Prezado coronel Lee Abe, pelo
acaso dessas folhas que vagam pelo ciberespaço, acabei tomando contato com
sua carta contendo
as indagações que lhe assaltaram a alma advindas com o assassinato brutal da
vereadora Marielle Franco.
Coronel, estou muito longe de
ter as respostas para algo de tal grau de violência, duvido mesmo que alguém as
tenha. Mas como sei o quanto é penoso um homem viver em dúvidas, tomo a
inciativa de, com a tentativa de algumas respostas, buscar auxiliar a
reduzir-lhe a angústia. Creio que o senhor faria o mesmo por mim.
Pois bem, o senhor começa sua
carta aberta com a seguinte indagação: “por que o mundo inteiro
respeita a polícia?”.
Coronel, independente da
autoimagem que o senhor nutra de si próprio e da corporação a que pertence,
julgo que involuntariamente o senhor fez uso de uma hipérbole. Uma figura de
linguagem válida, mas que carrega dentro de si um exagero. O mundo está muito
longe de na sua inteireza respeitar a polícia. Não que ela não o seja, mas
acredito que em boa parte a polícia seja mais temida que respeitada, quando não
odiada. E odiada porque temida e respeitada onde não é temida. Quanto os
policiais têm de responsabilidade nisso, não sei. Mas, sem dúvida, a têm mais
do que os que respeitam, temem ou odeiam a polícia.
A seguir, ainda no mesmo
tema, o senhor questiona: ”por que o mundo inteiro precisa da
polícia?”.
Polícia para quem precisa de
polícia.
Coronel, a existência da
polícia é função direta do nosso processo civilizatório ainda deficiente e
incompleto. Quando finalmente civilizarmo-nos por inteiro, a polícia deixará de
ter razão de existir. Muitos já sonharam com essa sociedade e buscaram
construí-la. Cristo foi um deles. Nada é fácil. Mesmo o Cristo teve problemas
com a polícia de Roma e acabou sentenciado à morte.
A seguir, em determinado
momento da sua carta, o senhor indaga em relação à morte de Marielle
Franco: “por que tanta tentativa de transformar essa vereadora em
mártir?”.
Coronel, isso já é bem mais
fácil de responder: porque ela foi martirizada em razão da causa que defendia.
E quem dá a vida pela causa é mártir dessa causa. O senhor como militar
reverencia Tiradentes, pois não? Um mártir da nação executado em praça pública
pela polícia portuguesa do Brasil colônia. Hoje, somos um país independente e o
saudamos como herói da pátria.
Quanto às outras indagações:
Ela
representa o povo? Sim, vereadora democraticamente eleita;
legítima representante do povo. O senhor preza a democracia e respeita seus
resultados, por certo.
Que povo? O povo
da cidade do Rio de Janeiro que a elegeu.
Qual
segmento do povo? Parte da intelectualidade carioca, mas
principalmente o povo das favelas, os negros e homossexuais – por quem Marielle
fez sua opção preferencial.
Do cidadão
de bem? Sem dúvida. Pobres, trabalhadores honestos e
pagadores dos seus impostos. Aos pobres não é dada opção de ser diferente
disso. O senhor, se acompanha o noticiário, já deve saber do banditismo que
assola nossas classes mais abastadas. Não busque corruptos entre os eleitores
de Marielle; os corruptos não votam em pessoas como ela.
Então, o senhor se sai com: “a
Polícia Militar, responsável pela morte de negros e pobres na ordem de 30% no
país (segundo a vereadora) é morta por quem?”.
Não sei quem mata a polícia,
coronel. Isso é função da própria polícia investigar e nos dizer.
E vai além: “nós,
PM, saímos pelas ruas escolhendo 30% de negros e pobres para matar (hahaha).
Quando atingimos a nossa quota diária, vamos completar nossa meta matando
brancos, asiáticos e tudo o mais que aparecer na nossa frente. É assim que
funciona?”.
Coronel, se o senhor quis ser
irônico, acabou parecendo ser grosseiro. Sinto em dizê-lo.
Mas, existem estatísticas; e
segundo o Atlas da Violência do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
– homens, jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de
mortes violentas no país. Os negros possuem chances 23,5% maiores de serem
assassinados em relação a brasileiros de outras raças; já descontado o efeito
da idade, escolaridade, do sexo, estado civil e bairro de residência.
Quantas dessas mortes
violentas se dão em confrontos com a polícia e em que circunstâncias? Não sei.
Mas o senhor está do lado dos que também apertam gatilhos – eu não. Deve saber
como a coisa funciona.
E o senhor prossegue: “e quando
morrermos em combate, tentando salvar uma vida inocente que clama pela nossa
presença, vamos aguardar pacientemente os políticos, a imprensa, autoridades
que estão fazendo todo esse alarde pela morte dessa “pessoa” intitulada
vereadora, promotora dos direitos humanos, mãe, homossexual (como ela mesma se
apresenta) fazerem também o mesmo alarde exigindo respostas rápidas e firmes
das autoridades?”.
Que parágrafo longo, coronel.
Quantos assuntos tratados no mesmo texto. Técnicas de redação não são seu
forte, vê-se. Mas vamos lá.
Coronel, vou considerar que o
senhor é ignorante quanto aos significados que possam ter o uso de aspas na
linguagem escrita. Porque considerar que o senhor os conheça e mesmo assim
referia-se à uma pessoa como sendo “pessoa” poderia leva-lo a responder por
injúria – não muito distante de injuria racial, por razões óbvias.
Coronel, Marielle não era
“intitulada” vereadora; era vereadora diplomada pela Justiça Eleitoral.
Era mãe. Foi mãe muito jovem
– aos 19 anos – pobre, solteira, favelada e soube como buscar no trabalho a
forma de sustentar e educar a si mesma – socióloga com mestrado em
administração pública – e sustentar e educar a filha que este ano busca a
universidade. Mãe tanto quanto a sua mãe que, creio eu, não fez menos pelo
senhor.
Quanto à homossexualidade –
coronel, eu e senhor somos heterossexuais e jamais fizemos qualquer coisa para
sê-lo. Não vamos, na idade que temos, considerar isso qualquer virtude. Somos o
que somos. E ela também era o que era.
Tratemos, pois, dos policiais
que morrem em ação. Ainda
que, pelo menos aqui em São
Paulo , a polícia muito mais mate em ação do que morra. Todos
lamentamos tais mortes. Uma vez me ensinaram que o certo é
quando, no final do dia, o bandido vai para a cadeia e a vítima e o policial
voltam para suas casas. Quando qualquer um dos três morre, algo de muito errado
aconteceu. Quem me ensinou isso era policial. Imagino que o senhor concorde com
o colega.
Já quanto à sua declaração: “o
mais incrível é declararem em coro que os matadores “sabiam atirar”, insinuando
serem policiais”, ou o senhor é muito ruim em analisar indícios –
o que deporia contra a sua competência como policial – ou parece estar querendo
que acreditemos que o senhor é bem mais ingênuo do que realmente seja.
Por fim, o senhor fecha sua
carta com: “nós, policiais, temos uma missão muito maior do que essa
mesquinharia. Somos muito mais do que “isso”. Somos a polícia!”.
Desculpe-me
a franqueza, coronel, mas, na minha opinião, mesquinharia é só o que transpira
desta sua carta e, fosse eu o seu comandante, o senhor seria punido pelo
desserviço que com ela presta à corporação.
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