sexta-feira, 23 de março de 2018

Fotografia - por Eric Valli (Série Grande Himalaia - site homônimo)

Os vira-latas batem às portas da OECD – por André Araújo (Jornal GGN)



A Organização Europeia para Cooperação e Desenvolvimento é conhecida como o “Clube dos Ricos”. Na verdade, essa entidade é uma reconfiguração do órgão gestor do European Recovery Plan, na prática a “Administração do Plano Marshall”, instalada pelos EUA em Paris em 1948 no Chateau de la Muette, antiga residência das amantes do Rei Luis XV, Madame de Pompadour e Madame Dubarry. A atual OECD é anterior à própria União Europeia, que a sobrepõe, deixando a impressão de ser hoje uma burocracia a procura de razão para existir.
Encerrado o Plano Marshall a administração desse vasto programa de recuperação da economia europeia virou a atual OECD, entidade que visa tratar de temas comuns da economia de seus membros, que hoje são 34, incluindo países não europeus como EUA, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Japão, Coreia do Sul, Chile, Israel e México.
O Secretário-Geral desde 2005 é o ex-Ministro da Fazenda do México (1994-1997) do governo Zedillo, Angel Gurria, um notório e agressivo neoliberal dos anos 90, sendo estranho um mexicano liderando uma entidade de expressão europeia, mas é explicável porque o comando político da OECD é dos EUA, seu principal financiador com 80 milhões de dólares por ano e Gurria é um completo serviçal dos interesses americanos desde que foi o negociador mexicano do fatídico tratado NAFTA. Esse tratado hoje é renegado pelo governo Trump, que despreza e espezinha o México como um mendigo na rua, humilhando esse outrora orgulhoso País com um vexatório muro, como a separar mestiços criminosos de brancos sadios.
Os neoliberais mexicanos, de Salinas a Zedillo foram os responsáveis por essa diminuição de estatura de um País prestigiado por sua política externa independente, que negou relações com a Espanha franquista até a morte do ditador, foi o primeiro país do mundo a nacionalizar o petróleo, hospedou Trotsky, que era escorraçado no mundo inteiro, todo esse imenso legado de um regime altivo de grande País foi jogado no lixo por figuras subalternas do neoliberalismo como Angel Gurria. Ele que, no mês passado, veio ao Brasil nos passar lições arrogantes de como o País deve ser dirigido. Mas ele não veio por conta própria, veio a convite dos neoliberais brasileiros do mesmo naipe, que se sentiram honrados por receber seu colega de subserviência ao sistema econômico dos países centrais, papel a que se presta Gurria.
Angel Gurria foi também Ministro do Exterior do México (1998-2000) e foi o arquiteto da integração da economia mexicana na dos EUA. Ele é o criador do NAFTA pelo lado mexicano, fazendo o México abandonar sua histórica e respeitada política externa independente ostentada durante a maior parte do Século XX, respeitada em todo o mundo. Hoje a integração que ele cultuou como grande obra está posta em cheque por Trump que chama os imigrantes mexicanos de vagabundos, assaltantes e estupradores, uma diáspora de milhões de trabalhadores valorosos essenciais para a economia de serviços dos EUA.
Gurria pode se gabar de ter colocado o México de joelhos e de forma humilhante perante os EUA, como sócio minoritário do NAFTA, esse mesmo outrora lendário país da primeira Revolução do Século XX, de Pancho Villa e Emiliano Zapata, que transformaram o México em líder emblemático da América hispânica, país de sangrenta história e orgulhosa cultura para se tornar como tributário menor da economia americana, hoje submetido à humilhação de um “muro da vergonha” para isolar os sujos mexicanos dos limpos americanos. Essa é a obra de Angel Gurria, líder da OECD que vem aqui dar pitacos para ver se o Brasil entra na OECD na mesma condição humilhante do México, aluno das lições neoliberais de segunda mãos que ele já veio nos dar com a mensagem de “ vocês devem se enquadrar” mais do que o Brasil já está.
Sua visão para o Brasil é desse viés, o Brasil como dependente do sistema neoliberal anglo-americano que hoje enfrenta desafios e contestações por todo lado, da Rússia à China, especialmente dentro de casa com uma inédita ruptura social da classe média que levou à eleição de Trump, ele mesmo um contestador da ordem globalista neoliberal, que ironia.
A presença de Gurria na Secretaria Geral é o maior indicativo dos caminhos da OECD.
Há por toda Europa estadistas mais qualificados para um cargo tão sensível do que esse ferrabrás neoliberal formado em Harvard que jogou fora a história do seu País para torná-lo uma dependência humilhada e desprezada dos Estados Unidos, modelo que os Meirelles daqui querem repetir como se fosse coisa boa, um Porto Rico maior.
Na verdade, a OECD é uma anomalia e nem deveria existir. É uma entidade de “CAUSAS” e não de Estados, se propõe a liderar causas de todos os tipos por cima e acima dos Estados nacionais. O que aparecer no mercado de causas mediáticas e politicamente corretas a OECD abraça e torna sua bandeira, todas essas causas operam contra os Estados fracos.
Os EUA de hoje não dão a mínima importância à organização, uma espécie de sub-ONU regional mais focada em temas econômico-sociais do que em relações internacionais de natureza estratégica, a OECD prefere questões pacificadas do que áreas de conflito, abocanhando uma longa série de pequenos pedaços de soberanias em temas específicos, retirados da zona de decisão de Estados para colocá-los nas mãos de uma burocracia não-eleita, modelo que também é da União Europeia e que está causando grandes fissuras.
O Brasil apresentou sua candidatura em 30 de maio do ano passado sem qualquer discussão no Congresso ou em lugar algum, nem dentro do Governo e nem com a sociedade, mas tem aparentemente o veto dos EUA, enquanto a Argentina tem seu ingresso apoiado pelos EUA.
Pergunta-se, a Comissão de Relações Exteriores e Defesa da Câmara dos Deputados foi ouvida sobre esse ingresso na OECD? E a Comissão de Relações Exteriores do Senado?
A adesão do Brasil a OECD não é coerente com uma estratégia de afirmação como país de liderança especial entre os grandes emergentes. A OECD persegue uma visão neoliberal somada a uma filosofia excessivamente focada em multiculturalismos com um viés iluminista e internacionalista que conflita com Estados com forte projeto nacional, como deveria ser o Brasil por sua dimensão geopolítica, ecológica, de recursos naturais e cultura multifacetada.
Há um enorme número de convenções, convênios, acordos e protocolos sobre múltiplos temas dentro do guarda chuva da OECD e um país uma vez aceito como membro deve aderir a esse vasto número de compromissos que significam uma parcial abdicação de soberania em significativo número de temas – não é, portanto, um clube social recreativo, há obrigações.
Antes mesmo do País ser aceito, veio ao Brasil uma delegação da OECD chefiada pelo inefável Secretário-Geral Angel Gurria, com sua voz rascante e em péssimo portunhol dando grande número de palpites no orçamento federal, a partir de um completo desconhecimento da realidade brasileira, mas sempre na linha do ajustismo “a la grega” tão desmoralizado, palpites que o Brasil não pediu e que aqui dentro a mídia vira-lata amplifica, espalha e usa como arma contra o Governo. Quem precisa disso numa crise que já tem nossos ingredientes?
O Brasil entrar na OECD é ao fim reforçar forças dentro do País que produzem um mecanismo desagregador do Estado Nacional. Aliás, pelo perfil dos proponentes do ingresso do Brasil na OECD o que pretendem é comprar mais uma camisa-de-força para amarrar um futuro governo nacionalista dentro do “esquemão neoliberal globalista” onde os países são parte de uma engrenagem, o que pode funcionar para países pequenos, mas são incompatíveis com um País das dimensões geopolíticas de um grande Estado continental como é o Brasil.
Nos últimos vinte anos a OECD apontou artilharia pesadíssima contra paraísos fiscais a ponto de demonizá-los e praticamente liquidar com grande numero deles, algo que em nada diminuiu o tráfico, o terrorismo e a evasão fiscal, mas dificulta o movimento de capitais legítimos e a proteção de recursos financeiros de governos, sujeitando todos ao arresto comandado por Estados fortes, como os EUA fizeram com o Irã em 1979 e com a Líbia em 2012. É, na essência, a criação de um sistema de controle financeiro supranacional, visando colocá-lo dentro do arbítrio de uma vasta burocracia comandada por Washington sob o pretexto virtuoso de combater a “lavagem de dinheiro”, expressão que serve para enquadrar qualquer pessoa, empresa ou Estado que o Governo americano queira atingir.
A regra apresentada como causa nobre “combater o tráfico, a corrupção e o terrorismo” serve para desproteger as grandes petroleiras estatais que controlam 91,5% das reservas de petróleo do planeta tornando suas contas bancárias vulneráveis a arrestos e bloqueios comandados pelo Departamento de Justiça, sob o disfarce de uma causa nobre.
O leigo aplaudirá o desmonte dos paraísos fiscais, maior obra até hoje da OECD, mas sob a capa moralista está a submissão de todo dinheiro do mundo ao controle do Departamento do Tesouro dos EUA, através de sua poderosa Divisão Internacional. No passado quando um País enfrentava dificuldades cambiais e corria o risco de arresto e bloqueio de reservas depositadas no exterior, transferia a reserva essencial para importação de comida e matérias primas para a Suíça, para protegê-la de arrestos. O Brasil fez isso em suas moratórias. Hoje isso se tornou impossível porque a OECD conseguiu derrubar os paraísos fiscais suíço, luxemburguês e todos os do Caribe, sempre sob a capa nobre de “combate ao terrorismo, corrupção e tráfico” junto do que foi a legítima proteção de reservas internacionais. Os EUA são campeões nesse mecanismo, arrestando em 1979 US$ 109 bilhões das reservas do Irã que estavam depositadas em Londres, ultrapassando a soberania britânica que covardemente obedeceu às ordens do Departamento do Tesouro, dinheiro esse devolvido 36 anos depois pelo Governo Obama no âmbito do acordo com o Irã.
Até hoje os depósitos do Governo da Líbia na Europa, estimados em US$150 bilhões, estão arrestados, como também foram as reservas do Iraque de Saddam Hussein. Lembrando que a Suíça foi o último refúgio de dinheiro de refugiados europeus na Segunda Guerra, milhares de famílias conseguiram sobreviver e fugir porque conseguiram a proteção suíça para seus recursos financeiros de sobrevivência.
O pedido de ingresso do Brasil, protocolado em 30 de maio de 2017, tem ao que tudo indica o dedo do Ministro da Fazenda Henrique Meirelles, que vê o Brasil como sócio menor e obediente do clube neoliberal, usando a desbotada desculpa de que aí ficaríamos melhor na foto sendo membro da OECD, os juros para empréstimos ao Brasil cairiam. Não há indicação alguma que isso aconteça só porque o Brasil entrou no clube dos ricos, quer dizer que se o Brasil for bonzinho e simpático vão nos cobrar menos, é simplesmente ridículo, são bordões que se lançam no ar para leigos que nada entendem de economia. A Turquia é país fundador da OECD e paga juros mais altos que o Brasil por razões próprias de sua economia.
Mas o pior que pode acontecer, e parece que é o que está acontecendo, é o Brasil pedir para entrar no clube pedante e ser rejeitado, é o apogeu da humilhação ao mesmo tempo que parece que a Argentina vai ser recebida com tapete vermelho porque sabe se apresentar melhor, afinal o Presidente Macri tem DNA italiano e parece um milanês rico, a Argentina é mais europeizada do que o Brasil tropical e os argentinos sempre se consideraram sub-europeus bem vestidos com aparência de ingleses que falam espanhol.
Além disso, por razões de ajuste ou má gestão, o Brasil tem atrasado sistematicamente o pagamento de seus compromissos com organismos multilaterais, a OECD significa um novo custo estimado em seis e meio milhões de dólares por ano, vamos atrasar também?
A perda de prestígio internacional do Brasil pode levar a uma recusa de seu ingresso na OECD, um vexame diplomático jamais sofrido pelo Brasil e que pode ser colocado na conta da trágica crise do Estado brasileiro causado pela autoflagelação e negação do País em nome de causas ao mesmo tempo em que o Estado brasileiro se decompõe no fracionamento de poderes que leva ao desprestígio diplomático de um dos maiores países do mundo.
Pedir para entrar no clube e ser barrado vai custar muito mais caro ao Brasil do que ficar de fora porque não faz questão de entrar, vale para o Country Club e para a OECD.
A maior prova da fragmentação de poderes é o pedido de ingresso na OECD ter partido, como todas as indicações apontam, do núcleo econômico porque acha que com isso o Brasil pagaria menores taxas de juros, uma fantasia. Quando o tema e todas suas implicações dizem respeito ao Estado e dentro deste ao Itamaraty, organismo secular que trata das relações internacionais do País, que não podem estar subordinadas a caixeiros de bancos, pessoas que não tem a experiência, o treinamento, a visão estratégica para temas diplomáticos, a entrada na OECD é um assunto de relações internacionais, não é assunto só de economia.
Lembrando que governos anteriores, por boas razões, não pediram ingresso na OECD, porque isso significa o Brasil assumir mais compromissos sem ter ganho algum, mais obrigações, mais custos, sem que se perceba que beneficio terá com tal filiação.
O processo do pedido de ingresso é claro: neoliberais DENTRO do Brasil querem amarar mais o Brasil ao “clube” neoliberal para dificultar os movimentos de qualquer novo governo progressista que assuma aqui, da mesma forma que os neoliberais brasileiros usavam o FMI para lhes dar força no Brasil – os aliados de fora apoiando os neoliberais de dentro, o velho truque de usar o estrangeiro como escudo para atingir objetivos anti-nacionais.
Comentário
Bom artigo, só faço a ressalva sobre os paraísos fiscais, que devem sim ser eliminados.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Nuvens lenticulares na Escócia (Fotografia - Telegraph.co.uk)

Com o Papa Francisco termina a Igreja só ocidental e começa a Igreja universal – por Leonardo Boff (site homônimo)

Passaram-se já cinco anos do papado de Francisco, bispo de Roma e Papa da Igreja universal. Muitos fizeram balanços minuciosos e brilhantes sobre essa nova primavera que irrompeu na Igreja. De minha parte enfatizo apenas alguns pontos que interessam à nossa realidade.
O primeiro deles é a revolução feita na figura do papado, vivida em pessoa por ele mesmo. Não é mais o Papa imperial com todos os símbolos, herdados dos imperadores romanos. Ele se apresenta como simples pessoa como quem vem do povo. Sua primeira palavra de saudação foi dizer aos fiéis “buona sera”: boa noite. Em seguida, anunciou-se como bispo de Roma, chamado a dirigir no amor a Igreja que está no mundo inteiro. Antes de ele mesmo dar a benção oficial, pediu que o povo o abençoasse. E foi morar não num palácio – o que teria feito chorar Francisco de Assis – mas numa casa de hóspedes. E come junto com eles.
O segundo ponto importante é anunciar o evangelho como alegria, como superabundância de sentido de viver e menos como doutrinas dos catecismos. Não se trata de levar Cristo ao mundo secularizado. Mas descobrir sua presença nele pela sede de espiritualidade que se nota em todas as partes.
O terceiro ponto é colocar no centro de sua atividade três polos: o encontro com o Cristo vivo, o amor apaixonado pelos pobres e o cuidado da Mãe Terra. O centro é Cristo e não o Papa. O encontro vivo com Cristo tem o primado sobre a doutrina.
Em vez da lei anuncia incansavelmente a misericórdia e a revolução da ternura, como o disse, falando aos bispos brasileiros em sua viagem ao nosso país.
O amor aos pobres foi expresso na sua primeira intervenção oficial: “como gostaria que a Igreja fosse a Igreja dos pobres”. Foi ao encontro dos refugiados que chegavam à ilha de Lampeduza no sul da Itália. Ali disse palavras duras contra certo tipo de civilização moderna que perdeu o sentido da solidariedade e não sabe mais chorar sobre o sofrimento de seus semelhantes.
Suscitou o alarme ecológico com sua encíclica Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum (2015), dirigida a toda a humanidade. Mostra clara consciência dos riscos que o sistema-vida e o sistema-Terra correm. Por isso expande o discurso ecológico para além do ambientalismo. Diz enfaticamente que devemos fazer uma revolução ecológica global (n.5). A ecologia é integral e não apenas verde, pois involucra a sociedade, a política, a cultura, a educação, a vida cotidiana e a espiritualidade. Une o grito dos pobres com o grito da Terra (n. 49). Convida-nos a sentir como nossa a dor da natureza, pois todos somos interligados e envolvidos numa teia de relações. Convoca-nos a “alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo… uma mística que nos anima, nos impele, motiva e encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária” (n. 216).
O quarto ponto significativo foi apresentar a Igreja não um castelo fechado e cercado de inimigos, mas um hospital de campanha que a todos acolhe sem reparar sua extração de classe, de cor ou de religião. É uma Igreja em permanente saída para os outros, especialmente para as periferias existenciais que grassam no mundo inteiro. Ela deve servir de alento, infundir esperança e mostrar um Cristo que veio para nos ensinar a viver como irmãos e irmãs, no amor, na igualdade, na justiça, abertos ao Pai que tem características de Mãe de misericórdia e de bondade.
Por fim, mostra clara consciência de que o evangelho se opõe às potências desse mundo que acumulam absurdamente, deixando na miséria grande parte da humanidade. Vivemos sob um sistema que coloca o dinheiro no centro e que é assassino dos pobres e um depredador dos bens e serviço da natureza. Contra esses tem as mais duras palavras.
Dialoga com todas as tradições religiosas e espirituais. No lava-pés da Quinta-Feira Santa estava uma menina muçulmana. Quer as Igrejas, com suas diferenças, unidas no serviço ao mundo especialmente aos mais desamparados. É o verdadeiro ecumenismo de missão.
Com esse Papa que “vem do fim do mundo” se encerra uma Igreja só ocidental e começa uma Igreja universal, adequada à fase planetária da humanidade, chamada a encarnar-se nas várias culturas e construir aí um novo rosto a partir da riqueza inesgotável do evangelho.
Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escreveu Francisco de Assis-Francisco de Roma, a irrupção da primavera, Mar de Ideias, Rio 2013.