segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Ilustrações sobre filmes - por Marie Bergeron (Site homônimo)

A tragédia da civilização do automóvel - por Cesar Sanson (Brasil de Fato)

O carro promete liberdade, mas se tornou uma espécie de cárcere privado. A tragédia da ‘civilização do automóvel’ é resultado das políticas do Estado que sempre foram generosas com a indústria automotiva

Há exatos 40 anos, num ensaio considerado visionário, André Gorz publicou um texto intitulado ‘Le Sauvage’ [O Selvagem]. O ensaio, datado de 1973, é considerado pelos ambientalistas como o ‘Manifesto contra o carro’ por antecipar a tragédia da civilização do automóvel. No texto, Gorz afirma que “o carro fez a cidade grande inabitável, a fez fedorenta, barulhenta, sufocante, empoeirada, congestionada”.

O carro instaurou uma lógica e um estilo de vida que promete liberdade, mas no lugar de ir e vir se tornou uma espécie de cárcere privado. Paradoxalmente, promete agilidade, mas proporciona a lentidão dos tempos pré-industriais. Promete ganhar tempo, mas na realidade faz perder tempo.

Eles entopem os estacionamentos das universidades privadas e públicas, dos aeroportos, dos shoppings, dos supermercados. Estacionar já se tornou um drama. Ter uma vaga cativa – e gratuita – é um privilégio que se assemelha ao da casa própria. Nos grandes centros já é mais caro estacionar do que almoçar.

O estresse no trânsito é alto, os engarrafamentos enormes, a irritação é grande, mas ninguém quer abrir mão do carro. E ainda tem mais: quanto mais potente, belo e equipado, melhor. O sociólogo Richard Sennett, em seu livro A nova cultura do capitalismo, afirma que as pessoas se movem pela "paixão consumptiva" que assume as formas de "envolvimento em imagística e incitação pela potência", ou seja, as pessoas quando consomem não compram apenas produtos, mas prazer e poder.

O fantástico e maravilhoso mundo prometido pelo carro tem um outro lado menos edificante. O carro provoca o caos, confusão, barulho, estresse, poluição, perdas econômicas e, o pior, mata. E mata muito. As estatísticas dão conta de que mata em média mais de 50 mil pessoas por ano, apenas no Brasil.

A tragédia da ‘civilização do automóvel’ tem como um dos responsáveis as políticas do Estado que sempre foram generosas com a indústria automotiva. No caso brasileiro, o modelo de desenvolvimento ancorou nas montadoras a sua base crescimentista. Desde Juscelino Kubistchek, a indústria automotiva recebe incentivos, subsídios e isenções.

Erigimos o ‘Império do automóvel’ e agora - da prometida sociedade do bem-estar -, ele, o carro, nos empurra para um crescente mal-estar. A mobilidade prometida pelo carro aos indivíduos se tornou fonte de angústia, estresse e sofrimento.

Outra mobilidade e cidade são possíveis, porém é preciso superar a cultura carrocentrista e promover ousadas políticas públicas que invistam pesado no transporte coletivo.


Cesar Sanson é professor de sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

domingo, 29 de setembro de 2013

Fotografia - por AP/Yahoo!


Kuala Lumpur, Malásia – Kristian Moxnes, base jumper da Noruega, salta de uma altura de 300 metros do prédio mais alto de Kuala Lumpur.

Discurso do presidente do Uruguai Jose 'Pepe" Mujica na ONU


Amigos, sou do sul, venho do sul. Esquina do Atlântico e do Prata, meu país é uma planície suave, temperada, uma história de portos, couros, charque, lãs e carne. Houve décadas púrpuras, de lanças e cavalos, até que, por fim, no arrancar do século 20, passou a ser vanguarda no social, no Estado, no Ensino. Diria que a social-democracia foi inventada no Uruguai.

Durante quase 50 anos, o mundo nos viu como uma espécie de Suíça. Na realidade, na economia, fomos bastardos do império britânico e, quando ele sucumbiu, vivemos o amargo mel do fim de intercâmbios funestos, e ficamos estancados, sentindo falta do passado.

Quase 50 anos recordando o Maracanã, nossa façanha esportiva. Hoje, ressurgimos no mundo globalizado, talvez aprendendo de nossa dor. Minha história pessoal, a de um rapaz — por que, uma vez, fui um rapaz — que, como outros, quis mudar seu tempo, seu mundo, o sonho de uma sociedade libertária e sem classes. Meus erros são, em parte, filhos de meu tempo. Obviamente, os assumo, mas há vezes que medito com nostalgia.

Quem tivera a força de quando éramos capazes de abrigar tanta utopia! No entanto, não olho para trás, porque o hoje real nasceu das cinzas férteis do ontem. Pelo contrário, não vivo para cobrar contas ou para reverberar memórias.

Me angustia, e como, o amanhã que não verei, e pelo qual me comprometo. Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez, hoje, a primeira tarefa seja cuidar da vida.

Mas sou do sul e venho do sul, a esta Assembleia, carrego inequivocamente os milhões de compatriotas pobres, nas cidades, nos desertos, nas selvas, nos pampas, nas depressões da América Latina pátria de todos que está se formando.

Carrego as culturas originais esmagadas, com os restos de colonialismo nas Malvinas, com bloqueios inúteis a este jacaré sob o sol do Caribe que se chama Cuba. Carrego as consequências da vigilância eletrônica, que não faz outra coisa que não despertar desconfiança. Desconfiança que nos envenena inutilmente. Carrego uma gigantesca dívida social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares, nossos grandes rios na América.

Carrego o dever de lutar por pátria para todos.

Para que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz, e carrego o dever de lutar por tolerância, a tolerância é necessária para com aqueles que são diferentes, e com os que temos diferenças e discrepâncias. Não se precisa de tolerância com aqueles com quem estamos de acordo.

A tolerância é o fundamento de poder conviver em paz, e entendendo que, no mundo, somos diferentes.

O combate à economia suja, ao narcotráfico, ao roubo, à fraude e à corrupção, pragas contemporâneas, procriadas por esse antivalor, esse que sustenta que somos felizes se enriquecemos, seja como seja. Sacrificamos os velhos deuses imateriais. Ocupamos o templo com o deus mercado, que nos organiza a economia, a política, os hábitos, a vida e até nos financia em parcelas e cartões a aparência de felicidade.

Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até autoexclusão.

O certo, hoje, é que, para gastar e enterrar os detritos nisso que se chama pela ciência de poeira de carbono, se aspirarmos nesta humanidade a consumir como um americano médio, seriam imprescindíveis três planetas para poder viver.

Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado.

Prometemos uma vida de esbanjamento, e, no fundo, constitui uma conta regressiva contra a natureza, contra a humanidade no futuro. Civilização contra a simplicidade, contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais.

O pior: civilização contra a liberdade que supõe ter tempo para viver as relações humanas, as únicas que transcendem: o amor, a amizade, aventura, solidariedade, família.

Civilização contra tempo livre que não é pago, que não se pode comprar, e que nos permite contemplar e esquadrinhar o cenário da natureza.

Arrasamos a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos, porque somos felizes longe da convivência humana.

Cabe se fazer esta pergunta, ouvimos da biologia que defende a vida pela vida, como causa superior, e a suplantamos com o consumismo funcional à acumulação.

A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado. De salto em salto, a política não pode mais que se perpetuar, e, como tal, delegou o poder, e se entretém, aturdida, lutando pelo governo. Debochada marcha de historieta humana, comprando e vendendo tudo, e inovando para poder negociar de alguma forma o que é inegociável. Há marketing para tudo, para os cemitérios, os serviços fúnebres, as maternidades, para pais, para mães, passando pelas secretárias, pelos automóveis e pelas férias. Tudo, tudo é negócio.

Todavia, as campanhas de marketing caem deliberadamente sobre as crianças, e sua psicologia para influir sobre os adultos e ter, assim, um território assegurado no futuro. Sobram provas de essas tecnologias bastante abomináveis que, por vezes, conduzem a frustrações e mais.

O homenzinho médio de nossas grandes cidades perambula entre os bancos e o tédio rotineiro dos escritórios, às vezes temperados com ar condicionado. Sempre sonha com as férias e com a liberdade, sempre sonha com pagar as contas, até que, um dia, o coração para, e adeus. Haverá outro soldado abocanhado pelas presas do mercado, assegurando a acumulação. A crise é a impotência, a impotência da política, incapaz de entender que a humanidade não escapa nem escapará do sentimento de nação. Sentimento que está quase incrustado em nosso código genético.

Hoje é tempo de começar a talhar para preparar um mundo sem fronteiras. A economia globalizada não tem mais condução que o interesse privado, de muitos poucos, e cada Estado Nacional mira sua estabilidade continuísta, e hoje a grande tarefa para nossos povos, em minha humilde visão, é o todo.

Como se isto fosse pouco, o capitalismo produtivo, francamente produtivo, está meio prisioneiro na caixa dos grandes bancos. No fundo, são o vértice do poder mundial. Mais claro, cremos que o mundo requer a gritos regras globais que respeitem os avanços da ciência, que abunda. Mas não é a ciência que governa o mundo. Se precisa, por exemplo, uma larga agenda de definições, quantas horas de trabalho e toda a terra, como convergem as moedas, como se financia a luta global pela água e contra os desertos.

Como se recicla e se pressiona contra o aquecimento global. Quais são os limites de cada grande questão humana. Seria imperioso conseguir consenso planetário para desatar a solidariedade com os mais oprimidos, castigar impositivamente o esbanjamento e a especulação. Mobilizar as grandes economias não para criar descartáveis com obsolescência calculada, mas bens úteis, sem fidelidade, para ajudar a levantar os pobres do mundo. Bens úteis contra a pobreza mundial. Mil vezes mais rentável que fazer guerras. Virar um neo-keynesianismo útil, de escala planetária, para abolir as vergonhas mais flagrantes deste mundo.

Talvez nosso mundo necessite menos de organismos mundiais, desses que organizam fóruns e conferências, que servem muito às cadeias hoteleiras e às companhias aéreas e, no melhor dos casos, não reúne ninguém e transforma em decisões…

Precisamos sim mascar muito o velho e o eterno da vida humana junto da ciência, essa ciência que se empenha pela humanidade não para enriquecer; com eles, com os homens de ciência da mão, primeiros conselheiros da humanidade, estabelecer acordos para o mundo inteiro. Nem os Estados nacionais grandes, nem as transnacionais e muito menos o sistema financeiro deveriam governar o mundo humano. Sim, a alta política entrelaçada com a sabedoria científica, ali está a fonte. Essa ciência que não apetece o lucro, mas que mira o por vir e nos diz coisas que não escutamos. Quantos anos faz que nos disseram coisas que não entendemos? Creio que se deve convocar a inteligência ao comando da nave acima da terra, coisas assim e coisas que não posso desenvolver nos parecem impossíveis, mas requereriam que o determinante fosse a vida, não a acumulação.

Obviamente, não somos tão iludidos, nada disso acontecerá, nem coisas parecidas. Nos restam muitos sacrifícios inúteis daqui para diante, muitos remendos de consciência sem enfrentar as causas. Hoje, o mundo é incapaz de criar regras planetárias para a globalização e isso é pela enfraquecimento da alta política, isso que se ocupa de todo. Por último, vamos assistir ao refúgio de acordos mais ou menos “reclamáveis”, que vão plantear um comércio interno livre, mas que, no fundo, terminarão construindo parapeitos protecionistas, supranacionais em algumas regiões do planeta. A sua vez, crescerão ramos industriais importantes e serviços, todos dedicados a salvar e a melhorar o meio ambiente. Assim vamos nos consolar por um tempo, estaremos entretidos e, naturalmente, continuará a parecer que a acumulação é boa, para a alegria do sistema financeiro.

Continuarão as guerras e, portanto, os fanatismos, até que, talvez, a mesma natureza faça um chamado à ordem e torne inviáveis nossas civilizações. Talvez nossa visão seja demasiado crua, sem piedade, e vemos ao homem como uma criatura única, a única que há acima da terra capaz de ir contra sua própria espécie. Volto a repetir, porque alguns chamam a crise ecológica do planeta de consequência do triunfo avassalador da ambição humana. Esse é nosso triunfo e também nossa derrota, porque temos impotência política de nos enquadrarmos em uma nova época. E temos contribuído para sua construção sem nos dar conta.

Por que digo isto? São dados, nada mais. O certo é que a população quadruplicou e o PIB cresceu pelo menos vinte vezes no último século. Desde 1990, aproximadamente a cada seis anos o comércio mundial duplica. Poderíamos seguir anotando dados que estabelecem a marcha da globalização. O que está acontecendo conosco? Entramos em outra época aceleradamente, mas com políticos, enfeites culturais, partidos e jovens, todos velhos ante a pavorosa acumulação de mudanças que nem sequer podemos registrar. Não podemos manejar a globalização porque nosso pensamento não é global. Não sabemos se é uma limitação cultural ou se estamos chegando a nossos limites biológicos.

Nossa época é portentosamente revolucionária como não conheceu a história da humanidade. Mas não tem condução consciente, ou ao menos condução simplesmente instintiva. Muito menos, todavia, condução política organizada, porque nem se quer tivemos filosofia precursora ante a velocidade das mudanças que se acumularam.

A cobiça, tão negativa e tão motor da história, essa que impulsionou o progresso material técnico e científico, que fez o que é nossa época e nosso tempo e um fenomenal avanço em muitas frentes, paradoxalmente, essa mesma ferramenta, a cobiça que nos impulsionou a domesticar a ciência e transformá-la em tecnologia nos precipita a um abismo nebuloso. A uma história que não conhecemos, a uma época sem história, e estamos ficando sem olhos nem inteligência coletiva para seguir colonizando e para continuar nos transformando.

Porque se há uma característica deste bichinho humano é a de que é um conquistador antropológico.

Parece que as coisas tomam autonomia e essas coisas subjugam os homens. De um lado a outro, sobram ativos para vislumbrar tudo isso e para vislumbrar o rombo. Mas é impossível para nós coletivizar decisões globais por esse todo. A cobiça individual triunfou grandemente sobre a cobiça superior da espécie. Aclaremos: o que é “tudo”, essa palavra simples, menos opinável e mais evidente? Em nosso Ocidente, particularmente, porque daqui viemos, embora tenhamos vindo do sul, as repúblicas que nasceram para afirmar que os homens são iguais, que ninguém é mais que ninguém, que os governos deveriam representar o bem comum, a justiça e a igualdade. Muitas vezes, as repúblicas se deformam e caem no esquecimento da gente que anda pelas ruas, do povo comum.

Não foram as repúblicas criadas para vegetar, mas ao contrário, para serem um grito na história, para fazer funcionais as vidas dos próprios povos e, portanto, as repúblicas que devem às maiorias e devem lutar pela promoção das maiorias.

Seja o que for, por reminiscências feudais que estão em nossa cultura, por classismo dominador, talvez pela cultura consumista que rodeia a todos, as repúblicas frequentemente em suas direções adotam um viver diário que exclui, que se distância do homem da rua.

Esse homem da rua deveria ser a causa central da luta política na vida das repúblicas. Os governos republicanos deveriam se parecer cada vez mais com seus respectivos povos na forma de viver e na forma de se comprometer com a vida.

A verdade é que cultivamos arcaísmos feudais, cortesias consentidas, fazemos diferenciações hierárquicas que, no fundo, amassam o que têm de melhor as repúblicas: que ninguém é mais que ninguém. O jogo desse e de outros fatores nos retém na pré-história. E, hoje, é impossível renunciar à guerra quando a política fracassa. Assim, se estrangula a economia, esbanjamos recursos.

Ouçam bem, queridos amigos: em cada minuto no mundo se gastam US$ 2 milhões em ações militares nesta terra. Dois milhões de dólares por minuto em inteligência militar!! Em investigação médica, de todas as enfermidades que avançaram enormemente, cuja cura dá às pessoas uns anos a mais de vida, a investigação cobre apenas a quinta parte da investigação militar.

Este processo, do qual não podemos sair, é cego. Assegura ódio e fanatismo, desconfiança, fonte de novas guerras e, isso também, esbanjamento de fortunas. Eu sei que é muito fácil, poeticamente, autocriticarmo-nos pessoalmente. E creio que seria uma inocência neste mundo plantear que há recursos para economizar e gastar em outras coisas úteis. Isso seria possível, novamente, se fôssemos capazes de exercitar acordos mundiais e prevenções mundiais de políticas planetárias que nos garantissem a paz e que a dessem para os mais fracos, garantia que não temos. Aí haveria enormes recursos para deslocar e solucionar as maiores vergonhas que pairam sobre a Terra. Mas basta uma pergunta: nesta humanidade, hoje, onde se iria sem a existência dessas garantias planetárias? Então cada qual esconde armas de acordo com sua magnitude, e aqui estamos, porque não podemos raciocinar como espécie, apenas como indivíduos.

As instituições mundiais, particularmente hoje, vegetam à sombra consentida das dissidências das grandes nações que, obviamente, querem reter sua cota de poder.

Bloqueiam esta ONU que foi criada com uma esperança e como um sonho de paz para a humanidade. Mas, pior ainda, desarraigam-na da democracia no sentido planetário porque não somos iguais. Não podemos ser iguais nesse mundo onde há mais fortes e mais fracos. Portanto, é uma democracia ferida e está cerceando a história de um possível acordo mundial de paz, militante, combativo e verdadeiramente existente. E, então, remendamos doenças ali onde há eclosão, tudo como agrada a algumas das grandes potências. Os demais olham de longe. Não existimos.

Amigos, creio que é muito difícil inventar uma força pior que nacionalismo chauvinista das grandes potências. A força é que liberta os fracos. O nacionalismo, tão pai dos processos de descolonização, formidável para os fracos, se transforma em uma ferramenta opressora nas mãos dos fortes e, nos últimos 200 anos, tivemos exemplos disso por toda a parte.

A ONU, nossa ONU, enlanguesce, se burocratiza por falta de poder e de autonomia, de reconhecimento e, sobretudo, de democracia para o mundo mais fraco que constitui a maioria esmagadora do planeta. Mostro um pequeno exemplo, pequenino. Nosso pequeno país tem, em termos absolutos, a maior quantidade de soldados em missões de paz em todos os países da América Latina. E ali estamos, onde nos pedem que estejamos. Mas somos pequenos, fracos. Onde se repartem os recursos e se tomam as decisões, não entramos nem para servir o café. No mais profundo de nosso coração, existe um enorme anseio de ajudar para que o homem saia da pré-história. Eu defino que o homem, enquanto viver em clima de guerra, está na pré-história, apesar dos muitos artefatos que possa construir.

Até que o homem não saia dessa pré-história e arquive a guerra como recurso quando a política fracassa, essa é a larga marcha e o desafio que temos daqui adiante. E o dizemos com conhecimento de causa. Conhecemos a solidão da guerra. No entanto, esses sonhos, esses desafios que estão no horizonte implicam lutar por uma agenda de acordos mundiais que comecem a governar nossa história e superar, passo a passo, as ameaças à vida. A espécie como tal deveria ter um governo para a humanidade que superasse o individualismo e primasse por recriar cabeças políticas que acudam ao caminho da ciência, e não apenas aos interesses imediatos que nos governam e nos afogam.

Paralelamente, devemos entender que os indigentes do mundo não são da África ou da América Latina, mas da humanidade toda, e esta deve, como tal, globalizada, empenhar-se em seu desenvolvimento, para que possam viver com decência de maneira autônoma. Os recursos necessários existem, estão neste depredador esbanjamento de nossa civilização.

Há poucos dias, fizeram na Califórnia, em um corpo de bombeiros, uma homenagem a uma lâmpada elétrica que está acesa há cem anos. Cem anos que está acesa, amigo! Quantos milhões de dólares nos tiraram dos bolsos fazendo deliberadamente porcarias para que as pessoas comprem, comprem, comprem e comprem.

Mas esta globalização de olhar para todo o planeta e para toda a vida significa uma mudança cultural brutal. É o que nos requer a história. Toda a base material mudou e cambaleou, e os homens, com nossa cultura, permanecem como se não houvesse acontecido nada e, em vez de governarem a civilização, deixam que ela nos governe. Há mais de 20 anos que discutimos a humilde taxa Tobin. Impossível aplicá-la no tocante ao planeta. Todos os bancos do poder financeiro se irrompem feridos em sua propriedade privada e sei lá quantas coisas mais. Mas isso é paradoxal. Mas, com talento, com trabalho coletivo, com ciência, o homem, passo a passo, é capaz de transformar o deserto em verde.

O homem pode levar a agricultura ao mar. O homem pode criar vegetais que vivam na água salgada. A força da humanidade se concentra no essencial. É incomensurável. Ali estão as mais portentosas fontes de energia. O que sabemos da fotossíntese? Quase nada. A energia no mundo sobra, se trabalharmos para usá-la bem. É possível arrancar tranquilamente toda a indigência do planeta. É possível criar estabilidade e será possível para as gerações vindouras, se conseguirem raciocinar como espécie e não só como indivíduos, levar a vida à galáxia e seguir com esse sonho conquistador que carregamos em nossa genética.

Mas, para que todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos governar a nós mesmos, ou sucumbiremos porque não somos capazes de estar à altura da civilização em que fomos desenvolvendo.

Este é nosso dilema. Não nos entretenhamos apenas remendando consequências. Pensemos na causa profundas, na civilização do esbanjamento, na civilização do usa-tira que rouba tempo mal gasto de vida humana, esbanjando questões inúteis. Pensem que a vida humana é um milagre. Que estamos vivos por um milagre e nada vale mais que a vida. E que nosso dever biológico, acima de todas as coisas, é respeitar a vida e impulsioná-la, cuidá-la, procriá-la e entender que a espécie é nosso “nós”.


Obrigado.

Tradução: Diário do Centro do Mundo

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Fotografia - por Jeff Hahn (jeff-hahn.com)

As curiosas ressalvas do Estadão ao discurso de Dilma na ONU - por Luis Nassif (Jornal GGN)

As curiosas ressalvas do Estadão ao discurso de Dilma na ONU - por Luis Nassif (Blog do Nassif)
É curiosa a posição da velha mídia em relação ao pronunciamento da Dilma Rousseff na ONU (Organização das Nações Unidas, conforme se percebe nos editoriais do Estadão. Dilma alertou para a necessidade de uma discussão global sobre os rumos e a governança na Internet e sobre as guerras cibernéticas.

Não foi possível ignorar sua repercussão. O Estadão abre o editorial refletindo o que a imprensa internacional constatou:

“O assertivo protesto da presidente Dilma Rousseff, na abertura da Assembleia-Geral da ONU, contra a rede global de espionagem eletrônica tecida pela Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos foi a resposta que lhe cabia dar, até mesmo na condição de chefe de Estado que foi pessoalmente monitorada pelo megaesquema de bisbilhotice. Ela arrolou os alvos brasileiros do que chamou apropriadamente de "intrusão", ressaltou a "afronta" que isso representa aos princípios que devem reger as relações entre países soberanos, "sobretudo entre nações amigas", e contestou a alegação americana de que a defesa contra o terrorismo - "as preocupações legítimas de segurança de nossos cidadãos e aliados", enfatizaria em seguida o presidente Barack Obama - é a meta única dos "mecanismos pelos quais reunimos inteligência", ainda nas suas palavras. "O Brasil", apontou Dilma, "repudia, combate e não dá abrigo a grupos terroristas."”

A partir daí, o editorial desenvolve um curioso raciocínio desqualificador:

“Não deve a presidente imaginar que a sua fala, além dos protocolares aplausos com que foi acolhida no plenário tido como o mais importante do mundo, fará diferença na grande ordem das coisas”.

O jornal critica a proposta da Dilma, de defesa da neutralidade da rede, porque “estados autoritários como os da Rússia e China, para não mencionar o big business da rede, tenderão sabotar a ideia de uma “governança democrática, multilateral e aberta”. Critica como se o fato de haver resistência à tese da neutralidade da rede deveria desestimular a defesa da ideia.

Todas as grandes tecnologias de ruptura na área da informação – como o rádio e a televisão – começaram sob o manto da diversidade e terminaram presa em modelos cartelizadores. Pela primeira vez, no mais importante palco multilateral do planeta, um governante fala – e é ouvido – sobre a necessidade de impedir que a Internet siga a mesma sina das tecnologias anteriores.

A diferença é que, nos casos anteriores, o Estado nacional mantém pleno controle sobre o setor, já que as frequências são confinadas aos territórios. No caso da Internet, seu aspecto universal provoca conflitos de interesse entre as grandes corporações globais e os Estados.

É um tema candente, que levou estados como a China a decisões unilaterais de impor o poder soberano sobre a rede.

Ao levar a proposta de discutir uma governança global, Dilma abre uma nova perspectiva, uma frente até então inédita – e essencial – de discussão sobre os rumos da Internet.

Houve a iniciativa, houve a ampla repercussão nos principais veículos internacionais. A conclusão do velho veículo, no entanto, é que o discurso de Dilma visou “o eleitorado nacional”.

Se Eder Jofre fosse presidente de um partido contrário ao Estadão e conquistasse o campeonato mundial de boxe, o jornal diria que ele fez isso tudo apenas visando “o eleitorado”.

Trata-se de uma ideia fixa. E não propriamente da presidente.


Pintura - por Maja Wrońska


Links:
http://takmaj.deviantart.com/#
http://www.behance.net/takmaj
https://www.facebook.com/takmaj.majawronska

Uma capa resume tudo - por Mino Carta (CartaCapital)

Veja não surpreende. Espanta quem acredita nela entre privilegiados e aspirantes ao privilégio

Estarrece que larga porção da sociedade acredite nas
interpretações de Veja e repita seus pareceres mirabolantes
Berlusconi é o político mais bem-sucedido da Itália dos últimos 20 anos. Como se sabe, foi um desastre, e não espanta que tenha sido, com o condão de pagar agora pelas mazelas cometidas. Espanta, isto sim, que metade dos italianos tenha votado nele. Passo a falar de Brasil. A capa de Veja desta semana é o símbolo irretocável de um singular humor em que se misturam má-fé e estupidez. A revista da Abril mesmo assim não nos surpreende, já sabemos do que é capaz de longa data. Estarrece que larga porção da sociedade nativa, privilegiados e aspirantes ao privilégio, acredite nas interpretações de Veja e repita passagens dos seus pareceres mirabolantes.

O espetáculo midiático proporcionado na cobertura do chamado “mensalão” é, em geral, estarrecedor ao revelar em toda a sua evidência o atraso intelectual e cultural dos tais cidadãos a que me referi, jornalistas e seus patrões, leitores, espectadores, ouvintes. Todos unidos na demonstração de uma parvoíce movida a raiva, ódio de classe, medo, preconceito, hipocrisia, inveja, abissal ausência de espírito crítico.

A tigrada dita de classe média (média até agora não sei por quê) é, aliás, a própria, definitiva, irremediável prova da incapacidade de cumprir o papel que compete à burguesia. Aquele, digamos, de precipitar a Revolução Francesa. Pelo contrário, aí está a provar a ignorância, mau gosto, provincianismo, pavor da mudança. Dizia Lévi-Strauss ao definir os senhores paulistanos 80 anos atrás: “Eles se têm em alta conta e não sabem como são típicos”. Illo tempore, os senhores viam em Paris o umbigo do mundo. A tipicidade aumentou, e hoje, ao comporem uma categoria muito mais vasta, substituem a Ville Lumière por Miami.

Pouparei os amáveis frequentadores deste espaço das minhas considerações a respeito das gravatas amarelo-ouro ou da descoberta do vinho que alguns carregam aos restaurantes em bolsas apropriadas. De couro cru, para o desconforto de quem sonha com estes luxos e ainda não chegou lá. Citarei a leitura escassa ou mesmo nula: há mais livrarias em Buenos Aires do que no Brasil todo. O estudo precário, a péssima lida com o vernáculo, a eterna expectativa do favor dos amigos ou do arreglo por baixo do pano.

Cabe evocar tudo aquilo que certifica a mediocridade da turma. O caos arquitetônico, isento de módulos e linhas mestras, frequentemente inspirado em Gotham City, quando não entregue à imitação de modelos de outros cantos do mundo, escolhidos conforme a veneta do dia, sem excluir telhados normandos na previsão da neve. Ou mesmo a certeza, tipicamente local, de que São Paulo é capital gastronômica do planeta, alimentada por quem até ontem mastigava espaguete regado a uísque.

Vezos burgueses, amparados em tradições seculares, ou em modismos momentâneos, carecem de maior importância, está claro. Resta o fato desta ferocidade desvairada, para não dizer demente, diante de um episódio, embargos infringentes justificados pelas leis, e que tanto podem abrandar as penas dos condenados quanto agravá-las, conforme esclareceu em vão o ministro Celso de Mello. Cresce, na moldura do evento, a desinformação generalizada, o desconhecimento do código e do quem é quem.

Ocorre-me um amigo que eu chamava de samurai, Luiz Gushiken, ministro de Lula no primeiro mandato, primeira vítima do “mensalão” sem qualquer culpa em cartório, de fato aquele que percebeu o papel devastadoramente daninho do banqueiro Daniel Dantas, visceralmente envolvido no processo e tão chegado a petistas de outro naipe, como Márcio Thomaz Bastos, José Dirceu, Luiz Eduardo Greenhalgh, sem contar o atual ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Gushiken morreu dia 13 passado, honrado e, receio, infeliz.

Outro injustiçado é José Genoino, que, segundo Veja, gargalha com o voto de Celso de Mello. A malta não sabe que Genoino é um herói brasileiro, esperançoso e iludido até as últimas consequências, acreditou que o Araguaia seria a Sierra Maestra brasileira, e, ao lado de 80 companheiros, lutou contra 10 mil soldados da ditadura. Torturado brutalmente, ressurgido das cinzas, ainda espera que o Brasil deixe de ser o país da casa-grande e da senzala. Ao contrário do que afirmam seus inquisidores a pretendê-lo “mensaleiro”, não sabe onde cair morto, se me permitem a linguagem rasteira.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Fotografia - por Vanessa Rees (vkreesphotography)

Lei de terrorismo é ameaça contra movimentos e manifestações - por Marcelo Semer (Terra Magazine)

O Congresso Nacional está apreciando uma lei que torna crime o terrorismo, mas que pode se voltar contra a própria democracia.

A criação do tipo do terrorismo nunca foi uma prioridade entre nós, porque jamais passou de uma ansiedade importada de outros países.

Mas vira e mexe pululam propostas para criar o crime, quase todas com redações exageradamente amplas que permitem, ou na verdade procuram, criminalizar os movimentos sociais e por em risco as lutas democráticas.

É o caso do projeto proposto pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR), relatado pelo deputado Miro Teixeira (PDT-RJ).

É sintomático que o novo projeto tenha vindo à discussão pouco após as manifestações populares iniciadas em junho.

O risco de criminalizar a política não é nada desprezível. Afinal, o tipo proposto é justamente o de “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado”, por motivos ideológicos, religiosos, políticos ou de preconceito.

O problema não está apenas no texto vago, na imprecisão do que é “infundir terror ou pânico” – mas também na circunstância de que entre o fato e o pânico se interponham uma série de intermediários, sendo os meios massivos de comunicação os mais expressivos.

Privilegiando a cultura do medo, não raro mergulhando no sensacionalismo quando trata de questões de segurança, é difícil mensurar o quanto de pânico não é alimentado pela própria imprensa, cujo poder de convencimento tem se mostrado, no campo do direito, cada vez mais profundo.

A conduta típica envolveria qualquer “ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade” e mistura numa mesma pena, de altíssimos quinze anos de reclusão mínima, condutas bem distintas, indicando uma violação frontal da proporcionalidade. Violação essa que segue o restante do texto, com penas mínimas superiores ao limite de trinta anos, e sistema progressivo praticamente amputado, tal como uma lei de exceção.

A lembrança de manifestações recentes se evoca quando da previsão do inusitado terrorismo contra coisa, que criminaliza com penas de 8 a 20 anos (maiores do que o próprio homicídio) quem provoca o pânico mediante dano a bem ou serviço essencial pelos mesmos motivos políticos e ideológicos – e como bem de serviço essencial, a lei elenca desde uma estação de metrô até estádios esportivos.

Como todo bom projeto de intenção antidemocrática, a lei também prevê o tipo de “incitação” que é outra porta aberta para a punição política, inclusive pela divulgação de material gráfico, sonoro ou de vídeo, com especial aumento pela utilização de redes sociais.

A cobertura de fatos que ocorram em protestos – ou, especificamente, a crítica aos abusos da repressão policial- poderiam claramente ser compreendidos como incitação.

Ademais do tipo aberto e vago, a ser preenchido por interpretações sensíveis aos escaninhos da política, o projeto estipula, ainda, um crime autônomo de associação, viabilizando a punição prévia, ou seja, sem a prática de qualquer ato reputado como de terrorismo.

Os recentes casos de criminalização indireta pela “posse de vinagre” e a proibição de máscaras já antecipam o que se prevê como objeto desta associação.

A cláusula de exclusão de crime por movimentos sociais tampouco é segurança contra o abuso da lei.
Não afasta a hipótese de que os órgãos de repressão ou mesmo judiciais concluam que o movimento não age por propósitos sociais ou reivindicatórios – afirmações que já se ouviu em anteriores atos políticos, como ocupações de terra ou espaços públicos.

Usar o direito penal para restringir o pluralismo, ameaçar a liberdade de expressão e de manifestação, criminalizar a crítica que muitas vezes reconstrói o direito, são elementos estranhos ao estado democrático.

Todos os excessos, que lesionam bens tutelados pelo direito penal, já são criminalizados, do dano ao homicídio, das lesões à formação de quadrilha.

Uma lei que ameaça manietar a ação política e as liberdades democráticas é o que menos o país precisa nesse momento.

A presidenta Dilma Roussef abriu a Assembleia Geral da ONU criticando, em discurso histórico e corajoso, a espionagem norte-americana justamente pela supressão de direitos fundamentais, sob o pretexto de defesa contra o terrorismo.


Espera-se que o Brasil não faça o mesmo com seus próprios cidadãos.

Fotografia - por Yahoo!



Ahmedabad, Índia – Devotos indianos colocam altar do semideus Ganesha dentro do rio Sabarmati, na cidade de Ahmedabad. Os hindus veneram a imagem para pedir suas bênçãos em busca de sabedoria e prosperidade.

Democracia e parceria - por Luiz Inácio Lula da Silva (Instituto Lula)

São gravíssimos os atos de espionagem praticados pela NSA – a Agência Nacional de Segurança dos EUA – contra os Chefes de Estado do Brasil e do México. Nada, absolutamente nada pode justificar a interceptação de telefonemas e a invasão da correspondência reservada dos Presidentes da República de países amigos, ferindo a sua soberania e desrespeitando os princípios mais elementares da legalidade internacional. E é mais grave ainda que importantes autoridades norte-americanas tenham querido legitimar tal agressão com o argumento de que os EUA estariam “protegendo” os interesses dos nossos países.

À medida que a verdade dos fatos vai sendo revelada, fica evidente que, no caso brasileiro, além da Presidente Dilma Rousseff, a Petrobrás, nossa empresa petrolífera, também foi espionada pela NSA, o que desmente as alegadas – e já por si inaceitáveis – razões de segurança.

A inadmissível ingerência nos assuntos internos do Brasil e as falsas razões alegadas provocaram a indignação da sociedade e do governo brasileiros. A Presidente Dilma Rousseff já questionou diretamente o Presidente Barack Obama sobre o problema e aguarda uma resposta convincente, à altura de sua gravidade.

O governo brasileiro está tratando o caso com a maturidade e o sentido de responsabilidade que caracterizam a Presidente Dilma Rousseff e a nossa diplomacia – mas é impossível subestimar o impacto que ele pode ter, se não for adequadamente resolvido, para as relações Brasil-EUA.

Basta imaginar o escândalo e a comoção que aconteceriam nos Estados Unidos se algum país amigo interceptasse ilegalmente, sob qualquer pretexto, os telefonemas e a correspondência reservada de seu Presidente.

O que leva um país como os EUA, tão justamente ciosos de sua democracia e de sua legalidade internas, a afrontarem a democracia e a legalidade dos outros? O que faz pensar às autoridades norte-americanas que elas podem e principalmente devem agir de modo tão insensato contra um país amigo? O que as faz acreditar que não existe nenhum inconveniente moral ou político em desrespeitar o Chefe de Estado, as instituições e as empresas do Brasil ou de qualquer outro país democrático?

E o mais inexplicável é que essa flagrante ofensa à soberania e à democracia brasileiras acontece num contexto de excelentes relações bilaterais. O Brasil, historicamente, sempre valorizou as suas relações com os Estados Unidos. Nos últimos dez anos, trabalhamos ativamente, e com bons resultados, para ampliar ainda mais a interação econômica e política do Brasil com os EUA. Mantivemos ótimo diálogo institucional e pessoal com os seus governantes. Apostamos em uma parceria de fato estratégica entre os dois países, baseada em interesses comuns, sem prejuízo do nosso esforço pela integração da América Latina e de um maior intercambio com a África, a Europa e a Ásia.

Para isso, não hesitamos em enfrentar a desconfiança e o ceticismo de amplos setores da opinião pública brasileira, ainda traumatizados pela participação direta do governo norte-americano no golpe de Estado de 1964 e o seu permanente apoio à ditadura militar (como, de resto, a outras ditaduras militares do continente). Nunca duvidamos de que aprofundar o diálogo e fortalecer os laços econômicos e diplomáticos com os Estados Unidos fosse a melhor maneira de ajudá-los a superarem aquela página sombria das relações interamericanas, e a sua política de ingerência autoritária e antipopular na região.

No episódio atual, se ambos os países querem preservar o muito que as nossas relações bilaterais avançaram nas décadas recentes, cabe uma explicação crível e o necessário pedido de desculpas dos EUA. Mais do que isso: impõe-se a sua decidida mudança de atitude, pondo fim a tais práticas abusivas.

Os EUA devem compreender que a desejável parceria estratégica entre os dois países não pode assentar-se na atitude conspirativa de uma das partes. Condutas ilegais e desrespeitosas certamente não contribuem para construir uma confiança duradoura entre os nossos povos e os nossos governos.

Um episódio como esse, por outro lado, demonstra o esgotamento da atual governança mundial, cujas instituições, regras e decisões são frequentemente atropeladas por países que muitas vezes confundem seus interesses particulares com os interesses de toda a comunidade internacional. Demonstra que é mais urgente do que nunca superar o unilateralismo, seja ele dos EUA ou de qualquer outro país, e criar verdadeiras instituições multilaterais, capazes de conduzir o planeta com base nos preceitos do Direito Internacional e não na lei dos mais fortes.

O mundo de hoje, como ninguém ignora, é muito diferente daquele que emergiu da 2ª Guerra Mundial. Além da descolonização africana e asiática, diversos países do sul se modernizaram e industrializaram, conquistando importantes progressos sociais, culturais e tecnológicos. Com isso, adquiriam um peso muito superior no cenário mundial. Hoje, os países que não fazem parte do G-8 representam nada menos que 70% da população e 60% da economia do mundo. Mas a ordem política global continua tão monopolizada e restritiva quanto no início da guerra fria. A maioria dos países do mundo está excluída dos verdadeiros espaços de decisão. É injustificável, por exemplo, que a África e a América Latina não tenham nenhum membro permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Ou que a Índia esteja fora dele. A governança global precisa refletir o mundo contemporâneo. O Conselho de Segurança só será plenamente legítimo e democrático – e acatado por todos – quando as várias regiões do mundo participarem dele, e os seus membros não defenderem apenas os próprios interesses geopolíticos e econômicos, mas representarem efetivamente o anseio de todos os povos pela paz, a democracia e o desenvolvimento.

Esse episódio e outros semelhantes apontam também para uma questão crucial: a necessidade de uma governança democrática para a internet, de modo que ela seja cada vez mais um terreno de liberdade, criatividade e cooperação – e não de espionagem.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Fotografia - por Gordon Gahan (National Geogrpahic)

Circo tucano - por Leandro Fortes (CartaCapital)

Agora, falando sério.

Quem, pelas pedras pisadas do cais, deu essa ideia de jerico ao governador Geraldo Alckmin? Em que mundo vivem os tucanos de São Paulo, ainda crentes da possibilidade de enganar um país inteiro com uma maluquice dessas? Não aprenderam NADA com o episódio da bolinha de papel de José Serra? Nada, nada?

A meu ver, a única explicação para uma saída indecente e patética como essa – o suspeito de ser corrupto processar o corruptor que está colaborando com a Justiça – é a plena confiança que essas lideranças do PSDB têm na submissão e na cumplicidade dessa velha e carcomida mídia nacional. Não tem outra explicação.

Quando li essa informação na coluna de Mônica Bergamo, a quem admiro como ótima jornalista que é, juro que pensei que era mais uma sacanagem de José Simão. Mas não era.

A notícia de que Alckmin, um dos principais suspeitos de ter montado e se beneficiado do esquema de propinas da Siemens, irá processar a empresa alemã foi dada de forma séria, como se isso fosse possível, como se fôssemos, todos nós, idiotas ligados aos tubos da Matrix.

Eu compreendo os conservadores, essas pessoas que têm uma visão individualista do mundo, das relações sociais, que imaginam ser o liberalismo econômico a única saída para o pleno desenvolvimento social. A vida seria insuportável se todos pensassem da mesma forma – e eu não teria com quem quebrar o pau no Facebook. A direita deve ter seu encanto, senão não teria tanta gente com ódio do Bolsa Família e com tanta saudade da ditadura militar.

Mas eu acho que, agora, essa discussão deve se sobrepor ao posicionamento político de cada um.

O grupo político que arrota austeridade, choques de gestão e aponta o dedo na cara de mensaleiros e petralhas é este que, agora, está sob a mira da Justiça suíça e do Ministério Público de São Paulo, embora deste último não se deva esperar muita coisa contra os tucanos.

Este grupo político, há quase duas décadas no governo de São Paulo, inclui, além de Geraldo Alckmin, o falecido Mário Covas e o vivíssimo José Serra.

A história de Covas, é uma pena, não merecia essa mácula, mas o fato é que o esquema da Siemens começou com ele. É pouco provável que ele não soubesse do que estava acontecendo, ainda mais porque o negócio, ao que tudo indica, era tocado por um assessor direto dele, Robson Marinho.

Alckmin, este que quer processar a Siemens, deu andamento e tamanho ao esquema. Serra foi o feliz herdeiro que, segundo e-mails trocados por executivos da empresa alemã, costurava os acordos para modernizar a formação do cartel.

Não tenho dúvidas de que jornalões e alguns jornalistas dessa triste mídia brasileira irão, apesar do ridículo, endossar essa estratégia de Alckmin para manter o mínimo de dignidade eleitoral dos tucanos, para manter viva a esperança de derrotar Dilma Rousseff, de qualquer maneira, em 2014.

O Jornal Nacional fez esse serviço, em 2010, quando inventou que Serra, além da bolinha de papel, havia levado na careca um petardo de rolo de fita crepe de 100 quilos.

Mas e as pessoas decentes, de boa fé, estas que foram à rua bradar contra a corrupção quando o gigante acordou?

O que farão essas pessoas?

Vão se deixar cair, novamente, no conto da bolinha de papel?

Vão compactuar com mais essa palhaçada apenas para manter alimentado o bicho conservador e antipetista que têm na barriga?