O
‘Nexo’ conversou com três especialistas em segurança pública sobre como lidar
com quem acredita que defensores dos direitos humanos são responsáveis pela
violência
Caixão de Marielle Franco chega à câmara
municipal do rio, carregado pelo deputado estadual Marcelo Freixo, entre
outros
A vereadora Marielle
Franco foi assassinada na noite de quarta-feira
(14), no centro do Rio. Ao menos nove tiros foram disparados contra o carro em
que a parlamentar do PSOL estava enquanto voltava de um debate com jovens
negras.
Os
tiros partiram de um outro veículo, e atingiram principalmente o banco de trás,
onde Marielle estava. O motorista, Anderson Pedro Gomes, que estava na linha
dos tiros, também morreu. Fernanda Chaves, a assessora de imprensa de Marielle,
foi ferida, mas sobreviveu.
A
Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio trabalha com a hipótese de
execução. Em nota, o PSOL afirmou que a suspeita de crime político não deve ser
descartada. Marielle Franco era formada em sociologia, marcava posição contra o
racismo e a violência policial, e era uma defensora dos direitos humanos,
inclusive os de suspeitos de crimes e de pessoas condenadas pela Justiça.
Em
meio aos lamentos, inúmeros internautas fizeram comentários no sentido de que
seu posicionamento político se relacionava, direta ou indiretamente, com sua
morte brutal.
No
portal UOL, um internauta anônimo comentou na reportagem sobre a morte de
Marielle: “Uai? Não entendi? [sic] Essa senhora aí não é aquela que defendia os
bandidos? Logicamente um cristão não foi quem deu esses tiros”. Um usuário que
se identificou como Augusto Sposito afirmou “foi vítima da própria porcaria que
ela defendia…”.
Um
outro anônimo com pseudônimo disse “mas não era só dialogar? A culpa [é] sempre
da vítima e o bandido é coitado, vítima da sociedade. Não é esse o discurso?”
Em resposta a comentários de leitores seus que criticaram a defesa dos direitos
humanos, o jornal carioca Extra publicou uma nota de esclarecimento no final da
tarde. O jornal escreveu:
“A
definição é simples. Direitos humanos são os direitos básicos de todos os seres
humanos. Ou seja, o direito à vida, à liberdade, à liberdade de opinião, ao
trabalho, à educação, à crença religiosa e muitos outros”
Esse
tipo de fala que responsabiliza a defesa dos direitos humanos pela violência é
constante em casos de homicídios com grande repercussão. Defensores desses
direitos têm o desafio de esclarecer que eles não asseguram a falta de controle
sobre a violência, pelo contrário.
O
Nexo questionou três defensores dos direitos humanos sobre se há uma
forma de dialogar com aqueles que defendem a truculência. A pergunta foi esta:
é possível convencer quem diz que vereadora morreu porque ‘defendia bandido’ de
que esse pensamento é equivocado?
‘Esse
discurso prejudica o Estado de direito’
Pedro
Abramovay
É
diretor na América Latina da Open Society Foundation e ex-secretário nacional
de Justiça (2010-2011)
Não
tem outra opção, é preciso convencer essas pessoas. É importante marcar que as
políticas de enfrentamento, da polícia que mata, são políticas que têm
aumentado a violência, sempre. Quando se constrói uma polícia que para de
matar, que tem uma presença mais ativa no cotidiano das pessoas, articulada com
um Estado mais presente, a violência cai.
Isso
não é um achismo, é o que provam todas as pesquisas já realizadas no mundo,
muitas delas na América Latina. Mas estamos propondo a militarização, o
enfrentamento, algo que nunca funcionou.
Esse
pensamento é muito cruel. As pessoas não entendem que a Marielle sempre
defendeu o Estado de direito, a democracia. Ela não defendia bandido, mas que
as pessoas tenham um julgamento justo dentro do Estado de direito. Ela sempre
defendeu as pessoas da favela, que estão morrendo.
Não
existe nenhuma contradição, mas as pessoas não conseguem ler isso. Quando se
defende a vida de pessoas na favela, igualam à vida de bandidos. Temos que
mostrar que esse discurso prejudica o Estado de direito e a democracia.
Marielle
sempre defendeu as vítimas, as pessoas que morrem assassinadas, e sempre pediu
que os crimes fossem apurados. O desejo dela sem dúvida é que os assassinos
sejam encontrados, julgados dentro do Estado de direito.
Ela
era contra a impunidade que existe no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro,
onde a vida vale tão pouco e nada acontece, menos de 10% dos casos são
solucionados. Isso não pode ser normal para ninguém que defende a democracia.
O
que aconteceu ontem é muito grave, e é preciso união e força para combater a
violência nesse momento, não uma polarização entre esquerda e direita.
‘É
por uma política calcada na inteligência’
Rafael
Alcadipani
É
professor de métodos qualitativos de pesquisa e teoria das organizações na
Fundação Getulio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
É
lamentável que isso aconteça. O Brasil precisa parar com essa coisa de que se
um lado morre é bom e se outro morre é ruim e vice-versa, um culpando o outro
nessa guerrinha boba de direita e esquerda.
Um
país dividido não vai conseguir combater o crime organizado. Precisamos nos
unir. Se o Bolsonaro sofresse um atentado, seria necessário se unir contra a
violência, apesar de ele representar o extremo do incentivo à violência no
Brasil.
O
ser humano pode sempre aprender, mas as mídias sociais são muito novas. Talvez
com o tempo essas pessoas aprendam que não é para comemorar a violência em
nenhum caso.
É
preciso deixar claro que a defesa dos direitos humanos é por uma política de
segurança pública calcada na inteligência e não na truculência.
É
pensar em ações racionais, não colocar um monte de jagunço armado na rua para
matar, mas usar informação, e encarar a segurança pública como um problema de
várias áreas, não apenas de polícia, como acontece no mundo inteiro.
Seria
interessante se empregadores, escolas e as pessoas à volta de quem faz esse
tipo de fala começassem a tomar medidas. É ético, dentro de uma lógica
corporativa, de uma instituição de Estado, que um funcionário faça esse tipo de
comentário?
Cada
vez mais as pessoas checam contas sociais em processos seletivos. Com um
comentário desses a pessoa poderia perder o emprego. Se isso começar a
acontecer, talvez haja uma mudança.
‘Esses
são direitos para todo mundo’
Bruno
Langeani
É
gerente de sistemas, Justiça e segurança pública do Instituto Sou da Paz
Parte
do nosso trabalho é acreditar que sim. Não conseguimos fazer uma mobilização
pela segurança pública se não compartilharmos a mesma visão de mundo, de
futuro.
Esse
pensamento tem a ver com o medo, com a segurança pública no centro da pauta,
todo dia. Esse medo acaba fazendo as pessoas toparem abrir mãos de direitos
quando alguém promete alguma mudança milagrosa.
Temos
que reconhecer o medo, dizer que ele é válido e compartilhado. As pessoas estão
carentes desse acolhimento, mas temos que ter um debate sério do que funciona e
do que não funciona.
Quem
defende a truculência, a carta branca para as polícias serem violentas, tem que
cobrar o resultado dessas políticas. Se elas estivessem funcionando, o Rio
seria o lugar mais tranquilo do mundo. A política é essa há muito tempo e a
violência só tem piorado nos últimos anos.
Temos
que olhar para os resultados da política que vem sendo feita e destacar possibilidades
de políticas que podem ser adotadas com base em evidências [de que elas devem
funcionar].
Para
mim, o principal gancho de argumentação é que, historicamente, os casos como o
de Marielle são de pessoas que denunciaram a existência de um poder paralelo no
Rio de Janeiro, de milícias com participação de agentes do Estado, infiltração
no poder político e influência nas eleições.
É
importante que as pessoas façam esse julgamento, deem um passo atrás e olhem
a trajetória dela e vários parceiros de
trabalho militantes de base, de partido.
O
fato de fazerem denúncias e amplificarem a voz de lugares sem visibilidade,
como favelas do Rio, fizeram com que se tornassem vítimas.
Essa
crítica aos direitos humanos não entende que esses são direitos para todo mundo.
Falamos sobre desde a vítima de bala perdida, de homicídio até da vitimização
dos próprios policiais.
Ver
essa crítica rasa aos direitos humanos nesse momento traz indignação. Mas ao
mesmo tempo não podemos perder o desejo de ampliar o diálogo e mostrar uma
visão de mundo comum.
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