ganhar dinheiro, e muito. É por isso que se mete em negócios tão diversos quanto petróleo, construção naval, mineração, hotelaria e, agora, informática.

E não apenas ganha, como vai ganhar muito, muitíssimo mais.

Mas o que mais faz Eike Batista ganhar dinheiro não é ele, são seus não-competidores.

Os grandes capitalistas brasileiros – e não há maiores capitalistas brasileiros que os banqueiros - parecem, muitas vezes, uma versão high-tech dos amanuenses que viraram banqueiros e se comportam não como bancos, mas como – na descrição magnífica de José Cândido de Carvalho, no livro O Coronel e o Lobisomem - tamboretes, com alma de dez por cento ao mês.

Estão todos sempre se dizendo muito preocupados com meia-dúzia de sujeitos que não pagaram o carnê, um alfinete de prejuízo que milhares de outros já pagaram com muita sobra, pelas taxas monstruosas que cobram e consomem seus dias e recursos executivos com manobras de compra e venda e especulação.

Medem seu sucesso pelo lucro trimestral, porque não conseguem olhar ao longe e ver que este país, se tem algo maior do que tudo, são seus horizontes.

Há dois meses, numa entrevista a O Globo, onde os repórteres pareciam mais preocupados do que ele com as perdas em bolsa das ações de suas empresas, Eike revelou, com rara crueza, o que se ganha com as riquezas naturais do país:

O Brasil está numa posição muito, muito especial. Eu vou produzir petróleo a US$ 18 (o barril). Pergunta se eu estou preocupado se ele está caindo de US$ 100 para US$ 90. Se cair para US$ 80, tudo bem, who cares (quem se importa, em inglês)? Meu custo de produção de minério de ferro é de US$ 29. O minério chegou a mais de US$ 170 em meio à crise, subiu de preço. Meus ativos são à prova de idiotas porque são muito ricos”.

Eike é um ambicioso e não duvido que faça das suas. Não o conheço pessoalmente e não me consta que tenha feito alguma benesse que faça o lado de cá lhe ser simpático. E, aos 52 anos de trabalho e de contas para pagar, não estou dando a mínima para acharem que o que lhe faço são elogios. E não tenho a menor ideia se ele tem cacife para bancar tantos apetites.

São, ao contrário, uma crítica ao sub-capitalismo que, com raras exceções, domina o país, porque pensa a curto prazo, porque não enxerga o óbvio: que o Brasil é um país fadado a ser grande, imenso economicamente.

A diferença entre um tipo como este e outro, como o Roger Agnelli é claramente resumida num negócio naval. Agnelli precisava de navios para a Vale, cotou preços e por uns caraminguás a menos, mandou fazer 12 dos maiores navios do mundo na China e na Coréia. Eike precisava de navios-plataforma para seu campo de petróleo, cotou preços, e por uns caraminguás a mais resolveu montar um estaleiro e ganhar o dinheiro que ia pagar para os outros e mais algum.

Não dá para entender que um banco como o Itaú, que tem uma subsidiária de equipamentos de informática, a Itautec, não tenha entrado nessa. O homem que fez deste banco um império, Olavo Setúbal, surgiu como empresário de sucesso quando dirigia a Deca e fazia válvulas de descarga, quando boa parte da população brasileira estava “na casinha”, sem instalações sanitárias.

Uma parte da elite capitalista brasileira acha “feio” produzir coisas. Bonito, mesmo, só o mercado financeiro. Seu raciocínio econômico se limita a vender o Brasil, “sem aspa”s, à vista, ao tilintar da registradora , quando todo o mundo quer “comprar” o Brasil como perspectiva de médio prazo.

Termino o raciocínio do jeito que comecei: Eike Batista gosta muito de ganhar dinheiro e muito dinheiro. Vai ser assim com os tablets da Foxconn, também, e ele diz isso no Estadão, afirmando que o mercado brasileiro para o produto é bastante promissor, visto que cresce a velocidade maior do que a verificada na Europa e nos EUA. “O potencial é enorme. Imagine os 70 milhões de estudantes brasileiros cada um com um tablet”.

Pois é, o dia em que os grandes empresários do Brasil entenderem que este tamanho do país é sua maior fonte de lucros, o Eike Batista vai passar a ganhar menos.

Porque são os “idiotas” que se preocupam só com o lucro instantâneo que deixam tanto espaço aberto para ele.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Soledad - por Urariano Mota (Agência Carta Maior)

Soledad, a mulher do Cabo Anselmo

Quem foi, quem é Soledad Barrett Viedma? Qual a sua força e drama, que a maioria dos brasileiros desconhece? De modo claro e curto, ela foi a mulher do Cabo Anselmo, que ele entregou a Fleury em 1973. Sem remorso e sem dor, o Cabo Anselmo a entregou grávida para a execução. Com mais cinco militantes contra a ditadura, no que se convencionou chamar “O massacre da granja São Bento”. Esse crime contra Soledad Barrett Viedma é o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil.
Urariano Mota

Nota da Redação: O programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, entrevista nesta segunda, às 22 horas, o ex-militar José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, ex-participante de um motim na Marinha, nos anos 60, que, após um período de exílio em Cuba, voltou para o Brasil, foi preso e delatou perseguidos políticos ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DOPS. A lista de denunciados incluiu sua companheira, Soledad Viedma, que acabou torturada e morta pela ditadura. A TV Cultura escolheu o Cabo Anselmo como entrevistado para marcar a estreia de Mario Sergio Conti, ex-diretor da Veja e atual diretor de redação da revista Piauí, na condução do programa.


A escolha se dá justo no momento em que se discute no Brasil a instalação da Comissão da Verdade, que enfrenta muita resistência de setores que insistem em manter na penumbra fatos ocorridos em um dos períodos mais tenebrosos da história do Brasil. Publicamos a seguir um artigo do escritor Urariano Mota, autor de um livro sobre Soledad Viedma.

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Em 1970, de volta ao Brasil, Anselmo foi preso pela ditadura militar. Em troca da liberdade, delatou perseguidos políticos ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops. A lista de denuciados incluía sua namorada, Soledad Viedma, que acabou morta devido à tortura.

Quem lê “Soledad no Recife” pergunta sempre qual a natureza da minha relação com Soledad Barrett Viedma, a bela guerreira que foi mulher do Cabo Anselmo. Eu sempre respondo que não fomos amantes, que não fomos namorados. Mas que a amo, de um modo apaixonado e definitivo, enquanto vida eu tiver. Então os leitores voltam, até mesmo a editora do livro, da Boitempo: “mas você não a conheceu?”. E lhes digo, sim, eu a conheci, depois da sua morte. E explico, ou tento explicar.

Quem foi, quem é Soledad Barrett Viedma? Qual a sua força e drama, que a maioria dos brasileiros desconhece? De modo claro e curto, ela foi a mulher do Cabo Anselmo, que ele entregou a Fleury em 1973. Sem remorso e sem dor, o Cabo Anselmo a entregou grávida para a execução. Com mais cinco militantes contra a ditadura, no que se convencionou chamar “O massacre da granja São Bento”. Essa execução coletiva é o ponto. No entanto, por mais eloquente, essa coisa vil não diz tudo. E tudo é, ou quase tudo.

Entre os assassinados existem pessoas inimagináveis a qualquer escritor de ficção. Pauline Philipe Reichstul, presa aos chutes como um cão danado, a ponto de se urinar e sangrar em público, teve anos depois o irmão, Henri Philipe, como presidente da Petrobras. Jarbas Pereira Marques, vendedor em uma livraria do Recife, arriscou e entregou a própria vida para não sacrificar a da sua mulher, grávida, com o “bucho pela boca”. Apesar de apavorado, por saber que Fleury e Anselmo estavam à sua procura, ele se negou a fugir, para que não fossem em cima da companheira, muito frágil, conforme ele dizia. Que escritor épico seria capaz de espelhar tal grandeza?

E Soledad Barrett Viedma não cabe em um parêntese. Ela é o centro, a pessoa que grita, o ponto de apoio de Arquimedes para esses crimes. Ainda que não fosse bela, de uma beleza de causar espanto vestida até em roupas rústicas no treinamento da guerrilha em Cuba; ainda que não houvesse transtornado o poeta Mario Benedetti; ainda que não fosse a socialista marcada a navalha aos 17 anos em Montevidéu, por se negar a gritar Viva Hitler; ainda que não fosse neta do escritor Rafael Barrett, um clássico, fundador da literatura paraguaia; ainda assim... ainda assim o quê?

Soledad é a pessoa que aponta para o espião José Anselmo dos Santos e lhe dá a sentença: “Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha. Aqui e além deste século”. Porque olhem só como sofre um coração. Para recuperar a vida de Soledad, para cantar o amor a esta combatente de quatro povos, tive que mergulhar e procurar entender a face do homem, quero dizer, a face do indivíduo que lhe desferiu o golpe da infâmia. Tive que procurar dele a maior proximidade possível, estudá-lo, procurar entendê-lo, e dele posso dizer enfim: o Cabo Anselmo é um personagem que não existe igual, na altura de covardia e frieza, em toda a literatura de espionagem. Isso quer dizer: ele superou os agentes duplos, capazes sempre de crimes realizados com perícia e serenidade. Mas para todos eles há um limite: os espiões não chegam à traição da própria carne, da mulher com quem se envolvem e do futuro filho. Se duvidam da perversão, acompanhem o depoimento de Alípio Freire, escritor e jornalista, ex-preso político:

“É impressionante o informe do senhor Anselmo sobre aquele grupo de militantes - é um documento que foi encontrado no Dops do Paraná. É algo absolutamente inimaginável e que, de tão diferente de todas as ignomínias que conhecemos, nos faltam palavras exatas para nos referirmos ao assunto.

Depois de descrever e informar sobre cada um dos cinco outros camaradas que seriam assassinados, referindo-se a Soledad (sobre a qual dá o histórico de família, etc.), o que ele diz é mais ou menos o seguinte:

‘É verdade que estou REALMENTE ENVOLVIDO pessoalmente com ela e, nesse caso, SE FOR POSSÍVEL, gostaria que não fosse aplicada a solução final’.

Ao longo da minha vida e desde muito cedo aprendi a metabolizar (sem perder a ternura, jamais) as tragédias. Mas fiquei durante umas três semanas acordando à noite, pensando e tentando entender esse abismo, essa voragem”.

Esse crime contra Soledad Barrett Viedma é o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil. Vocês entendem agora por que o livro é uma ficção que todo o mundo lê como uma relato apaixonado. Não seria possível recriar Soledad de outra maneira. No título, lá em cima, escrevi Soledad, a mulher do Cabo Anselmo. Melhor seria ter escrito, Soledad, a mulher de todos os jovens brasileiros. Ou Soledad, a mulher que apredemos a amar.

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A cara de Anselmo

Soledad olha para os olhos do homem que pensara ser o seu companheiro, e isso, essa realidade, o pesadelo por guardar uma altura ética jamais mostrou. O pesadelo fora incapaz de exibir toda a crueza. Anselmo não sorri agora, sorrirá depois, quando lhe perguntarem: - Você dorme bem? A resposta foi algo como: Putz, tranquilamente. Ele apenas assiste ao espancamento e suplício. Como uma prova de que é contra esses terroristas.
Urariano Mota
(*) Trecho do penúltimo capítulo do livro "Soledad no Recife", de Urariano Mota.

A cara de Anselmo, no conjunto dos sinais, Soledad não via. Não tanto porque a desconfiança não lhe houvesse batido à percepção. Mas porque isso era tão horrível, que o seu senso estético repugnava. Uma coisa que o seu peito de justiça não queria nem podia aceitar. E recuava, no mesmo passo em que os indícios cresciam. Mas o Cartório de Registro dos Sonhos existe, ainda que fora do domínio civil de uma cidade. Ele existe ao lado dos lugares onde se bebe, come-se e se morre. Os seus documentos, se não têm efeitos legais, recuperam no real os direitos. Os sonhos, quando muito fortes, os pesadelos, quando inescapáveis, tornam-se tangíveis. Houve então um momento em Sol, houve um espaço e lugar nas suas antevisões, em que se passou do antes para o agora, sem mediação para o horror que jamais havia se apresentado com a sua cara. Nas representações anteriores, nos indícios, não se mostrava assim tão claro.

- Por quê? Por quê?!

A pergunta que Soledad não se fizera diante das imagens que a perseguiam nos últimos meses, por quê?, qual a razão delas, agora à luz do dia em Boa Viagem, em uma butique da ensolarada praia de Boa Viagem, aonde ela foi para vender roupas, onde ela está com Pauline, ali, sob a prazenteira luz física do Brasil, a pergunta pelas razões dos sonhos e pesadelos que ela não se fizera, agora vêm com um susto, um terror, diante do real bruto. José Anselmo dos Santos se encontra entre os homens que lhe batem na cabeça com armas e punhos.

- Por quê Por quê?

Pauline está muda e petrificada, incapaz de correr e falar. Soledad olha para os olhos do homem que pensara ser o seu companheiro, e isso, essa realidade, o pesadelo por guardar uma altura ética jamais mostrou. O pesadelo fora incapaz de exibir toda a crueza. Anselmo não sorri agora, sorrirá depois, quando lhe perguntarem

- Você dorme bem?

- Putz, tranquilamente.

Ou mais textualmente:

- Você dorme tranquilo? Nunca sentiu pesadelo durante a noite? Não tem remorso pelo que fez?

- Absolutamente (risos)....

Por enquanto, não, agora na butique em Boa Viagem ele não ri, embora a cena lhe pareça um tanto cômica.

- Por quê? Por quê?

Ele apenas assiste ao espancamento e suplício. Como uma prova de que é contra esses terroristas.

Eu tomei conhecimento de que seis corpos se encontravam no necrotério.... em um barril estava Soledad Barret Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas. No fundo do barril se encontrava também um feto”.

Quando Mércia Albuquerque declarou essas palavras, não era mais advogada de presos e perseguidos políticos. Estava em 1996, 23 anos depois do inferno. Mércia estava acostumada ao feio e ao terror, ela conhecia há muito a crueldade, porque havia sido defensora de torturados no Recife. Ainda assim, ela, que tanto vira e testemunhara, durante o depoimento na Secretaria de Justiça de Pernambuco falou entre lágrimas, com a pressão sangüínea alterada em suas artérias. Dura e endurecida pela visão de pessoas e corpos desfigurados, o pesadelo de 1973 ainda a perseguia: “Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror”. No depoimento da advogada não há uma descrição técnica dos corpos destruídos, derramados no necrotério.

Mércia Albuquerque é uma pessoa se fraterniza e confraterniza com pessoas. “Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela”. Distante dos manuais exatos da Medicina Legal, a advogada Mércia não se refere a cadáveres, mas a gente. Chama-a pelos nomes, Pauline, Jarbas, Eudaldo, Evaldo, Manuel, Soledad. Recorda a situação vexatória em que estavam – porque eram homens e mulheres –, despidos. O seu relato é como um flagrante desmontável, da morte para a vida. É como o instante de um filme, a que pudéssemos retroceder imagem por imagem, e com o retorno de cadáveres a pessoas, retornássemos à câmara de sofrimento. “A boca de Soledad estava entreaberta”.

Podemos mais, nesse filme que recuamos para antes do terror como um desenvolvimento. E ao voltar, fazemos uma grave descoberta. Se dissermos que havia na pessoa de Soledad o seu caráter, nada demais estaremos dizendo. Assim ela era como personalidade e assim era o seu todo, da suavidade ao calor, à paixão, à inteligência. Se essa visão não é simples, é, pelo menos, quase óbvia. Mas vemos uma coisa que não sabemos se grata, mas que é séria, algo de que jamais desconfiávamos, e por isso jamais imaginamos descobrir: Soledad era uma encarnação de palavras. Isso não é metáfora, nem muito menos “recurso estilístico”. Aqui chegamos a um estágio em que o melhor é narrar colado aos fatos e à sua complexidade.

Pesquisadores já escreveram que, de um ponto de vista genético, todos temos significativa herança dos avós. Mas Soledad, mais que uma herança genética, era filha do seu avô. Em espírito e vida, era filha do escritor Rafael Barret. Isso dito assim, escrito nessa frase, é informação que nada explica nem permanece. Porque é necessário que se diga, mais que se informe, que o escritor Rafael Barret era um homem anarquista, um intelectual anarquista do começo do século XX, e mais, e aqui nos aproximamos do destino de Soledad.

Rafael Barret era, é um escritor poderoso, um artista dos incomuns, dos que fazem obra com o seu pensamento e vísceras. Falecido aos 34 anos, em 1910, foi um espanhol que amou o povo paraguaio com uma dedicação apaixonada, louca, universal, com os olhos críticos contra a podre sociedade de então. Mas tudo que acabo de dizer soa como retórica, como oco panegírico, se não transcrevemos palavras suas, para notar em quê esse escritor era mesmo tão bom, fecundo, adivinhatório. “Às vezes é necessário um motim para restabelecer a ordem”, esclarecia. Rafael Barret poderia ser um humorista, com o seu brilho para o paradoxo, se não tivesse os pés metidos no charco, no Chaco, urgente. Ele parecia ter a consciência clara do quanto os seus curtos dias punham a sua vida no urgente.

Nele há pensamentos que, dirigidos aos paraguaios, atingem os paraguaios de todos os países do mundo. “Enquanto a dor não te queime as entranhas, enquanto um dia de fome e abandono – pelo menos um dia – não te vomite para a vasta humanidade, não a compreenderás”. E como um chamamento, profético, seguido por Soledad Barret, hoje vemos: “Preparem suas crianças para que vivam e morram sem medo”.

Quando adentramos o espírito de Rafael, quanto mais o pesquisamos, mais ficamos em espanto com a solene descoberta, solene porque não só grave, mas séria: Soledad Barret encarnou o mundo de palavras desse gênio. Ainda que passemos ao largo de estranhos acasos, estranhos para não dizê-los impressionantes, acasos, para não dizer coincidências, como os dias de nascimento de Rafael e morte de Soledad, 7 de janeiro de 1876 e 7 de janeiro de 1973, um dia depois do aniversário de Sol em 6 de janeiro, ainda assim há na formação e últimos instantes de Soledad uma encarnação das palavras de Rafael Barret: “Por isso o mais forte do homem é uma idéia que não se curva”. Parece-nos, quando o filme retorna à posição do seu corpo no necrotério, uma fé, concreta e tangível e indubitável, no valor das palavras, nas conseqüências da palavra, como um vigor realizado que descobre e faz crescer pensamento. Um pensamento que foi até o sangue, real, doloroso, até a derradeira expressão, quase diria, mas que não é derradeira, porque é da natureza do pensamento a frutificação.

O poema Muerte de Soledad Barret, belo poema de Mario Benedetti, não poderia jamais adivinhar o suplício da morte de Soledad, quando diz:

los cables dicen que te resististe
y no habrá más remedio que creerlo
porque lo cierto es que te resistías
con sólo colocárteles en frente
sólo mirarlos
sólo sonreír

Esse poema, que faz Soledad atravessar uma reta de melancolia nas ruas de Montevidéu, não poderia crer que ela fosse atraiçoada de maneira e forma tão desleal. Porque não há como resistir – bater-se de frente contra – quando se é atacado por trás de um modo que indeciso ficamos em qualificá-lo de covarde, canalha ou infame. Como se pode esperar – para assim resistir – o ataque de um filho ou de alguém a quem se ama? O poema de Benedetti, escrito no calor da hora, sob o impacto dos informes da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco que relatavam ter sido um centro de guerrilha destruído, é poesia cuja construção de beleza cresce ainda hoje, quando recorda a vida de Soledad, não exatamente as circunstâncias miseráveis de sua morte:

...con tu pinta muchacha
pudiste ser modelo
actriz
miss Paraguay
carátula
almanaque

Ainda assim, comovente, quando o poeta imagina a morte de sua musa com um fim piedoso, assim como imaginamos, todos nós, mortais para quem a morte não pode ser mais cruel que a própria morte, e olvidamos, e esquecemos, e não queremos ver que as circunstâncias da morte podem torná-la ainda mais cruel.

...ignoro si estarías
de minifalda o quizá de vaqueros
cuando la ráfaga de Pernambuco
acabó con tus sueños completos

É natural que, por não saber, por ignorar o que de fato houve, mal finda a leitura das notícias trazidas por telegramas, é natural que o poeta recue ante a maior crueldade. Pois que fim grandioso seria, ainda que duro e doloroso, que belo fim seria a morte sob ráfagas, rajadas de metralhadoras, lufadas de vento, raios de luz de balas de Pernambuco! Os corpos, quando metralhados, sobem. Dizem que sobem sob o impacto dos tiros. E assim atingidos com tal profundidade e rapidez, sob os clarões do fogo, sobem e caem sem vida. Quase, se nisso não vêem cinismo, é quase como um fim sem dor. Terrível, mas ainda não foi assim, sob ráfagas ou rajadas de metralhadora.

por lo menos no habrá sido fácil
cerrar tus grandes ojos claros...

Não, grande e terno poeta, a Soledad que conheceste em Buenos Aires, em Montevidéu, a bela e graciosa e feliz mulher, porque vivia no que acreditava, porque lutava para um mundo fraterno, porque se entregava ao mundo como quem se doa a uma fraternidade, estava na verdade, quando pela covardia foi apanhada, com os olhos sem que se fechassem.

Os dela estavam uma câmera que refletia em instantâneo o perverso das luzes. “Soledad estava com os olhos muito abertos, com expressão muito grande de terror”, assim registrou esse instantâneo a advogada Mércia Albuquerque. Do país onde te encontravas, Benedetti, apenas com a dor da perda e a memória da vida de Soledad, é natural que somente pudesses escrever, no calor da urgência, quando te referiste àquelas duas câmeras no rosto de Sol, com o amor que despertaram em ti:

tus ojos donde la mejor violencia
se permitía razonables treguas
para volverse increíble bondad”.

Silêncio. Entram a romanza para violin y orquesta nº. 2 e o terror. O mais piedoso é o silêncio. Uma pausa, um parágrafo. Passemos ao largo, se quisermos, o parágrafo seguinte pode ser ultrapassado de um salto, assim como editamos com os olhos uma crua imagem no cinema.

“O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror”.

As santas virgens do Paraguai carregam o filho nos braços e a seus pés têm anjos, às vezes também luas em quartos minguantes. Sangue e feto aos pés só a guerreira Soledad Barret Viedma.

(*) Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997), um romance de formação, que se passa sob a ditadura de Emílio Garrastazu Médici (1969–1974), e de Soledad no Recife (São Paulo, Boitempo, 2009).

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Os reflexos da indignação - por Mauro Santayana (Jornal do Brasil)

A direita mundial se articula para depreciar as manifestações do último sábado. É certo que elas foram menos expressivas nos países emergentes e nos mais pobres. Até mesmo para pensar e agir, é preciso comer antes. A maioria dos povos africanos, acossados pela fome, pelas endemias e pelos genocídios periódicos, não têm como sair às ruas. Nos países emergentes, em que as receitas neoliberais são contestadas, o crescimento econômico alimenta a esperança.

O caso brasileiro é exemplar: em momento de expansão da economia, o sistema financeiro está controlado pela supremacia do setor estatal, graças às instituições que escaparam da sanha privatizadora, como o BNDES,o Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal. A luta contra a corrupção, que continua atual e necessária, não conseguiu tampouco levar as multidões que vimos nas ruas, durante a campanha das diretas e no processo popular contra Collor, porque a cidadania teme a sua utilização contra a presidente Dilma Roussef. Há a percepção de que ela se confronta com dificuldades conhecidas e atua, dentro de seu limitado espaço de poder, para moralizar a administração e os costumes políticos e defender os interesses brasileiros no mundo.

É um engano achar que o povo brasileiro está alienado das questões mundiais – e isso se verá, no momento necessário. Os porta-vozes da direita, aqui e alhures, expressam seus desejos como constatações sociológicas. É o caso do mais obtuso dos políticos espanhóis contemporâneos, José Maria Aznar que, em entrevista ao jornal El Universo de Quito, domingo, atribui “à extrema esquerda inexpressiva” o que começou na Tunísia, ampliou-se ideologicamente na Porta do Sol, em Madri, e se espalhou pelo mundo. Um dos cartazes exibidos em Nova Iorque é significativo: Wall Street acabou com o sonho americano. E como o sonho americano, graças à manipulação dos meios modernos de comunicação, se tornou o World Dream, o conluio político-militar-financeiro, globalizado transformou a utopia da felicidade individual em pesadelo.

Um dos eixos da história universal, na busca do equilíbrio entre os movimentos opostos, é o do conflito entre estado e sociedade. Estado e sociedade são, em princípio, uma só realidade. Essa idéia, fundada na concepção aristotélica da polis, foi restaurada por Hegel, em seus escritos juvenis. Mas a tensão interna sempre houve, e por uma razão elementar: a sociedade, como um todo, não consegue controlar diretamente o estado, a partir de certas dimensões, quando o número de habitantes se multiplicam e crescem os conflitos humanos, exigindo legislação sempre mais complexa. O instituto da representação se faz necessário, porque a democracia direta se torna inviável.

É nesse distanciamento entre o cidadão e o poder, com a intermediação dos agentes políticos e econômicos – como é do esquema clássico da filosofia da práxis - que o Estado deixa de servir à sociedade nacional como um todo, e é apropriado pela classe dominante. Quando essa apropriação se torna intolerável, surge a revolução política. Como disse Vitor Hugo, ocorre, então, le retour du fictif au réel, e o Estado volta a ser absorvido pela sociedade inteira, mesmo que por pouco tempo. A grande utopia política é a de que, em algum momento da História, esse retorno se torne permanente.

O grande resultado dessas manifestações, que poderão, a partir de certo momento de auge, diminuir de intensidade, é a reflexão dos intelectuais e dos povos. Há um axioma da física, o da inconstância do universo, cujas leis podem ser alteradas em qualquer momento – e a experiência com os neutrinos, se estiver correta, demonstra-o, ao desmentir Einstein-, que pode ser aplicada à inteligência. Os intelectuais, por comodismo ou convicção, são acometidos por certa ociosidade mental. Deixam de analisar a realidade em sua essência e em suas lições históricas, e se contentam em deslizar sobre as ondas superficiais do conhecimento, em adorná-las com recursos adjetivos. São os não-intelectuais, em seu saber feito de sofrimento, que costumam despertá-los para a ação, como está ocorrendo agora.

Por falar nisso, há declarações da Sra. Hillary Clinton que merecem ser cotejadas com o discurso de Lula, em Iowa. Falando de improviso, e com a razão do sentimento, o brasileiro resumiu as suas idéias na constatação de que o primeiro dos direitos do homem é o de comer. Assim, o primeiro dever dos governantes é o de trabalhar pela vida, não pela morte. A Sra. Clinton disse que o seu país deve agir como agem a Índia e o Brasil, que, na condução de sua política externa, colocam em primeiro plano a criação de empregos em seus países.

Ela se engana: nós não estamos fazendo nada mais do que imitar os Estados Unidos, que sempre agiam assim. Antes dela, outra secretária de Estado, Madeleine Albright – que, por coincidência, se encontra no Brasil, dando conselhos a empresários nacionais – disse alto, e em bom som, quando exercia o cargo, que o objetivo da política externa de Washington era o de garantir o pleno emprego para os cidadãos norte-americanos.

Ainda que o movimento dos indignados contra o neoliberalismo venha a arrefecer-se por algum tempo, retornará muito mais poderoso e mais amplo. Contraria a lógica que um por cento da população norte-americana (em outros países é provável que a relação seja ainda maior) detenha 99% da renda nacional – conforme seus cidadãos indignados denunciam.

No Congresso, como anotou Paul Krugman em recente artigo, os republicanos parecem não ouvir o clamor das ruas, e não se dispõem a repensar seu dogma, mas, ao contrário, adotam uma versão ainda mais grosseira – tornando-se dele mesmo uma caricatura.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Os Juros Altos e a Cultura da Indexação – Uma Anomalia Brasileira - por Paulo Pereira Miguel

A pesar do otimismo corrente acerca das condições econômicas do país, há razões para preocupação. A boa performance da economia no contexto pós-crise financeira não deve obscurecer a permanência de problemas antigos, como a baixa poupança interna e os juros altos, que continuam limitando a capacidade de crescimento não inflacionário do país. A própria resposta à crise, na forma de um forte expansionismo fiscal e de crédito público, agravou algumas inconsistências do modelo econômico nacional.

Uma evidência recente de que o espaço de crescimento não inflacionário no Brasil ainda é pequeno está no comportamento da economia nos últimos dois anos. A expansão fiscal e monetária para combater o risco de recessão realizada em 2009 desencadeou uma significativa pressão inflacionária em um ambiente de crescimento apenas moderado. É decepcionante que o crescimento médio entre 2009 e 2011 tenha permanecido em torno de 3,5%, ao passo que a inflação no período tenha sido crescente: de 4,3% em 2009 para 5,9% em 2010 e, espera-se, algo próximo ao teto da meta, 6,5%, em 2011. Os evidentes riscos inflacionários também para 2012 em um contexto já evidente de perda de dinamismo reforçam esta impressão.

Mesmo na presença do maior choque positivo das últimas décadas nos nossos termos de troca (os preços das exportações em relação aos das importações), que reduziu sobremaneira a restrição externa ao crescimento da economia e abriu uma grande oportunidade para romper com algumas das amarras internas tradicionais, até o momento não há sinais claros de um esforço coerente neste sentido por parte da política econômica. A persistência da baixa poupança interna continua sendo um grande obstáculo, senão o principal, para a redução da taxa de juros e a aceleração não inflacionária do crescimento econômico. Quase dezessete anos após a estabilização monetária do Plano Real, o país permanece preso em um mau equilíbrio de baixa poupança, juros altos, câmbio valorizado e alta tendência à inflação.

Além disso, a configuração global atual – de desalavancagem financeira nos países centrais e crescimento global cada vez mais concentrado em alguns países emergentes, em particular na China – traz novos problemas e desafios que precisam ser compreendidos e enfrentados. Um dos principais elementos desta nova configuração global é a tendência a uma nova divisão de trabalho na economia mundial, que, se deixada à própria sorte, tende a reforçar a dependência do Brasil a preços cada vez mais elevados de exportações de produtos primários. O resultado ao longo do tempo seria a fragilização da economia, que estaria mais concentrada em produzir matérias-primas – ainda que com alto componente tecnológico, como no caso do agronegócio – e, portanto, vulnerável a uma reversão dos preços.

Tem-se então uma combinação preocupante: a persistente armadilha da baixa poupança, juros altos e câmbio valorizado, associada a um movimento externo que reforça a tendência à especialização em matérias-primas e à fragilização da indústria, com riscos para o futuro.

O objetivo deste trabalho é apontar alguns dos problemas com o modelo econômico atual. Com isso, espera-se ao menos chamar atenção para iniciativas que possam reduzir os obstáculos ao crescimento. Em primeiro lugar, discorre-se sobre as mudanças recentes nas condições de inserção externa da economia brasileira e sobre como a resposta da política econômica à crise de 2008 agravou algumas das inconsistências do modelo atual, para depois voltar à questão dos juros. Encerra-se com uma breve caracterização de alternativas para sair da armadilha dos juros altos.

O choque positivo nos termos de troca

Inicialmente, cabe considerar em maior detalhe a dimensão do ajuste externo realizado pela economia brasileira nos últimos anos. A globalização da década de 2000, a partir da emergência da China como protagonista de peso sistêmico na economia mundial, desencadeou mudanças profundas na dinâmica de inserção internacional dos países em desenvolvimento. A rápida industrialização chinesa alterou as condições de contorno em que se dava a integração de outras regiões periféricas, a partir do impacto altista de sua demanda nos preços das commodities. A mudança nas relações de troca da periferia que resultou da demanda do gigante chinês representou um rompimento, mesmo que provavelmente momentâneo, da histórica restrição externa ao crescimento dos países produtores de commodities.

De forma concomitante, parece ter havido uma redução dos custos da industrialização. Neste sentido, a demanda crescente por matérias-primas e o barateamento de bens industriais resultante da rápida construção de capacidade na China permitiria vislumbrar o que tem sido chamado de “generalização do desenvolvimento”. Um grupo grande de países em desenvolvimento passou a incorrer em persistentes saldos positivos em conta corrente de forma concomitante à aceleração do crescimento econômico. Estes, de certa forma, puderam pegar carona no trem chinês a partir da melhoria substancial nas suas relações de troca internacionais.

Os efeitos no Brasil são claros: o maior choque externo positivo das últimas décadas. Os termos de troca (preços de nossas exportações em relação aos preços das importações) cresceram 30% entre 2002 e 2008. Este choque, ao lado da expansão das exportações manufaturadas que se seguiu à desvalorização cambial e à recessão brasileira de 2002/2003, permitiu a eliminação da dívida externa pública em um espaço de poucos anos – antes da crise financeira de 2008 o país já se tornara um credor líquido em moeda estrangeira.

Ao contrário do que se poderia esperar inicialmente, os desdobramentos da crise financeira de 2008 reforçaram os ganhos nos termos de troca, na medida em que os países em desenvolvimento, especialmente a China, embarcaram em políticas internas expansionistas. Os preços de exportações de matérias-primas continuaram a subir e atingiram novos recordes, ao passo que as condições quase recessivas nas economias centrais reforçaram, junto com a máquina exportadora chinesa, a queda de preços dos bens manufaturados. Entre 2009 e 2011, os termos de troca brasileiros atingiram novas máximas, em muito suplantando o patamar pré-crise: em apenas dois anos, entre 2009 e meados de 2011, a alta nos termos de troca é similar à obtida nos seis anos que precederam a crise financeira de 2008.

Se o choque pré-crise, que a esta altura já pode ser considerado moderado, foi suficiente para permitir a eliminação da dívida externa, não se pode subestimar o impacto na economia brasileira do movimento recente. Trata-se de um “presente” da ordem de 2% do PIB anualmente.

O aumento dos preços e, em menor medida, a expansão das quantidades exportadas de produtos primários, é a razão dos persistentes saldos comerciais, da ordem de US$ 25 bilhões desde 2008. Do lado das exportações de manufaturados permanece uma virtual estagnação desde 2009, evidência de perda de competitividade industrial no contexto de valorização cambial e aumentos de custos internos. Mesmo assim, os saldos comerciais elevados têm contribuído para manter o déficit nas contas correntes em níveis ainda confortáveis (cerca de US$ 55 bilhões, 2,3% do PIB, esperados para 2011), a despeito da valorização do câmbio e do crescimento das despesas com serviços – lucros e dividendos, viagens internacionais, etc.

Mas um simples exercício mostra o potencial efeito de uma reversão destas condições: caso os preços das exportações estivessem no nível médio de 2000 a 2008, o país teria um déficit em conta corrente próximo a 4% do PIB (US$ 90 bilhões). Para manter o mesmo nível de crescimento, o país precisaria contar com uso ainda maior da poupança externa, o que não é desejável. É evidente que preços de exportações menores implicariam mudanças substanciais em outros parâmetros – provavelmente a entrada de capitais seria mais contida e a taxa de câmbio seria mais depreciada, de modo que o espaço para o uso de poupança externa talvez fosse inferior. Assim, o exercício não permite inferências quantitativas confiáveis, mas o ponto relevante permanece: em tal conjunto de condições e a despeito do ajuste já realizado nas contas externas, o espaço para o crescimento econômico seria menor, até porque haveria maior pressão inflacionária resultante do câmbio depreciado, obrigando o país, provavelmente, a realizar políticas internas mais restritivas.

Além dos termos de troca favoráveis, a maior atratividade dos países emergentes, no contexto de estagnação e juros quase nulos nas economias centrais, reforçou nos últimos dois anos o fluxo de entrada de capitais em busca de maior rentabilidade. A aceleração dos investimentos diretos para quase US$ 70 bilhões nos doze meses encerrados em julho de 2011, ainda que envolva operações disfarçadas de arbitragem de juros, é um salto em relação ao patamar dos anos anteriores, mais próximo a US$ 30 bilhões. O maior volume de emissões externas de dívida privada, em busca de custos baixos de financiamento, reforça os fluxos. Como lidar com este excedente internamente passou a ser um elemento crucial, e infelizmente ainda pouco explorado, da estratégia de política econômica do país, a não ser por algumas medidas ad hoc de controle da entrada de capitais.

A persistente tendência de valorização cambial dos últimos anos é resultado direto desta dinâmica externa sem precedentes nas décadas recentes, mas não apenas dela. É também fato que o mau equilíbrio econômico interno, com baixa poupança e juros altos, reforça a pressão de valorização cambial. São agravados os problemas de competitividade em amplos setores da indústria e cresce o risco de concentração de exportações em produtos primários. Esta concentração na pauta de comércio exterior não é um mal em si, pois é possível utilizar as vantagens comparativas nestes setores para diversificar a base produtiva da economia. Mas, para tanto, é necessário que a política econômica seja conduzida de modo compatível ao objetivo de diversificação, o que não é o caso brasileiro. Ao invés de minimizar a tendência à especialização causada pelo choque positivo nos termos de troca, a política econômica parece contribuir para exacerbá-la.

No nível mais conjuntural, a tendência de câmbio valorizado e juros altos foi reforçada desde 2009 pela resposta do governo à crise. Em um país com baixa taxa de poupança interna, juros altos e recorrente pressão de valorização cambial nociva à competitividade industrial, como é o caso do Brasil, a resposta correta à interrupção do crescimento econômico que se seguiu à crise teria sido menos expansão fiscal de custeio e mais afrouxamento monetário. Mas a escolha do governo foi realizar um afrouxamento fiscal e do crédito público (com foco questionável em alguns “campeões nacionais”), que se mostrou excessivo e longevo frente às condições objetivas em que operou a economia brasileira já a partir de meados de 2009. O resultado foi uma queda acentuada da poupança pública – e, por extensão, da poupança interna – e o rápido retorno das pressões inflacionárias, que já em 2010 inviabilizaram o cumprimento da meta de inflação e forçaram uma reversão quase total da redução de juros e de compulsórios bancários realizada em 2009.

A valorização cambial não é uma surpresa e, sim, um resultado direto desta configuração da política econômica, ainda mais no quadro atual de sobra de divisas. Além disso, a tentativa do Banco Central de minimizar a tendência de valorização por meio de intervenções esterilizadas, acumulando reservas internacionais, apenas reforça a inconsistência: ela impede que o excesso de demanda interna causado pelo expansionismo fiscal seja equilibrado com um maior uso de poupança externa e leva a uma taxa de juros ainda maior para manter a inflação sob controle, em um círculo vicioso.

Tendo em vista que o choque positivo dos termos de troca é uma realidade, da qual o país precisa fazer bom uso, volta-se à questão da baixa poupança e dos juros altos como ponto focal para a ação da política econômica.

Os juros altos – anomalia brasileira

Uma configuração de política econômica que resulte em juros mais baixos e câmbio mais depreciado é desejável para viabilizar uma maior velocidade de crescimento, com inflação sob controle. Tal configuração também contribuiria para minimizar os potenciais impactos da alta dos termos de troca e da avalanche de capitais externos na economia, facilitando a diversificação produtiva e protegendo a competitividade industrial.

Mas é aí que aparece a principal anomalia do Brasil em comparação com as outras economias. Apesar da lenta tendência de queda desde o inicio do período de flutuação cambial, quase duas décadas após a estabilização do Plano Real a taxa de juros no Brasil permanece muito acima da média internacional. Os gastos anuais com juros da dívida pública atingiram 5,5% do PIB nos últimos doze meses, frente a uma média mundial pouco inferior a 2%. Em média, as despesas com juros desde o início do Plano Real foram de 6,5% do PIB. Deve ser motivo de espanto, senão de indignação, que quase duas décadas depois da estabilização monetária o país ainda conviva com diferencial de juros tão elevado, mesmo em comparação com numerosos países nem tão bem comportados.

Por mais que se tente justificar tal divergência a partir de elementos históricos do nosso passado de agressividade ao credor, confiscos e inflação alta, bem como por afirmações de que o problema estaria na política social que distorce os incentivos a poupar e numa atípica ansiedade do brasileiro em antecipar o consumo, ou mesmo na insuficiência de reformas e na indexação ainda remanescente, estas explicações são facilmente combatidas com contra-exemplos de países com problemas similares e juros mais baixos que os brasileiros.

Mesmo assim, nas próximas linhas tentamos elencar alguns dos fatores que nos parecem relevantes para explicar o fenômeno e oferecer alternativas para a busca de um novo equilíbrio na política econômica.

A baixa poupança

O Brasil tem uma taxa de poupança interna baixa para padrões internacionais, em especial quando comparada com países em estágio similar de desenvolvimento e renda per capita. Segundo o FMI, a taxa média de poupança dos países em desenvolvimento fica entre 30% e 35% do PIB, ante menos de 20% no caso brasileiro. O caso chinês, com poupança próxima a 50% do PIB, é extremo – é a maior taxa de poupança documentada, em especial para um país com proporções continentais e com baixa renda per capita. Em alguma medida, a alta poupança chinesa traz problemas de gestão econômica opostos aos dos brasileiros.

As explicações para a baixa poupança no Brasil são pouco consensuais. É comum considerar que o país tem uma alta propensão ao consumo, que seria, ao menos em parte, causada pelo acelerado aumento da cobertura das redes de proteção social após a Constituição de 1988, incluindo um sistema previdenciário particularmente generoso para padrões internacionais. É fato que o país gasta mais que a média internacional em previdência, especialmente em comparação com países de renda per capita similar, o que certamente contribui para a baixa poupança interna e merece reparos nos desequilíbrios mais evidentes, mas não parece plausível considerar o que seria uma especial ansiedade dos brasileiros como a explicação principal. Ao contrário, é muito difícil distinguir o peso que cada sociedade dá ao consumo presente e, mesmo que isso fosse possível, o efeito nos juros é altamente duvidoso. Os EUA têm uma das maiores taxas de consumo em relação ao PIB do mundo – 71% – e nem por isso sofrem com juros altos; muito ao contrário. Os países europeus, por sua vez, mantêm generosas redes de proteção social, mas muitos deles apresentam taxas de poupança interna superiores às dos EUA e do Brasil.

Ao mesmo tempo, o avanço civilizatório obtido no Brasil nas três últimas décadas com o aumento da cobertura das políticas sociais está na direção correta, sendo objeto de admiração em muitos outros países em desenvolvimento. Além disso, trata-se de uma conquista não passível de reversão acentuada nas condições políticas atuais. É evidente que ajustes são necessários, em especial na previdência, de modo a reconhecer a realidade demográfica do envelhecimento da população e eliminar flagrantes injustiças, como a do regime do funcionalismo público. Mas parece mais promissor, ao invés de considerar a suposta predileção ao consumo e as políticas sociais isoladamente, que, não obstante, devem ser aperfeiçoadas, refletir sobre os arranjos institucionais que dificultam ou favorecem a formação de poupança interna (e não apenas da poupança das famílias isoladamente).

A poupança interna responde à taxa de juros e ao próprio nível de atividade da economia. Em geral uma taxa de juros mais alta reduz o consumo e aumenta a propensão a poupar, contraindo o nível de atividade. Por outro lado, a poupança responde positivamente ao próprio nível de atividade, isto é, tal como na modelagem keynesiana, um maior nível de investimento e renda em geral está associado a um aumento da poupança.

Uma particularidade brasileira parece ser a baixa resposta da poupança interna ao nível de atividade, isto é, o aumento do investimento e da renda não tem sido nos últimos anos acompanhado pelo aumento da poupança. Na verdade, tem ocorrido o oposto: um aumento da taxa de investimentos está associado à redução da poupança interna e ao aumento nos déficits em conta corrente, fato recorrente na história do país. Entre 2004 e 2008, o investimento (somado à variação de estoques) cresceu de 14% para 17,5% do PIB (a preços de 2006), caindo para 15,3% do PIB em 2009 e voltando a subir para quase 18% do PIB em 2010. A poupança interna, por sua vez, oscilou entre 17% e 18,5% do PIB entre 2004 e 2008, caindo para 14,7% do PIB em 2009 e voltando a subir para 16,5% do PIB em 2010. Ou seja, toda a necessidade adicional de poupança para financiar o aumento da taxa de investimento foi satisfeita com o aumento do uso de poupança externa. De fato, o saldo em conta corrente variou quase 4% do PIB, de um superávit de 1,8% do PIB em 2004 para um déficit médio próximo a 2% do PIB entre 2009 e meados deste ano.

Não é claro o motivo deste comportamento. Certamente as políticas sociais são parte da explicação, mas merece destaque a voracidade arrecadatória do governo e o tamanho dos gastos públicos, como um todo, incluindo as despesas de juros, em relação ao PIB, sem que se obtenha aumento relevante nos investimentos do governo. Em alguns dos países emergentes que aceleraram a taxa de investimentos nos últimos dez anos, o aumento concomitante de poupança se deu internamente, e prioritariamente no setor corporativo.

No caso da China, por exemplo, os lucros retidos das empresas cresceram de 2% do PIB em 2002 para 10% do PIB em 2008. No Brasil, a existência de pesados tributos sobre o faturamento (tal como o PIS/Cofins) e a persistente inflação de custos – também derivada da indexação de preços administrados – talvez seja um fator impeditivo ao acúmulo do excedente econômico no setor corporativo com fins de investimento (infelizmente, não há dados desagregados para provar a hipótese).

É fato que o Brasil tributa muito mais do que a média dos países emergentes – a arrecadação atinge 35% do PIB, nível comparável a países com renda per capita muito acima da brasileira. A transferência destes recursos para o Estado, que tem menor propensão a poupar e a investir, tem um papel relevante para explicar a insensibilidade da poupança interna à expansão do investimento e da renda. Daí deriva uma recomendação clara de redução de tributos em cascata no bojo de uma reforma tributária, como forma de alavancar a poupança interna, em conjunto com reformas que reduzam a propensão do Estado a gastos sempre crescentes. Fica também a observação de que arranjos institucionais muitas vezes insuspeitos têm papel relevante para a determinação do equilíbrio macroeconômico.

A indexação da dívida pública e o peculiar arranjo institucional do mercado financeiro

Entre estes arranjos, outro que aparece como relevante é a indexação de parte da dívida pública à taxa Selic no overnight, por meio da Letras Financeiras do Tesouro (LFT), que contribui para reduzir a eficácia da política monetária. Trata-se de um título sem risco de mercado, isto é, o risco de perda de capital decorrente de oscilações nas taxas de juros (o chamado efeito riqueza), pois reter uma LFT na prática significa aplicar o dinheiro por um dia, na taxa de juros de cada dia, repetidamente até o vencimento. Apesar de representar atualmente apenas 35% do estoque de títulos públicos em poder do público, o uso da LFT reduz o efeito riqueza, importante canal de transmissão da política monetária para a demanda agregada. Mesmo a existência de títulos prefixados, saudada como um grande avanço na gestão da dívida pública, caminha a passos lentos: cerca de 30% da dívida é composta por estes instrumentos e, mesmo assim, o prazo médio dos títulos em poder do público é de apenas 21 meses, insuficiente para que a política monetária tenha grandes efeitos, a não ser por variações de juros de magnitudes vistas apenas antes da instauração do regime atual de flutuação cambial e metas de inflação. Portanto, a perda de eficácia da política monetária decorrente do uso da LFT e de papéis prefixados de curta duração no financiamento da dívida pública é importante e deve continuar sendo atacada, como tem sido o caso, por meio do programa de alongamento de prazos e de mudança dos indexadores perseguido pela Secretaria do Tesouro Nacional.

Mas não é este aspecto o principal a ser destacado. A existência da dívida indexada e prefixada de curto prazo explicita outro problema, de natureza mais institucional. O financiamento overnight da dívida pública e da maior parte dos ativos financeiros, onde a LFT é apenas a ponta do iceberg, é o ponto de origem da infra-estrutura institucional erguida desde os tempos da moeda indexada antes da estabilização do Plano Real, quando a questão da rolagem diária da dívida pública era crucial. Estes tempos foram superados, mas ainda sobrevive, sob nova roupagem, grande parte do arcabouço regulatório e da cultura da rolagem diária no overnight, que se dissemina para toda a indústria financeira e encurta os horizontes da poupança interna, tornando-a menos sensível à variação dos juros.

Este arranjo institucional, ainda que metamorfoseado no contexto do Brasil pós-estabilização, fica evidenciado na indústria de fundos, que se concentra em prover produtos de investimento, em sua maioria com liquidez diária, ao mesmo tempo em que aloca a maior parte da captação dos recursos de clientes em títulos indexados, como a LFT, ou de curta duração. De fato, do estoque total de LFT em poder do público, em janeiro de 2011, 59% eram detidos pelos fundos, que se transformaram nos últimos anos no principal veículo depositário da poupança financeira nacional.

Não se trata apenas de financiamento overnight dos títulos públicos, pois do lado dos bancos, emissores da maior parcela da dívida privada existente, na forma de CDB’s e operações compromissadas, o mesmo ocorre: parte relevante do passivo bancário tem liquidez diária ou quase diária (com correção baseada no CDI, a taxa relevante para o financiamento diário interbancário e que baliza a remuneração de grande parcela dos ativos financeiros). Apenas mais recentemente o uso de papéis mais longos começa a se fazer sentir nos bancos. Mesmo as debêntures, em geral emitidas por empresas não financeiras, com prazo de vencimento mais longo, carregam tipicamente uma indexação ao CDI – na prática encurtando o horizonte do risco de juros de mercado para um dia –, ou a índices de preços. O circuito se fecha com o poupador, que se recusa a pensar, por boas razões, fora dos moldes do CDI diário.

A cultura do CDI, favorecida pelos mecanismos que permitem, na prática, liquidez quase diária sem risco de mercado para a maior parte da poupança financeira, dificulta o alongamento de horizontes que levaria os poupadores – e o setor financeiro como agente intermediário – a privilegiar o financiamento de longo prazo da economia. Certamente há elementos culturais, em parte decorrentes do passado inflacionário, para esta realidade, mas é característica das instituições se perpetuarem e legitimarem sua própria existência, de modo que a herança não pode justificar a inação e a aceitação tácita de uma realidade pretensamente imutável.

A inflação inercial que vigorou no Brasil dos anos 1980 até o advento do Plano Real era uma especificidade local, cuidadosamente alimentada por anos de construção regulatória, que acabou por adquirir dinâmica diferente do que ocorria no resto do mundo. A indexação generalizada de preços e salários legitimava socialmente o processo, pois mantinha certa organização dos preços relativos, reduzindo o impacto da luta distributiva. Mas a institucionalização dos mecanismos de indexação aumentava a inércia inflacionária, tornando impossível estabilizar a moeda com ações convencionais. Apenas o engenho do Plano Real foi capaz de desmontar esses mecanismos, com o apoio da sociedade.

No mesmo espírito, merece consideração o peculiar arranjo institucional do mercado monetário brasileiro. Ao lado da indexação que ainda persiste nos preços, a institucionalidade do mercado financeiro local, baseada na cultura do overnight que se espalha por toda a indústria de fundos e do mercado financeiro em geral, contribui para restringir a eficácia da política monetária e perpetuar um diferencial de juros em relação ao resto do mundo maior que o necessário, sem prejuízo das razões objetivas tradicionais para tanto, como a baixa poupança interna.

A indexação de preços que remanesce

Desindexar é mais fácil em momentos de inflação baixa. Sempre haverá a dúvida se a indexação existe porque a inflação no Brasil ainda é alta ou o contrário. À luz de nosso passado, parece plausível considerar que qualquer desindexação só será viável conforme a inflação seja mantida próxima à meta por um longo período de tempo. Mesmo assim, é preciso ajudar a indexação a morrer, com inovações institucionais graduais. Como nada se fez nos últimos anos, agora é preciso correr atrás do prejuízo, sem afrontar contratos nem impor a vontade do governo ao setor privado.

Para que o processo de desindexação seja aceito pela sociedade ele deve ser resultado de uma agenda transparente e de médio prazo. O primeiro passo certamente é controlar a inflação, trazendo-a de volta ao centro da meta, 4,5%. O BC argumenta que não faz sentido forçar a convergência em 2011, tendo em vista o choque de preços de commodities a inércia da inflação carregada do ano anterior, o que é certo. Mas é preciso dar segurança de que ela ocorrerá em breve, pois do contrário qualquer esforço de desindexação carecerá de credibilidade. No médio prazo, um compromisso de redução gradual da meta de inflação ajudaria neste esforço, de preferência com o estabelecimento de uma meta de inflação de longo prazo, entre 3% e 4% ao ano.

Também é preciso atenção às questões setoriais. Os contratos de concessões de serviços públicos devem ser corrigidos, conforme sejam renovados, de acordo com planilhas de custo e rentabilidade, reduzindo o automatismo da reposição dos índices de preços. Além disso, o IGP é um péssimo indexador, com peso de 60% em preços no atacado, que sofrem impacto direto da taxa de câmbio e dos preços de commodities, reforçando a inércia da inflação. Este peso foi definido há décadas e não guarda nenhuma correlação com a estrutura atual da economia. O fim do uso do IGP e a indexação de contratos à evolução dos custos ou a uma meta de longo prazo do IPCA é uma possibilidade que merece consideração.

É preciso ter em mente que a indexação de preços importantes, como energia, pedágios, aluguéis e tarifas de serviços públicos em geral, afeta os custos das empresas, o que insere uma cultura indesejável de repasses, ainda mais no contexto de poupança baixa e crônica tendência inflacionária. Além da desindexação nestes moldes, uma agenda focada de desoneração tributária, especialmente dos incidentes sobre o faturamento das empresas, aliada a melhorias logísticas e à redução de custos de transação em geral, tornaria a economia brasileira mais flexível e menos sujeita a altas coordenadas de preços.

Alternativas para sair da armadilha

À luz do que foi discutido, há duas soluções possíveis para a inconsistência atual do modelo de juros altos. A primeira é aceitar que o desequilíbrio interno no mercado de bens e serviços seja reduzido com uma maior absorção de poupança externa, com inevitável valorização cambial adicional. Uma mudança na política de acumulação de reservas por parte do BC, na verdade sua interrupção, deixaria a taxa de câmbio se apreciar em montante suficiente para reduzir o descompasso entre oferta e demanda interna e reduzir a taxa de juros. O novo equilíbrio se daria com câmbio mais apreciado e juros mais baixos, mas com déficits externos em conta corrente crescentes, de modo a equilibrar a demanda doméstica à oferta.

No entanto, esta não é uma solução desejável, na medida em que contribuiria para fragilizar ainda mais a estrutura econômica brasileira, com perda de empregos ainda maiores na indústria de transformação e acentuada dependência de preços cada vez mais altos para as exportações de bens primários. Esta dependência ocorreria porque sem aumentos continuados dos termos de troca a valorização cambial adicional necessária para atender à demanda interna elevaria os déficits externos a níveis preocupantes. Déficits da ordem de 4% do PIB ou mais reforçariam a vulnerabilidade externa, pois tornariam o país mais sujeito a paradas súbitas nos fluxos de capitais.

A alternativa mais desejável é realizar um ajuste fiscal de longo prazo, que teria impacto relevante para aumentar a taxa de poupança interna e reduzir o dilema atual da necessidade de sempre se contar com poupança externa para aumentar o investimento. Em paralelo, um esforço de desoneração tributária, concentrada em impostos cumulativos, especialmente os incidentes sobre o faturamento corporativo, poderia ter impacto relevante na formação de poupança privada, que poderia responder mais diretamente ao aumento do investimento e da renda interna. Além disso, um esforço sério e coordenado de desindexação financeira, incluindo mudanças graduais, porém contínuas, nos mecanismos de operação do mercado de financiamento da dívida pública e na estrutura regulatória do mercado financeiro, bem como a redução progressiva da indexação de preços à inflação passada, reforçariam a eficácia da política monetária. O resultado seriam juros mais baixos, em um contexto de câmbio mais depreciado e inflação sob controle no médio e longo prazo. É um caminho mais difícil que a simples tolerância ao processo continuado de valorização do câmbio, pois demanda visão estratégica clara e execução eficiente e cuidadosa, mas é a melhor alternativa para romper de forma consistente com as amarras que impedem a aceleração do crescimento econômico.

PAULO PEREIRA MIGUEL, diretor de pesquisa econômica da Quest Investimentos, é mestre em economia pela FEA-USP e em administração de empresas pelo insead.


Comentário
É pena que, ao longo do tempo, nas diversas vezes em que o governo fez uma maior economia, um maior superávit primário em suas contas, cortando drasticamente investimentos e gastos com custeio (saúde, segurança, etc.), os juros não caíram. Aí, ficamos no pior dos mundos: nos privando de tudo para sequer conseguir pagar os juros da dívida. Ou seja, padecendo para enxugar gelo.
Parece que o BC do governo Dilma vem tentando alterar este quadro - não à toa, para mim, é o melhor setor do governo, enquanto que no governo Lula era um dos piores.
Coisa que discordo ou que não ficou clara em seu texto, é quanto à incidência de tributos. Só reduzi-los com relação ao faturamento não basta. Carece direcioná-los ao mercado financeiro, e a quem pouco produz. A necessidade do retorno da CPMF é um exemplo claro neste sentido.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Crise no PSDB - por Luis Nassif

O beco sem saída do PSDB – por Luis Nassif

Dilma vai para a Europa e faz recomendações aos governos nacionais. Em editorial, o Estadão critica sua postura professoral. Aí o senador Álvaro Dias ecoa as críticas no Senado, sem mencionar a fonte. E o mesmo faz José Serra no Twitter. Na entrevista de Aécio Neves ao Estadão, a falta absoluta de ideias.

E só. Consultem os jornais, rádios, as últimas declarações de políticos e lideranças tucanas. Resumem-se a isso, críticas pontuais, em geral pautadas pela mídia.

Há dois tipos de políticos que aspiram a presidência. Aquele que traz novas ideias que mudam primeiro seu partido, depois o país; ou aquele que reflete as ideias e valores de determinados grupos e, especialmente, de seu partido político.

Obviamente Aécio não é gerador de ideias próprias. Mas e o PSDB? Como solta assim no ar o balão do seu candidato, sem sequer ter se dado ao trabalho de costurar um programa, um conjunto mínimo de ideias que fosse? Cadê seus pensadores, seus estrategistas? Como é que se monta um discurso oco em cima de uma mera pesquisa de opinião?

Ouso supor que o partido está em um beco sem saída.

O núcleo financista do partido – hoje em dia encastelado na Casa das Garças – tem interesses próprios. O PSDB foi apenas a escada para se lançarem ao poder. Embarcaram de carona na onda neoliberal, traduziram os bordões e o jogo de interesses para o português, usaram o partido que tinham à mão. E nada mais.

O núcleo desenvolvimentista sumiu. Os irmãos Mendonça de Barros resolveram aderir ao mercadismo do dia-a-dia e o núcleo FGV-SP – de Bresser-Pereira e Nakano- está fora do barco faz tempo.

De seu lado, Serra transformou seu entorno no mais puro esgoto político. Jogou pelo ralo as ideias de um grupo de técnicos respeitáveis, assumiu sua própria ignorância econômico-político-administrativa, passou a exigir dos seguidores provas seguidas de vilania e trouxe à tona a cara de um partido que já não tinha ideias para oferecer. Nem o DEM, na fase mais iracunda, conseguiu chegar perto da imagem medieval que Serra conferiu ao PSDB.

Sempre torci para que o PSDB conseguisse se refundar, apresentar-se como uma oposição legitima e civilizada, exorcizando os fantasmas da última eleição. Seria o amadurecimento final do modelo político brasileiro.

Apostei em Aécio como uma alternativa do partido ao cenário de trevas representado pelo Serra, muito mais pela concepção administrativa que seu governo desenvolveu. Mas não tem fôlego para se impor. A sorte do país é que, com Aécio ou sem Aécio, também não há retorno para Serra.

A cada dia que passa fica cada vez mais claro que o partido entrou em um caminho sem futuro. Perdeu massa crítica de pensadores. Com Serra, perdeu legitimidade junto aos meios intelectuais e à opinião pública esclarecida. Os sociólogos e cientistas políticos da USP desempenham apenas papel de viúvas de FHC, sem conseguir entender ou elaborar o novo. O próprio FHC recolheu-se a uma merecida aposentadoria. Faltava apenas o reconhecimento de fora para aplacar suas angústias. Dilma forneceu-lhe o reconhecimento.

Cumprir-se-á o vaticínio de José Sarney que, em 2009, previu que a oposição sairia do seio das forças coligadas à situação.

Jogo de xadrez

Passados mais de 20 anos da primeira eleição direta do país pós-64, é interessante notar como se deu o xadrez político.

Fernando Collor surgiu com o discurso novo, que mudou o país. Não colheu os frutos por ser um desastre político. FHC herdou o discurso modernizante de Collor, e atraiu – meramente pelo efeito imã do poder – as melhores ideias acumuladas ao longo dos dez anos anteriores.

Havia um genuíno sentimento centro-esquerda em curso, aspirando a modernização mas com responsabilidade social.

Fosse um político de visão, FHC teria avançado nas privatizações, mas ao mesmo tempo, fechado o campo para a oposição, entrando decididamente na área social. Tinha quadros, novas ideias amadurecidas pelo país e uma grande conselheira em casa, dona Ruth.

Mas limitou-se a entrar na onda financista mundial. Recebeu as ideias de mão beijada e não teve fôlego para elaborar em cima delas.

Não teve nem visão para perceber a armadilha cambial, montada pelo lado financista, nem sensibilidade para entender que a chave para os vinte anos de poder – ambicionados por Sérgio Motta – estava em dona Ruth, não nos Bachas da vida.

Como nunca teve visão apurada dos grandes Estadistas, deixou uma avenida aberta para o discurso social do PT.

Eleito, Lula deu as cabeçadas iniciais previstas. Mas a bandeira social foi tão forte que ajudou-o a resistir ao episódio do “mensalão”.

Depois, consolidou-se mapeando todos os diferenciais apregoados pela oposição e ocupando o espaço. Com sua intuição, fez o que FHC deveria ter feito no seu governo, para não abrir espaço para a oposição.

Com o Banco Central de Meirelles aplacou a oposição mercadista (a um custo alto para o país). Com as políticas sociais não populistas, consagrou-se mundialmente como o homem da inclusão. Com o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) levantou a bandeira da gestão dos investimentos públicos. Absorveu os movimentos sociais, trouxe o PT mais para o centro e foi jogando gradativamente o PSDB para a direita.

Esvaziou a campanha sistemática dos que o apontavam como ameaça à democracia, golpista etc.
Finalmente, indicou para a presidência uma candidata com todas as características enaltecidas pelos seus próprios críticos – características acessórias, que não mudavam a essência do governo. Uma presidenta sem arroubos oratórios, classe média, estudada, mais comedida na política internacional, com mais gestão (em cima das bases plantadas), sem entrar em guerra com a mídia e encarnando a figura da “faxina” e pragmatismo nas questões de concessão e privatização.

Entende-se a sinuca de bico do PSDB.

Comentário no post "O beco sem saida do PSDB" - - por Moacir Telles Maracci

Nassif, sua análise é muito boa, pois permite investigar algo sobre esse par chamado "governo/oposição" que acredito seja o elemento fundante de uma sociedade democrática. No Brasil pós-redemocratização, as chamadas oposições eram sobretudo, oposições a um certo estado de coisas, tais como autoritarismo, crise econômica, etc, perseguições, repressões, etc. Foi em antagonismo a essas situações de opressão que surgiram oposições no seio do antigo MDB, e depois com a fundação do PT, PSDB, os partidos de tradição trabalhista e os partidos comunistas.

Com erros e acertos, as oposições atuavam no cenário político sempre acreditando que suas alternativas eram as melhores que as dos governos e podemos dizer que assim ocorreu até o período que eu chamaria de transição entre o "impeachment" de Collor e a eleição de FHC.

A partir daí, com a hegemonia do discurso neoliberal no Brasil e no mundo, as oposições eram sempre ridicularizadas. Pode-se dizer que FHC jamais respondeu a uma crítica oposicionista, sempre procurou desqualificá-la, devido em parte à sua empáfia intelectual e vaidade pessoal, mas muito porque acreditava-se no "fim da História", do "triunfo definitivo do capitalismo", crenças essas que faziam parte do discurso neoliberal hegemônico.

Nesse panorama todo, acredito que a vitória de Lula, que pôs fim a oito anos de governo neoliberal, não seja exatamente uma vitória "da oposição", mas a derrota de um modelo que estava próximo do seu ocaso.

Essa derrota abriu espaço no cenário político para outro projeto, mais social, mais nacional, que com avanços e recuos, alguma timidez inicial diante dos interesses especulativos, muitos acertos e como Nassif aponta, muita intuição, já chega ao seu décimo ano aparentemente com muito a dizer ainda ao Brasil e ao mundo sobre novas formas de atuação do Estado e sua relação com a sociedade civil.

Enquanto isso, os grupos que deveriam ocupar dignamente o espaço de oposição, não o fazem, porque no fundo pesa sobre seus principais líderes, como FHC, Aécio, Guerra e outros justamente as consequências de se desqualificar críticas, em vez de respondê-las ou propor alternativas.

A oposição brasileira aos governos petistas, PSDB à frente jamais foi propositiva , porque quando governo nunca quiseram uma oposição propositiva, devido ao que já mencionei como empáfia, arrogância, etc. Se quiserem ser oposição devem enterrar essa empáfia, nem que para isso tenham que sacrificar alguns "nomes bons" (que eles acreditam) como Serra, os reaças do DEM, Freire, quem sabe até mesmo Aécio, que em minha opinião, não disse a que veio (sobrenome famoso prefiro o Brizola Neto). É isso.

As duas últimas chances que o PSDB perdeu – por Luis Nassif

Tenho para mim que as últimas duas chances do PSDB voltar ao poder foram desperdiçadas por José Serra.
A primeira, quando tornou-se governador de São Paulo.

Já escrevi várias vezes: era muito mais fácil mudar São Paulo do que o Brasil. Com um pouco de visão e de boa vontade, poder-se-ia mobilizar as forças mais poderosas do país em torno de um projeto de governo - grandes empresas, sociedade civil consolidada, os melhores institutos de pesquisa do país, uma robusta rede de cidades médias, organizações empresariais e sindicais atuantes. Tendo a melhor plataforma para pavimentar a candidatura à presidência, a mediocridade de Serra matou a oportunidade. Na campanha, não tinha o que mostrar.

A segunda chance desperdiçada pelo PSDB foi quando abriu mão de Aécio Neves por Serra, na campanha de 2010. Tinha-se ainda uma Dilma Rousseff pouco conhecida - e, por isso mesmo, vulnerável às campanhas difamatórias produzidas. E tinha-se Aécio Neves com baixo grau de rejeição, imagem jovem e com uma marca forte de articulador político e de gestor. Além de Minas ter um dos maiores contingentes eleitorais do país.

Em meados de 2009, o sagaz deputado Saulo Queiroz, do DEM, mostrou que seria quase impossível vencer com Serra. A única chance da coligação seria com Aécio. Sua análise custou-lhe um exílio dentro do próprio partido. Serra soube e jogou sobre ele sua ira. Correligionários evitavam aparições em público com o deputado, para não incorrerem na ira de Serra.

Hoje, Saulo é secretário-geral do PSD, partido que nasceu das entranhas do DEM. O DEM é um partido moribundo. Dilma tornou-se conhecida, a exposição de Aécio o tornou menor do que a imagem que projetava. E o PSDB tornou-se um partido sem perspectivas de poder. Essa foi a derradeira herança de Serra - justamente o político que, nos anos 90, encarnava as esperanças de renovação do partido.