sexta-feira, 16 de março de 2018

Como falar com quem acha que Marielle merecia morrer por ‘defender bandido’ – por André Cabette Fábio (Nexo Jornal)

O ‘Nexo’ conversou com três especialistas em segurança pública sobre como lidar com quem acredita que defensores dos direitos humanos são responsáveis pela violência

Caixão de Marielle Franco chega à câmara municipal do rio, carregado pelo deputado estadual Marcelo Freixo, entre outros  

Os tiros partiram de um outro veículo, e atingiram principalmente o banco de trás, onde Marielle estava. O motorista, Anderson Pedro Gomes, que estava na linha dos tiros, também morreu. Fernanda Chaves, a assessora de imprensa de Marielle, foi ferida, mas sobreviveu.
A Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio trabalha com a hipótese de execução. Em nota, o PSOL afirmou que a suspeita de crime político não deve ser descartada. Marielle Franco era formada em sociologia, marcava posição contra o racismo e a violência policial, e era uma defensora dos direitos humanos, inclusive os de suspeitos de crimes e de pessoas condenadas pela Justiça.
Em meio aos lamentos, inúmeros internautas fizeram comentários no sentido de que seu posicionamento político se relacionava, direta ou indiretamente, com sua morte brutal.
No portal UOL, um internauta anônimo comentou na reportagem sobre a morte de Marielle: “Uai? Não entendi? [sic] Essa senhora aí não é aquela que defendia os bandidos? Logicamente um cristão não foi quem deu esses tiros”. Um usuário que se identificou como Augusto Sposito afirmou “foi vítima da própria porcaria que ela defendia…”.
Um outro anônimo com pseudônimo disse “mas não era só dialogar? A culpa [é] sempre da vítima e o bandido é coitado, vítima da sociedade. Não é esse o discurso?” Em resposta a comentários de leitores seus que criticaram a defesa dos direitos humanos, o jornal carioca Extra publicou uma nota de esclarecimento no final da tarde. O jornal escreveu:

“A definição é simples. Direitos humanos são os direitos básicos de todos os seres humanos. Ou seja, o direito à vida, à liberdade, à liberdade de opinião, ao trabalho, à educação, à crença religiosa e muitos outros”

Esse tipo de fala que responsabiliza a defesa dos direitos humanos pela violência é constante em casos de homicídios com grande repercussão. Defensores desses direitos têm o desafio de esclarecer que eles não asseguram a falta de controle sobre a violência, pelo contrário.
O Nexo questionou três defensores dos direitos humanos sobre se há uma forma de dialogar com aqueles que defendem a truculência. A pergunta foi esta: é possível convencer quem diz que vereadora morreu porque ‘defendia bandido’ de que esse pensamento é equivocado?

‘Esse discurso prejudica o Estado de direito’
Pedro Abramovay
É diretor na América Latina da Open Society Foundation e ex-secretário nacional de Justiça (2010-2011)
Não tem outra opção, é preciso convencer essas pessoas. É importante marcar que as políticas de enfrentamento, da polícia que mata, são políticas que têm aumentado a violência, sempre. Quando se constrói uma polícia que para de matar, que tem uma presença mais ativa no cotidiano das pessoas, articulada com um Estado mais presente, a violência cai.
Isso não é um achismo, é o que provam todas as pesquisas já realizadas no mundo, muitas delas na América Latina. Mas estamos propondo a militarização, o enfrentamento, algo que nunca funcionou.
Esse pensamento é muito cruel. As pessoas não entendem que a Marielle sempre defendeu o Estado de direito, a democracia. Ela não defendia bandido, mas que as pessoas tenham um julgamento justo dentro do Estado de direito. Ela sempre defendeu as pessoas da favela, que estão morrendo.
Não existe nenhuma contradição, mas as pessoas não conseguem ler isso. Quando se defende a vida de pessoas na favela, igualam à vida de bandidos. Temos que mostrar que esse discurso prejudica o Estado de direito e a democracia.
Marielle sempre defendeu as vítimas, as pessoas que morrem assassinadas, e sempre pediu que os crimes fossem apurados. O desejo dela sem dúvida é que os assassinos sejam encontrados, julgados dentro do Estado de direito.
Ela era contra a impunidade que existe no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, onde a vida vale tão pouco e nada acontece, menos de 10% dos casos são solucionados. Isso não pode ser normal para ninguém que defende a democracia.
O que aconteceu ontem é muito grave, e é preciso união e força para combater a violência nesse momento, não uma polarização entre esquerda e direita.

‘É por uma política calcada na inteligência’
Rafael Alcadipani
É professor de métodos qualitativos de pesquisa e teoria das organizações na Fundação Getulio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
É lamentável que isso aconteça. O Brasil precisa parar com essa coisa de que se um lado morre é bom e se outro morre é ruim e vice-versa, um culpando o outro nessa guerrinha boba de direita e esquerda.
Um país dividido não vai conseguir combater o crime organizado. Precisamos nos unir. Se o Bolsonaro sofresse um atentado, seria necessário se unir contra a violência, apesar de ele representar o extremo do incentivo à violência no Brasil.
O ser humano pode sempre aprender, mas as mídias sociais são muito novas. Talvez com o tempo essas pessoas aprendam que não é para comemorar a violência em nenhum caso.
É preciso deixar claro que a defesa dos direitos humanos é por uma política de segurança pública calcada na inteligência e não na truculência.
É pensar em ações racionais, não colocar um monte de jagunço armado na rua para matar, mas usar informação, e encarar a segurança pública como um problema de várias áreas, não apenas de polícia, como acontece no mundo inteiro.
Seria interessante se empregadores, escolas e as pessoas à volta de quem faz esse tipo de fala começassem a tomar medidas. É ético, dentro de uma lógica corporativa, de uma instituição de Estado, que um funcionário faça esse tipo de comentário?
Cada vez mais as pessoas checam contas sociais em processos seletivos. Com um comentário desses a pessoa poderia perder o emprego. Se isso começar a acontecer, talvez haja uma mudança.

‘Esses são direitos para todo mundo’
Bruno Langeani
É gerente de sistemas, Justiça e segurança pública do Instituto Sou da Paz
Parte do nosso trabalho é acreditar que sim. Não conseguimos fazer uma mobilização pela segurança pública se não compartilharmos a mesma visão de mundo, de futuro.
Esse pensamento tem a ver com o medo, com a segurança pública no centro da pauta, todo dia. Esse medo acaba fazendo as pessoas toparem abrir mãos de direitos quando alguém promete alguma mudança milagrosa.
Temos que reconhecer o medo, dizer que ele é válido e compartilhado. As pessoas estão carentes desse acolhimento, mas temos que ter um debate sério do que funciona e do que não funciona.
Quem defende a truculência, a carta branca para as polícias serem violentas, tem que cobrar o resultado dessas políticas. Se elas estivessem funcionando, o Rio seria o lugar mais tranquilo do mundo. A política é essa há muito tempo e a violência só tem piorado nos últimos anos.
Temos que olhar para os resultados da política que vem sendo feita e destacar possibilidades de políticas que podem ser adotadas com base em evidências [de que elas devem funcionar].
Para mim, o principal gancho de argumentação é que, historicamente, os casos como o de Marielle são de pessoas que denunciaram a existência de um poder paralelo no Rio de Janeiro, de milícias com participação de agentes do Estado, infiltração no poder político e influência nas eleições.
É importante que as pessoas façam esse julgamento, deem um passo atrás e olhem a  trajetória dela e vários parceiros de trabalho militantes de base, de partido.
O fato de fazerem denúncias e amplificarem a voz de lugares sem visibilidade, como favelas do Rio, fizeram com que se tornassem vítimas.
Essa crítica aos direitos humanos não entende que esses são direitos para todo mundo. Falamos sobre desde a vítima de bala perdida, de homicídio até da vitimização dos próprios policiais.
Ver essa crítica rasa aos direitos humanos nesse momento traz indignação. Mas ao mesmo tempo não podemos perder o desejo de ampliar o diálogo e mostrar uma visão de mundo comum.

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