“Gente boa”, “gente honesta”, “homens e mulheres de
bem” – assim se define uma categoria de ser humano que tem a especial
capacidade de se tornar insensível a uma grande parcela das misérias que se abatem
sobre a sociedade, sobretudo as que nem de longe podem atingi-lo.
É essa “gente boa” que diz que racismo é vitimismo
exagerado de um bando de negros que insiste em negar o fim da escravidão; que
mulheres só sabem reclamar, ao invés de compensar suas “fragilidades” com mais
trabalho para “se igualarem” aos homens; que “desceu dos tamancos” quando as
leis trabalhistas conferiram maiores direitos a empregados domésticos, afetando
seus seculares privilégios; que comemoraram todas as restrições e diminuição de
direitos, aquelas que foram injustas, que a reforma trabalhista de 2017
implantou no Direito do Trabalho pátrio; que defende, mesmo sob vara, que
corrupção é um problema partidário, e não sistêmico, e que as agruras do Brasil
se devem a uma década de espoliação, e não a quinhentos anos de “tenebrosas
transações”; que fala em “orgulho hétero”, em “perseguição ao homem branco”, em
“ideologia de gênero”, em “violação do sagrado instituto familiar” e em
meritocracia; que ignora que a história dos poderes constituídos é uma história
de “abuso de poder”, que tem respondido por injustiças profundas e pelo caos em
que surpreendemos setores como educação, saúde e segurança; que defende, dentre
outros, que seres humanos “justos e honestos” – a gente boa! – tem todo
direito, sim, de exterminar os seres humanos “injustos e desonestos” – a gente
má! –, como se fosse possível reduzir a vida a um maniqueísmo infantil e
bisonho.
Essa “gente boa”, espalhada por todos os cantos, tem
festejado a morte da vereadora Marielle de muitos modos, sustentando argumentos
sofríveis, do tipo “ontem morreu uma médica branca num assalto e o país não
parou”, “Freixo, vai defender os bandidos que mataram sua amiga”, “isso é o que
dá se meter com gente ruim”, “quem procura, acha”, “defendia bandido e foi
morta por eles”.
Desrespeitosa, cega por opção, incapaz de um mínimo de
empatia, essa “gente boa”, grande parte da qual se diz cristã (sic), que diz
defender “a vida, a moral e os bons costumes”, não percebe o recado eloquente e
acintoso que a execução de uma ativista social, negra, de origem pobre, uma das
mais votadas vereadoras da terceira economia do País, que está sob intervenção
militar e sob os olhares atentos de todo o mundo – essa “gente boa”, repito,
não percebe o recado que uma execução dessas representa e que o Capitão/Coronel
Nascimento, aquele do “Tropa de Elite”, ainda hoje reverbera: “O sistema é
foda!”, e ai daquele que ouse ultrapassar os curtos limites por ele fixados…
Marielle foi morta não pelos
“bandidos que defendia”, mas pelos “bandidos que combatia”. Ela foi vítima de
um sistema corrompido, consumido pela corrupção, que tem bandidos vestidos de
heróis (não todos, por óbvio, mas uma parcela infelizmente significativa e
virulenta) e que, sem qualquer escrúpulo, é capaz de tudo para que “tudo
continue como está”. Ela foi morta por aqueles que, colocados do “lado bom” da
história, se dizem defensores dos “humanos direitos” em detrimento dos
“direitos dos manos”. Ela foi morta por aqueles que praticam todo tipo de
bandidagem sob o pretexto de proteger “a gente boa” dos bandidos – quando eles
também são bandidos altamente perigosos!
Essa “gente boa”, na verdade, é o símbolo de um “ser
humano sofrível”, como diz meu amigo, Prof. Urbano Félix. Uma gente cheia de
ódio, que se ressente da extinção de todos os privilégios que já perdeu, que
não deseja ver a ascensão de quem sempre foi ralé, que acredita num
determinismo social, que acha que “direitos humanos” é um cara barbudo ou uma
mulher cabeluda que quer proteger os maus em detrimento dos bons.
“Deus me defenda […] da maldade de gente boa”, já
cantou Chico Cesár. Que me defenda, sim, dessa maldade que se traveste de
honestidade e indignação e que, no fundo, apenas revela o quanto são sofríveis
os valores e os ideais desses seres que insistem em serem chamados de humanos –
os tais “humanos direitos”…
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