segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Ayco - por Chris Nichols (arte digital - Coolvibe)

Para não se esquecer

Em 1941 o governo do primeiro-ministro grego Tsolakoglou permitiu a entrada das tropas nazistas em seu país sem nenhuma reação.

Mais de setenta anos se passaram e uma nova ocupação, desta vez econômica, foi feita pela Alemanha de Ângela Merkel sobre a Grécia - também sem reação por parte dos governantes gregos, que se assistiram ser recolonizados em nome de interesses muitos - que não os do povo grego.

Segundo consta, depois de conferir se a carta que escrevera estava em seu bolso, o aposentado grego Dimitris Xristulas teria gritado, antes do ato final: “Não quero deixar nenhuma dívida para os meus filhos!”.

Convém relembrar para que não nos esqueçamos, depois deste grito, no dia 04 de abril de 2012, Dimitris Xristulas, de 77 anos, em plena praça Syntagma, defronte ao parlamento grego, sacou uma arma e deu um tiro na própria cabeça.
A carta dizia o seguinte:

O governo de Tsolaglogov acabou com a possibilidade de eu poder sobreviver com uma pensão digna, que paguei sozinho durante 35 anos sem nenhuma ajuda do Estado. E, como minha idade avançada não me permite reagir de forma dinâmica (embora se um conterrâneo pegasse uma Kalashnikov, eu estaria bem atrás dele), não vejo outra solução que não a de pôr fim à minha vida de maneira digna, para que eu não me veja obrigado a revirar o lixo para assegurar o meu sustento. Eu acredito que os jovens sem futuro um dia vão pegar em armas e pendurar os traidores deste país na Praça Syntagma, assim como os italianos fizeram com Mussolini em 1945.

Mais é desnecessário dizer.

Perdido no Espaço - por Jeremy Geddes (óleo sobre tela - Jeremy Geddes Art)

O “caixa um” é pior que o “caixa dois”? - por Otaviano Helene (Caros Amigos)

    Pela Constituição do Império, de 1824, só poderia se eleger deputado ou senador quem tivesse uma renda anual de pelo menos 400 mil réis. E para votar em candidatos a esses cargos era exigida uma renda mínima de 200 mil réis. Nas eleições locais, só podiam votar aqueles que tivessem pelo menos 100 mil réis de renda anual: quem tivesse renda menor do que isso não votava nem em eleições paroquiais. Em resumo: quanto mais rica fosse uma pessoa, maior seria seu poder político.

     Esse fato é contado e ensinado quase como anedótico e usado para ilustrar como nosso passado era pouco democrático. Afinal, uma legislação como aquela garantia que só os ricos decidiam sobre o futuro de todos no país.

     Entretanto, uma observação mais aguçada mostra que a situação até piorou desde então. Vamos ver.

     Desde o início da década de 1990, a legislação que regula o financiamento eleitoral no Brasil (Leis 8713/1993 e 9504/1997) permite que pessoas físicas financiem seus candidatos com até 10% de seu rendimento anual bruto. Como o sucesso em uma campanha hoje depende de divulgação, divulgação depende de dinheiro e o dinheiro vem do financiamento quase exclusivamente privado, quanto mais rica for uma pessoa, mais poder eleitoral terá.

     Ou seja, ainda que possa parecer absurdo e totalmente antidemocrático, o poder político eleitoral de uma pessoa é tão maior quanto maior for sua renda. Enquanto na Constituição de 1824 um rico valia apenas um voto, hoje ele vale tantos votos quanto a propaganda feita com seus recursos for capaz de carrear. Parece que conseguimos piorar uma situação que já era esdrúxula há dois séculos.

     Há outros absurdos na nossa legislação de financiamento eleitoral: pessoas jurídicas, ou seja, empresas, podem financiar campanhas políticas com valores de até 2% do faturamento anual. Ora, empresas não são entes políticos e não podem ter preferências eleitorais. Dar a elas um poder eleitoral, como faz a lei, ao permitir que financiem eleições, é tão absurdo quanto permitir que elas pudessem votar ou ser eleitas.

     Outro absurdo diz respeito aos valores dos financiamentos possíveis dentro daquela “limitação” de 2% do faturamento. O faturamento total das empresas em um país capitalista é da ordem do próprio produto interno bruto, ou seja, mede-se, no caso brasileiro, em trilhões de reais! Mesmo excluindo as empresas que, por lei, não podem contribuir, o “rigor” da lei limita o financiamento eleitoral das empresas em “apenas” algumas dezenas de bilhões de reais, valor muitas vezes superior aos gastos totais declarados nas eleições de 2010. Como as possibilidades de sucesso em uma eleição dependem dos investimentos feitos nas campanhas, as empresas têm o poder de eleger quantos candidatos desejarem ou precisarem, mesmo que invistam muito menos do que os 2% do faturamento que a lei permite. E precisarem não se refere apenas a benefícios na forma de contratos governamentais, mas, também, a coisas muito mais amplas e importantes: aí estão, como alguns poucos exemplos, as leis que permitiram e permitem as privatizações; códigos, como o florestal; legislações que favorecem a privatização da educação e da saúde; preços, subsídios e políticas dos transportes coletivos; tanto as leis como as ausências de leis referentes aos meios de comunicação; leis orgânicas, como as que regulam a ocupação e a propriedade dos solos urbano e rural; e, evidentemente, a própria legislação que dá poderes políticos a empresas. Esses são apenas poucos exemplos, pois toda a estrutura legal e econômica do país é controlada pelos próprios donos do país.

     Há mais perversidade ainda. Note que o financiamento não é feito pela alta direção ou pelos donos e controladores da empresa, com seus dinheiros pessoais. O financiamento é feito pelas empresas e, assim, recai em suas planilhas de custo em pé de igualdade com todas as outras despesas, como insumos, fornecedores, salários, impostos, aluguéis etc., sendo, obviamente, transferidas para os custos e os preços dos seus produtos e serviços. Assim, quem paga a conta desse financiamento eleitoral somos nós, os trabalhadores, os consumidores, os fregueses, os clientes, os pacientes, os passageiros, os inquilinos, os alunos, os correntistas etc. E, claro, pagam também, os trabalhadores das próprias empresas que financiam as eleições, uma vez que se forem feitas maiores despesas com um insumo qualquer, como o financiamento eleitoral, sobram menos recursos para os salários.

Quem financia?

     Como quem decide quantos e quais candidatos serão financiados e com que volume de recursos são os donos do país, o atual mecanismo de financiamento é uma espécie de impostos que pagamos para que eles convençam os eleitores a mantê-los na condição de donos do país.

     Evidentemente, os eleitos dessa forma não irão responder às demandas dos eleitores, mas, sim, às demandas daqueles que têm o poder de decidir quais candidatos e partidos serão financiados.

     Pior ainda: pagamos muito caro, pois o financiamento feito por pessoas jurídicas contribuiu para aumentar os custos das campanhas eleitorais. E a propaganda viabilizada pelos recursos financeiros contrapõe-se ferozmente à atuação das militâncias reais e sinceras, estas, sim, instrumentos legítimos para a conquista de votos. Com o domínio da propaganda, as posições ideológicas dos candidatos passaram a ter menos peso na escolha dos eleitores. Pouquíssimos candidatos se elegem, atualmente, com base em posições ideológicas ou militância.

     Entre os argumentos usados no início da década de 1990 para justificar a legalização do financiamento feito por pessoas jurídicas estavam o fim do caixa dois, que, hipoteticamente, não seria mais necessário, e o fato que os eleitores poderiam saber quais candidatos são financiados por quem. Ora, esse último argumento é bobagem, pois uma mesma empresa financia um leque de candidatos, de tal forma que tenham, entre os financiados, pessoas de diferentes perfis políticos, mas privilegiando, obviamente, aqueles que seus controladores realmente querem que sejam eleitos. Além disso, quantos eleitores têm a paciência e a possibilidade de fazer um complexo mapa de quais candidatos receberam recursos de quais empresas, de que setores e em quais quantidades?

     O outro argumento também não é correto, pois o financiamento feito pelas empresas, com o caixa um, não eliminou o caixa dois, tanto por haver despesas que não podem ser financiadas legalmente, como pelo fato de algumas empresas e candidatos não quererem explicitar seus vínculos, preferindo o segredo do caixa dois.

     Assim, a legislação viabilizou uma situação esdrúxula, absurda e totalmente antidemocrática: pagamos caro para eleger os candidatos escolhidos pela elite econômica do país, continuamos a amargar o caixa dois, empresas passam a ser entes políticos e intensifica-se o poder econômico dos mais ricos.

     Com tais ingredientes, é impossível construir uma democracia. Uma legislação republicana deveria, em lugar de permitir o financiamento eleitoral feito por pessoas jurídicas, criminalizá-lo, qualquer que fosse o número do caixa, restringindo o financiamento eleitoral e de partidos políticos apenas a pessoas físicas e ao poder público. E no caso de pessoas físicas, deveria haver um limite máximo para a contribuição individual para os partidos compatível com a renda per capita do país e independente da renda individual do doador. Da forma atual, criou-se um círculo vicioso terrível, no qual a concentração da renda e patrimônio leva a uma concentração do poder, que não abrirá mão da concentração da renda e do patrimônio.

     Precisamos defender o financiamento público. E para isso é necessário denunciar a situação atual, pois perece que a enorme maioria da população ainda não percebeu que, como está, nós financiamos os candidatos que as elites escolhem, e a altos custos, contribuindo para que os donos do país se perpetuam como donos do poder.

     Há uma frase atribuída a Mark Twain que diz que “nós temos o melhor governo que o dinheiro pode comprar”. A nossa legislação eleitoral, aprovada no auge do neoliberalismo, transformou o chiste de Mark Twain em lei.

Os jogadores de cartas - Caravaggio (pintura)

O 'mensalão' é a 'Miriam Cordeiro' do Serra - por Saul Leblon (Carta Maior)

A história não permite incluir no âmbito da mera coincidência a decisão do relator Joaquim Barbosa de calibrar o julgamento do chamado do mensalão, de modo a levar a discussão sobre o ex-ministro José Dirceu à boca da urna, nas eleições de 7 e 28 de outubro próximo.

Ao fazê-lo, o relator abastece a cartucheira conservadora com mais uma daquelas balas de prata de que se vale frequentemente a direita brasileira quando parte para o tudo ou nada, sem deixar tempo ao adversário ou ao eleitor para reagir. O conservadorismo sempre teve um aliado canino nesses botes. Agora pelo jeito tem dois.

O parceiro tradicional é a cobertura esperta da mídia 'isenta', que nunca sonegou a essa tocaia o amparo 'factual' que a legitima, e mais que isso, inocenta o capanga e criminaliza o alvo.

O rito sumário na boca da urna é uma das especialidades eleitorais desse jornalismo. À s vezes só há tempo para um jogo de fotos. Nisso também eles são bons .

Quem não se lembra de um clássico do gênero, a edição da Folha de 30 de setembro de 2006, véspera do 1º turno da eleição presidencial daquele ano?

Um jato da Gol havia se chocado com outro avião no ar. Morreriam 155 pessoas. A tragédia, de longe, era o destaque do dia. Mas a Folha, a mesma que agora coloca na boca de Haddad a frase que ele nunca disse ('é degradante me associar a Dirceu..'), montou também uma 'pegadinha' nesse dia sombrio.

Virou um 'case' do jornalismo meliante.

No alto da página, em destaque, uma manchete em seis colunas encimava a foto de uma montanha de dinheiro, supostamente para a compra de um dossiê contra Serra, que havia abandonado a prefeitura para disputar o governo do Estado.

Logo abaixo da pilha de dinheiro, a imagem de Lula, encapuzado com um impermeável de chuva que cobria o seu rosto. Dois homens ladeavam o presidente e candidato à reeleição contra o tucano Geraldo Alckmin. Seguravam o seu ombro.

Coisa de profissional. O conjunto compunha a cena típica do bandido capturado por policiais: Lula reduzido à imagem de um marginal, emoldurado por montanhas de dinheiro suspeito e manchetes criminalizando o PT.

Foi assim a bala de prata daquele sábado, véspera da votação do 1º turno das eleições presidenciais de 2006. Funcionou. Lula, favorito, não conseguiu resolveu a parada e precisou do 2º turno para derrotar Alckmin.

Como será a primeira página da Folha e assemelhados no dia 6 de outubro, 1º turno do pleito municipal deste ano; ou no dia 28, na segunda rodada, tendo o julgamento de José Dirceu como pauta convergente?

O julgamento em curso no STF cercou-se de singularidades jurídicas suficientes para não merecer o bônus da ingenuidade nesse encavalamento político.

A maior delas foi abortar dos autos a identidade univitelina que liga as motivações e práticas que resultaram na ação contra o PT, e aquelas pioneiramente testadas e praticadas pelo PSDB , em Minas Gerais.

Outras 'balas de prata' disparadas pela mídia no passado endossam a suspeição em torno dessas 'convergências' eleitorais sempre desfrutáveis pelo conservadorismo nativo.

A mais famosa delas eclodiu no último dia da propaganda eleitoral de 1989.

O então candidato à presidência, Fernando Collor de Mello, apresentou em seu programa de despedida o depoimento de Miriam Cordeiro, mãe de Lurian, filha de Lula. A história é conhecida: Miriam acusou o petista de forçá-la a abortar; não havia mais como obter direito de resposta e a mídia 'isenta' cuidou de martelar a denúncia odiosa.

Uma bala de prata porém não seria suficiente para afastar o risco - elevado então - de Lula vencer a primeira eleição direta para presidente depois da ditadura militar. Era necessário um tiroteio.

Ele veio com o sequestro do empresário Abílio Diniz por ex-militantes políticos chilenos. Abílio foi libertado do cativeiro no dia 17 de dezembro. Presos, os sequestradores foram fotografados e filmados usando camisetas do PT. Isso aconteceu exatamente no dia da votação do segundo turno da disputa presidencial, vencida por Collor.

Na eleição presidencial de 2010, a Folha, novamente ela, tentou até a véspera do pleito obter junto ao Supremo Tribunal Militar a ficha e os processos da 'guerrilheira' Dilma Rousseff, candidata do PT contra o tucano José Serra.

A esperança da coalizão demotucana era obter através de documentos sigilosos a bala de prata capaz de reverter uma derrota anunciada, quem sabe com a revelação de algum 'crime de sangue' que tivesse contado com a participação da candidata petista. Para a Folha, ademais, tratava-se de comprovar aquilo que o jornal falseara em 2009 por conta própria, quando publicou uma ficha inexistente do Deops, que sugeria a participação de Dilma em sequestros e expropriações.

O caso virou uma das maiores barrigadas da história do jornalismo brasileiro e Dilma impôs uma derrota esmagadora ao candidato do peito dos Frias: 56% a 44%.

Neste pleito de 2012, o paiol de balas de prata conta com novos fornecedores. Mas a mídia é a mesma e o governo Dilma concentra nela quantidades industriais de anúncios, ao mesmo tempo em que hesita em apoiar de forma transparente e legítima o novo canal de comunicação representado por sites e blogs alternativos. Além de fortalecer a democracia e a liberdade de imprensa, eles tem se mostrado contrapesos importantes às balas de prata que cortam e cortarão os ares do país, com intensidade crescente, até 2014.

sábado, 22 de setembro de 2012

Fotografia - por Favi Images

"Mensalão será um julgamento de exceção", diz Wanderley Guilherme Por Cristine Prestes (Valor Econômico)

O mensalão não tem nada de emblemático - ao contrário disso, será um julgamento de exceção. Essas são as palavras do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, para quem os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) têm construído um discurso paralelo ao longo das sessões que destoa da tradição da Corte. "Nunca mais haverá um julgamento em que se fale sobre flexibilização do uso de provas, sobre transferência do ônus da prova aos réus, não importa o que aconteça", afirma.

As inovações citadas por Santos sustentam sua crença na exceção. Presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, autarquia do Ministério da Cultura, o estudioso da democracia e de regimes autoritários é considerado um decano da ciência política no Brasil. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ontem, por telefone, ao Valor:

Valor: Na sua avaliação, o julgamento do mensalão no Supremo tem sido técnico ou político?
Wanderley Guilherme dos Santos: Estou seguro de que até agora, do que tenho acompanhado, os votos finais dos ministros tiveram um fundamento técnico. Eles se referem sempre a pontos do Código Penal, que explicitam quais sejam, e dão as razões pelas quais as evidências apresentadas justificam aquela votação. Comentários paralelos, entretanto, raramente têm tido a ver com esses votos. Alguns ministros têm feito comentários que não têm nenhuma pertinência com o que vem sendo julgado. Temo que isso seja uma preparação para julgamentos e votos que não sejam tão bem fundamentados legalmente, mas sim baseados nas premissas que os juízos paralelos vêm cristalizando no cérebro das pessoas que assistem. Temo que uma condenação dos principais líderes do PT, e do PT como partido, acabe tendo por fundamento não evidências apropriadas, mas o discurso paralelo que vem sendo construído.

Valor: O sr. está falando do uso da teoria do domínio do fato, usada para atribuir responsabilidade penal a um réu que pertence a um grupo criminoso, mas que, por ocupar função hierarquicamente superior, não é o mesmo sujeito que pratica o ato criminoso?
Wanderley Guilherme: Entre outras coisas. Se retomarmos a primeira sessão, quando os ministros estavam decidindo se deveriam fatiar ou não o julgamento, Gilmar Mendes fez uma declaração que muito me assustou. Ele disse que 'o julgamento [do processo do mensalão no Supremo] desmistifica a lenda urbana de que prerrogativa de foro é sinônimo de impunidade' e que isso tinha que acabar. Fiquei assustado. O que é isso? Ele já estava dizendo que, para efeito de demonstrar à opinião pública que ela tem um preconceito sem fundamento em relação ao Supremo, o tribunal vai condenar. Ao longo do processo o ministro Luiz Fux, ao julgar alguns dos réus do processo por gestão temerária, disse que era uma gestão horrorosa. Não existe gestão horrorosa, isso é um comentário que se faz em campo de futebol, não é um comentário de um ministro da Suprema Corte.

Valor: O sr. acha que os ministros estão dizendo, nas entrelinhas do julgamento, que o tribunal condenará alguns réus sem fundamentar essas condenações em provas concretas?
Wanderley Guilherme: Exato, são comentários que às vezes não têm a ver com o que está sendo julgado, mas na hora do voto os ministros votam de acordo com a legislação. É uma espécie de vale-tudo. Esse é meu temor. O que os ministros expuseram até agora é a intimidade do caixa 2 de campanhas eleitorais e o que esse caixa 2 provoca. A questão fundamental é: por que existe o caixa 2? Isso eles se recusam a discutir, como se o que eles estão julgando não fosse algo comum - que pode variar em magnitude, mas que está acontecendo agora, não tenho a menor dúvida. Como se o que eles estão julgando fosse alguma coisa inédita e peculiar, algum projeto maligno.

Valor: O Supremo está destoando da forma como costuma julgar outros processos?

Wanderley Guilherme: Sem dúvida. Esse Supremo tem sido socialmente muito avançado, bastante modernizador, mas ele é politicamente pré-democrático. Primeiro porque os ministros têm uma ojeriza em relação à política profissional, como se eles não fizessem política - fazem o tempo todo. Mas em relação à política profissional eles têm um certo desprezo aristocrático. E quando na política brasileira irrompeu a política popular de mobilização, eles não aceitaram, dão a isso um significado de decadência, degradação.

Valor: Ainda que o caixa 2 de campanhas eleitorais tenha sido o que motivou os demais crimes apontados pela acusação, em nenhum momento o Supremo coloca em julgamento o sistema eleitoral brasileiro?
Wanderley Guilherme: Nossa legislação eleitoral é nebulosa, confusa, inconsistente. Isso está nos jornais todos os dias, cada eleição é um momento de elevado índice de litígios na sociedade. Cada zona eleitoral decide de forma diferente a propósito dos mesmos fatos. É uma legislação que provoca conflitos, que traz uma imprevisibilidade jurídica enorme para o sistema brasileiro. Mas os ministros não querem aceitar isso, não querem aceitar que a Justiça eleitoral é a causadora dos problemas políticos no país.

Valor: Mas na atual fase do julgamento, que envolve o núcleo político, os ministros do Supremo estão citando as coligações entre o PT e outros partidos de diferentes posições ideológicas...
Wanderley Guilherme: Eles acham que não existem coligações entre partidos de orientações diferentes, acham isso uma aberração brasileira, mas não conhecem a democracia. Por isso que eu digo que é pré-democrático, eles têm uma ideia de como a democracia funciona no mundo inteiramente que é inteiramente sem fundamento, acham que a democracia é puramente ideológica. Os sistemas de representação proporcional são governados por coalizões das mais variadas. Não tem nada de criminoso nisso. Mas os ministros consideram que, para haver coligações dessa natureza, só pode haver uma explicação criminosa no Código Penal. Isso é um preconceito.

Valor: Se o Supremo condenar os réus do núcleo político sem fundamentar suas decisões em provas de que houve crimes, mas o fazendo apenas porque partidos de diferentes vertentes de pensamento se coligaram, isso não comprometeria várias instituições brasileiras, a começar pelo próprio sistema político?
Wanderley Guilherme: Comprometeria se esse julgamento fosse emblemático, como sugerem. Na minha opinião, dependendo do final do julgamento, acho que nunca mais vai acontecer. Até os juristas estão espantados com a quantidade de inovações que esse julgamento está propiciando, em vários outros pontos além da teoria do domínio do fato. Nunca vi um julgamento que inovasse em tantas coisas ao mesmo tempo. Duvido que um julgamento como esse aconteça de novo em relação a qualquer outro episódio semelhante.

Valor: O que se tem dito é que a Justiça brasileira vai, enfim, levar políticos corruptos para a cadeia. O sr. está dizendo que isso vai acontecer apenas desta vez?
Wanderley Guilherme: Estão considerando esse julgamento como um julgamento emblemático, mas é justamente o oposto, é um julgamento de exceção. Isso jamais vai acontecer de novo, nunca mais haverá um julgamento em que se fale sobre flexibilização do uso de provas, sobre transferência do ônus da prova aos réus, não importa o que aconteça. Todo mundo pode ficar tranquilo porque não vai acontecer de novo, é um julgamento de exceção.

Valor: Um julgamento de exceção para julgar um partido?
Wanderley Guilherme: Exatamente. O Supremo tem sido socialmente avançado e moderno e é competente, sem dúvida nenhuma, mas é politicamente pré-democrático. Está reagindo a uma circunstância que todos conhecem, que não é única, mas porque se trata de um partido de raízes populares. Está reagindo à democracia em ação - claro que naqueles aspectos em que a democracia é vulnerável, como a corrupção. Mas é um aspecto que não decorre do fato de o partido ser popular, mas da legislação eleitoral, feita pelo Legislativo e pelo Judiciário. Eles são a causa eficiente da face negativa da competição democrática.

Valor: No julgamento da hipótese de compra de votos no Congresso, não discute o próprio sistema político que permite a troca de cargos por apoio político ou a existência de alianças regionais, por exemplo?
Wanderley Guilherme: A votação da reforma tributária não foi unânime, mas vários votos do PSDB e do DEM foram iguais aos dos governistas. Na reforma previdenciária, o PSDB votou unanimemente junto com o governo, na época o PFL também votou quase unanimemente. Isso aconteceu na terça-feira, quando todos os partidos votaram com o governo no Código Florestal - o PT foi o partido com mais votos contrários. É um erro de análise inaceitável pegar a votação de um partido e dizer que o voto foi comprado. Isso é um absurdo. E não é só isso. A legislação é inconsistente no que diz respeito a coligações. Ela favorece a coligação partidária de qualquer número de partidos - todos, se quiserem, podem formar uma coligação eleitoral só. Porém, a lei proíbe que partidos que têm maior capacidade de mobilização financeira transfiram, à luz do dia e por contabilidade clara, recursos para partidos com menor capacidade de mobilização. Então você induz a criação de coligações, mas proíbe o funcionamento delas. Isso favorece o caixa 2, entre outras coisas. Todos os países com eleições proporcionais permitem coligações, do contrário não há governo possível. A coligação entre partidos que não têm a mesma orientação ideológica não é crime.

Valor: Desde o início do julgamento os ministros do Supremo apontam a inexistência de provas técnicas contra a antiga cúpula do PT, afirmando que as provas existentes são basicamente testemunhais.
Wanderley Guilherme: O ministro Joaquim Barbosa, em uma de suas inovações, declarou, fora dos autos, que ia desconsiderar vários depoimentos dados em relação ao PT e a alguns dos acusados porque haviam sido emitidos por amigos, colegas de parlamento, mas considerou outros depoimentos. A lei não diz isso, não há fundamento disso em lei. Um ministro diz que vai desconsiderar depoimentos porque são de pessoas conhecidas como amigos, dos réus, mas pinça outros, e ninguém na Corte considera isso uma aberração? Parece-me que o julgamento terminará por ser um julgamento de exceção.

Valor: Isso significa que a jurisprudência que vem sendo criada no caso do mensalão será revertida após o julgamento?
Wanderley Guilherme: Espero que não, porque realmente se isso acontecer vai ser uma página inglória da nossa história.

Stonehenge - por Alestrel (Fotografia)

Lewandowski expõe hipocrisia dos "garantistas" do STF - por Jotavê (Blog do Nassif)

Ontem, o ministro Lewandowski fez basicamente duas coisas. Em primeiro lugar, obrigou o Supremo a reconhecer explicitamente algo que estava apenas implícito no discurso dos demais ministros: houve uma mudança na jurisprudência. Ao citar um voto do ministro Celso de Mello num processo anterior, Lewandowski deixou evidente que os critérios para o reconhecimento da corrupção passiva se alargaram. Como o ministro ressaltou, esse alargamento não tem nada a ver com a "exigência de ato de ofício", como se antes fosse exigida a comprovação da prática de tal ato. O que se exigia antes (e não se exige mais) é a comprovação de um vínculo efetivo (e não meramente abstrato, virtual) entre o recebimento presente e o ato futuro. Quem recebe a vantagem, pela interpretação antiga, deveria de algum modo sinalizar a disposição de agir de tal e tal modo no exercício de seu cargo de modo a retribuir a vantagem indevida que está recebendo. Pela nova interpretação, a comprovação desse vínculo tornou-se dispensável. Se Fulano recebe
u dinheiro indevido e existe a perspectiva (por abstrata que seja) de um favorecimento em função do cargo que ocupa, então Fulano corrompeu-se, e ponto final.

Foi nesse momento que Lewandowski realizou um primeiro lance genial, que exigirá no mínimo um grande esforço intelectual de seus pares no sentido de planejar a reação correta. Ele ACATOU a nova jurisprudência firmada por seus pares, e CONDENOU o réu Pedro Correia com base nela. A denúncia evidenciou que Pedro Correia (i) recebeu o dinheiro e (ii) tinha, em função do cargo que exercia, a possibilidade de retribuir futuramente essa vantagem indevida, pouco importando aqui se retribuiu ou não, ou mesmo se tinha ou não a intenção de retribuir. Como Lewandowski bem disse, estava condenando Pedro Correia porque ele recebeu o dinheiro de Marcos Valério e, além disso, "era parlamentar", e isso basta. O efeito dessa condenação, feita sobre essas bases, podia ser sentida no rosto da maioria dos ministros. Joaquim Barbosa era o único que estava perfeitamente à vontade. Ele sempre foi a favor de interpretações mais duras da legislação penal. Em 2009, por exemplo, foi ele o maior defensor de que réus condenados em segunda instância aguardassem recursos ao Supremo na cadeia. Foi voto vencido num Tribunal "garantista", que põe os direitos individuais sempre acima dos direitos da coletividade. À frente dessa "tropa garantista" estavam exatamente Gilmar Mendes e Celso de Mello. Citando o voto anterior do ministro Celso de Mello, que defendera até pouco tempo critérios "garantistas" para a caracterização da corrupção passiva, e declarando que ele próprio, Ricardo Lewandowski, modificava seu entendimento em função da nova jurisprudência firmada por aquele colegiado, citando o voto de cada um dos colegas, e dando destaque especial à nova posição do ministro Celso de Mello, ele obrigou o plenário a assinar o recibo da mudança que se estava operando ali, naquele julgamento, e fez isso de forma inatacável - modificando "humildemente" sua própria posição a respeito, e dando por assentada a nova "jurisprudência" firmada pelo STF. É tudo que Celso de Mello e Gilmar Mendes não queriam - serem obrigados doravante a usar o mesmo peso e a mesm
a medida do mensalão em casos assemelhados.

Veio, então, o segundo lance genial da tarde de ontem: a absolvição de Pedro Henry por falta de provas. O que Lewandowski argumentou é que não houve individualização da responsabilidade de Pedro Henry nos crimes que lhe eram imputados. Ele estava sendo condenado, segundo o ministro, simplesmente por ser presidente do PP, e porque o Procurador "presumiu" que, sendo presidente de um dos partidos beneficiados pelo esquema, Pedro Henry deveria estar no topo da "organização criminosa". Lewandowski citou diversos trechos da denúncia, mostrando que jamais se demonstrava ali que Pedro Henry, individualmente, havia praticado tal ou qual ilícito. Ele foi incisivo ao afirmar que a denuncia não individualiza os delitos atribuídos a Pedro Henry em NENHUM momento. O desafio que ele lançava a seus colegas era claríssimo, e todos o entenderam perfeitamente bem. "Abandonamos a antiga interpretação garantista do crime de corrupção passiva. Vamos também abandonar, agora, esse princípio básico do direito penal, que é o da individualização da culpa?". Mais ainda. Seu voto dizia, nas entrelinhas, algo que ficará ressoando na segunda parte dessa "fatia", quando forem julgados José Dirceu e José Genoíno: a partir de agora, o STF entende que basta ocupar um certo lugar na hierarquia de um partido para automaticamente ser responsabilizado por ações praticadas no âmbito daquele partido? É esse o desafio que os "garantistas" do Supremo terão que enfrentar. São essas as questões que Lewandowski, com seu voto, os obrigou a responder. Estavam lívidos. As câmeras da TV Justiça, sempre tão circunspectas, foram obrigadas a percorrer os semblantes boquiabertos dos ministros. Joaquim Barbosa, apesar das hemorróidas, estava confortabilíssimo em sua poltrona.

Foi, até agora, o lance mais profundo e mais fino dessa belíssima partida de xadrez disputada entre Joaquim Barbosa, de um lado, e Ricardo Lewandowski, do outro. Não porque, repito, o voto de Lewandowski tenha colocado em xeque as posições de Joaquim Barbosa. Esse talentoso e implacável promotor está onde sempre esteve, com toda a legitimidade - na defesa de uma interpretação mais dura da legislação penal, que não facilite tanto a vida dos infratores. Os demais juízes é que ficam, agora, em posição incômoda. Afinal, até antes de ontem, estavam expedindo habeas corpus para garantir os direitos de um banqueiro que subornava policiais, e protestando contra o uso de algemas em acusados que não estivessem trajando bermuda e havaianas no momento da prisão, nem tivessem entrado no camburão com o olho já carimbado por um hematoma. A hipocrisia do "garantismo" do Supremo está com as vísceras expostas sobre a mesa.

Grande Lewandowski!

A caracterização do crime de corrupção passiva na AP 470 – por Daniel Quireza (Blog do Nassif)

Pelas palavras agora a pouco proferidas pelo ministro Lewandowiski, ficou evidente se tratar de um julgamento de exceção.

O ministro analisava o crime de corrupção passiva e citou palavras do ministro Celso de Mello em outra ação penal. Segundo ele, Celso de Mello assegurou que, para se caracterizar o crime de corrupação passiva era necessário que se evidenciasse a vantagem indevida pelo funcionário público e também que houve a ligação com o "ato de ofício" praticado pelo mesmo, ou seja, é o óbvio, é preciso haver conexão entre a suposta vantagem indevida recebida e o suposto ato de benefício em troca da mesma. Mas, segundo o ministro Lewandowiski, agora, nesta ação penal 470, a jurisprudência da corte mudou. Agora, para se caracterizar o crime de corrupção passiva, basta tão somente a oferta de vantagem indevida ao agente público que poderia, porventura, possivelmente cometer ato de oficio qualquer, futuro ou mesmo não cometer.

Ou seja, a mudança de jurisprudência com a enorme ampliação de amplitude da caracterização de crime ficou evidente justamente apenas para esta ação penal, o que caracterizaria um julgamento de exceção.

Aliás, com essa nova jurisprudência, qualquer, repito qualquer variação patrimonial de funcionário público não totalmente coberta por seus ganhos legais e comprovados, automaticamente se caracterizará em crime de corrupção passiva pelo mesmo.

Fotografia - por Retronaut

Manter a jurisprudência sem os holofotes – por Maria Cristina Fernandes (Valor Econômico)

O impeachment de Collor nasceu da entrevista do irmão. O mensalão, daquela entrevista de Roberto Jefferson. A acusação de que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é o chefe da quadrilha do mensalão não tem autoria.

O publicitário Marcos Valério, identificado como autor da acusação, não a assumiu. E seu advogado nega que tenha falado.

O áudio da entrevista pode existir, mas o fato de a revista de maior circulação do país ter publicado capa com uma acusação dessa gravidade sem autoria mostra que o julgamento ora em curso no Supremo tem consequências que extrapolam a dosimetria das penas.

Punição resistirá às pressões contra o mercado engessado?

Se os juízes, pelas indicações do relator no capítulo político do julgamento condenarem por indícios, por que um jornalista precisaria de fonte para publicar uma acusação?

Não é de hoje que se abusa do off, recurso legítimo do jornalismo que protege fontes com informações valiosas em nome do interesse público.

Mas na acusação em curso, paira no ar a dúvida sobre a que público serve a acusação anônima na reta final de uma campanha eleitoral definidora dos exércitos de 2014.

Essa relação nebulosa entre noticiário e interesse público não passa despercebida de quem está na arquibancada.

Repousa esquecida em cruzamentos de uma pesquisa Datafolha (10/08) a avaliação sobre a cobertura do mensalão: 46% dizem que a imprensa tem sido parcial - e 39% a julgam imparcial.

Não dá para atribuir o dado às massas ignaras do lulismo. Quanto maior a escolaridade, maior a percepção. Dos entrevistados que passaram pela universidade, 53% julgam a imprensa parcial. Entre aqueles que têm apenas o ensino fundamental, 41% compartilham a impressão.

Não parece haver dúvidas de que o julgamento tem inovado na interpretação da lei. Mas para aquilatar seu real impacto sobre o combate à corrupção resta saber se a jurisprudência será seguida à risca quando os holofotes se apagarem.

Para reverter a má-fama angariada, a imprensa terá que se dedicar com igual afinco ao julgamento da montanha de casos de corrupção que se acumulam nos tribunais.

Foi graças aos jornalistas que se conheceram os grandes escândalos de corrupção no governo Fernando Henrique Cardoso - Sivam, grampos do BNDES na privatização da Telebras, caso Marka/FonteCindam e, o maior deles, a aprovação da emenda da reeleição.

Ministros foram defenestrados e contratos foram cancelados, mas o entendimento era outro sobre a persecução penal dos envolvidos. Do desdobramento desses casos não se colhe o mais leve indício de que a tese do domínio do fato pudesse um dia vir a evoluir para a interpretação que ganha terreno no Supremo e facilita a condenação de quem está no topo de hierarquias de poder.

A imprensa também será desafiada a manter o arrojo com que se empenha na atual cobertura quando a aplicação dessa jurisprudência se voltar para o setor privado, muito menos aberto à investigação jornalística que o público.

O segundo capítulo do julgamento, que condenou os banqueiros, impôs um padrão de austeridade inédito, por exemplo, na gestão do risco bancário. Para punir um dirigente de empresa não será preciso provar delito maior que a omissão no cumprimento do dever.

Uma coisa é enquadrar o banco Rural, que já havia se tornado um pária no mercado desde o envolvimento em intermediações financeiras com o governo a partir da era Collor.

Outra coisa é aplicar a nova jurisprudência a grandes empresas e bancos. A sanha punitiva - e jornalística - resistirá ao argumento, para além da coerção verbal, de que o mercado, engessado, é um freio ao desenvolvimento econômico?

O que dizer, também, da ameaça de reversão das reformas aprovadas com os votos que o ministro relator assevera terem sido comprados? Bárbara Pombo conta hoje no Valor (pág. E1) que advogados já se movimentam nesse sentido.

Se a oposição conseguir voltar ao poder, o presidente que eleger pode se ver na contingência de defender a constitucionalidade das reformas tributária e previdenciária que seu partido acusou, com o possível beneplácito do Judiciário, de terem sido compradas.

Na hipótese ainda improvável de a mudança na jurisprudência trazer ameaça real ao estabelecido, a reforma do Código Penal sempre pode ser uma saída para fechar a porteira aberta por este julgamento.

*

O anteprojeto de reforma do código, gestado no gabinete do presidente do Senado, José Sarney, precede o julgamento do mensalão e não se remete aos seus resultados. Mas nada impede que, uma vez iniciada sua tramitação, o texto possa ser abrigo das pressões que devolveriam o país ao seu curso natural de leniência com a corrupção dos donos do poder. E sem exceções.

Fotografia - por Favi Images

Manter viva a causa do PT: para além do “mensalão”- por Leonardo Boff (Carta Maior)

Sabidamente, temos elites econômicas e intelectuais das mais atrasadas do mundo. Seu tempo passou. Continuam conspirando, especialmente, através de uma mídia e de seus analistas, amargurados por sucessivas derrotas como se nota nestes dias, a propósito de uma entrevista montada de Veja contra Lula. Estes grupos se propõem apear o PT do poder e liquidar com seus líderes.


Há um provérbio popular alemão que reza: “você bate no saco mas pensa no animal que carrega o saco”. Ele se aplica ao PT com referência ao processo do “mensalão”. Você bate nos acusados mas tem a intenção de bater no PT. A relevância espalhafatosa que o grosso da mídia está dando à questão, mostra que o grande interesse não se concentra na condenação dos acusados, mas através de sua condenação, atingir de morte o PT. De saída quero dizer que nunca fui filiado ao PT. Interesso-me pela causa que ele representa, pois a Igreja da Libertação colaborou na sua formulação e na sua realização nos meios populares. Reconheço com dor que quadros importantes da direção do partido se deixaram morder pela mosca azul do poder e cometeram irregularidades inaceitáveis. Muitos sentimo-nos traídos, pois depositávamos neles a esperança de que seria possível resistir às seduções inerentes ao poder. Tinham a chance de mostrar um exercício ético do poder na medida em que este poder reforçaria o poder do povo que assim se faria participativo e democrático.

Lamentavelmente houve a queda. Mas ela nunca é fatal. Quem cai, sempre pode se levantar. Com a queda não caiu a causa que o PT representa: daqueles que vem da grande tribulação histórica sempre mantidos no abandono e na marginalidade. Por políticas sociais consistentes, milhões foram integrados e se fizeram sujeitos ativos. Eles estão inaugurando um novo tempo que obrigará todas as forças sociais a se reformularem e também a mudarem seus hábitos políticos.

Por que muitos resistem e tentam ferir letalmente o PT? Há muitas razões. Ressalto apenas duas decisivas.

A primeira tem a ver com uma questão de classe social. Sabidamente temos elites econômicas e intelectuais das mais atrasadas do mundo, como soia repetir Darcy Ribeiro. Estão mais interessadas em defender privilégios do que garantir direitos para todos. Elas nunca se reconciliaram com o povo.

Como escreveu o historiador José Honório Rodrigues (Conciliação e Reforma no Brasil 1965,14) elas “negaram seus direitos, arrasaram sua vida e logo que o viram crescer, lhe negaram, pouco a pouco, a sua aprovação, conspiraram para colocá-lo de novo na periferia, no lugar que continuam achando que lhe pertence”. Ora, o PT e Lula vem desta periferia.

Chegaram democraticamente ao centro do poder. Essas elites tolerariam Lula no Planalto, apenas como serviçal, mas jamais como Presidente. Não conseguem digerir este dado inapagável. Lula Presidente representa uma virada de magnitude histórica. Essas elites perderam. E nada aprenderam.

Seu tempo passou. Continuam conspirando, especialmente, através de uma mídia e de seus analistas, amargurados por sucessivas derrotas como se nota nestes dias, a propósito de uma entrevista montada de Veja contra Lula. Estes grupos se propõem apear o PT do poder e liquidar com seus líderes.

A segunda razão está em seu arraigado conservadorismo. Não quererem mudar, nem se ajustar ao novo tempo. Internalizaram a dialética do senhor e do servo. Saudosistas, preferem se alinhar de forma agregada e subalterna, como servos, ao senhor que hegemoniza a atual fase planetária: os USA e seus aliados, hoje todos em crise de degeneração.
Difamaram a coragem de um Presidente que mostrou a autoestima e a autonomia do país, decisivo para o futuro ecológico e econômico do mundo, orgulhoso de seu ensaio civilizatório racialmente ecumênico e pacífico.

Querem um Brasil menor do que eles para terem vantagens.

Por fim, temos esperança. Segundo Ignace Sachs, o Brasil, na esteira das políticas republicanas inauguradas pelo PT e que devem ser ainda aprofundadas, pode ser a Terra da Boa Esperança, quer dizer, uma pequena antecipação do que poderá ser a Terra revitalizada, baixada da cruz e ressuscitada. Muitos jovens empresários, com outra cabeça, não se deixam mais iludir pela macroeconomia neoliberal globalizada. Procuram seguir o novo caminho aberto pelo PT e pelos aliados de causa. Querem produzir autonomamente para o mercado interno, atendendo aos milhões de brasileiros que buscam um consumo necessário, suficiente e responsável e assim poderem viver um desafogo com dignidade e decência.

Essa utopia mínima é factível. O PT se esforça por realizá-la. Essa causa não pode ser perdida em razão da férrea resistência de opositores superados porque é sagrada demais pelo tanto de suor e de sangue que custou.

Leonardo Boff é teólogo e escritor.

Lua azul - por Locobyte (arte digital - The momy playbook)

No STF, críticas e ironias dirigidas ao PT. Pode? – por Paulo Moreira Leite (Época)

Joaquim Barbosa tinha um sorriso de ironia nos lábios quando fez um comentário à parte no julgamento do mensalão, hoje.  Referindo-se às alianças do governo Lula para conseguir votos no Congresso, lembrou a observação de um parlamentar do Partido Popular, o PP, segundo o qual suas diferenças  entre a legenda e o PT eram  grande demais para haver uma aproximação. A ideia é que não poderia haver um acordo com bases políticas – o que parecia sob encomenda para explicar o suposto esquema de compra de votos.

Joaquim não resistiu ao argumento do deputado e sacou a conhecida tese de que  os partidos políticos “no Brasil” são iguais, não se registrando diferenças ideológicas relevantes eles. Outro ministro, Marco Aurélio Melo fez uma observação semelhante.

Lembrou,  também numa referência ao PT, que no passado muitos brasileiros chegaram a acreditar que havia um partido com diferenças ideológicas. Já que nunca fizeram observações semelhantes em julgamentos que envolviam tucanos, pefelistas e outros, restou a conclusão de que, ao menos para estes dois ministros, o PT pode ser considerado um partido até pior do que os outros. Pelo menos, decepcionou quem imaginava que era um partido diferente e depois do mensalão convenceu-se de que havia se enganado.

A doutrina de que os políticos “só pensam em roubar” é antiga e já alimentou diversas experiências contra a democracia mas as pesquisas indicam que não é assim que pensa a maioria dos brasileiros. Mesmo no auge das denuncias do mensalão, no segundo semestre de 2005, o PT seguia segundo o partido mais popular entre os eleitores. E não era popular como um ídolo de programa de auditório.

Era aquele que mais se preocupava com os mais pobres e injustiçados. De lá para cá, quando você pergunta ao eleitor, desde então, qual seu partido predileto, 25% dizem que é o PT. O segundo colocado fica em 5%. Isso não quer dizer que o PT é um partido melhor ou pior. Mas demonstra que tem uma identidade política própria e, pelos números,  única.

Muitos brasileiros não concordam com isso. Outros estão de pleno acordo. Outro tanto fica no meio. Democracia é assim. Garante a todo mundo e a cada um o direito de pensar diferente.

Não é isso o que importa, agora. Eu acho sintomático que o relator do mensalão tenha aproveitado uma conversa paralela  para deixar escapar, em tom irônico, uma observação tão negativa sobre o partido que está no centro do julgamento. E acho mais curioso que outro juiz, imediatamente, tenha se manifestado de acordo. Os dois muito a vontade, falando de microfones abertos.

Isso diz respeito a isenção que se espera de um tribunal? Não sei.

Justiça cega? Também não sei. O antecedente do mensalão do PSDB, com direito a desmembramento e um longo passeio pelos tribunais inferiores, não é um bom sinal.

Há tantos sábios por aí que garanto  aos mais eruditos o direito de falar primeiro. Mas confesso que nunca tive a oportunidade de ouvir ministro do STF fazer referências tão explícitas a uma das partes envolvidas. Muito menos a outros partidos.

Discordo de visões conspiratórias sobre o julgamento. Os juízes estão lá, no exercício de sua soberania.

Mas eu acho que essa manifestação do relator e de Marco Aurélio expressam um ponto de vista político sobre o governo Lula.

É a visão do governo como um universo sem ideologias, sem interesses políticos reais, sem base social a dar respostas, onde tudo é um grande arranjo, às costas do povo e dos verdadeiros interesses do país. E eu acho que essa visão ajuda a entender a linha política que está presidindo o julgamento até aqui.

Essa visão do “eles só querem roubar” é coerente com um esforço para criminalizar a política de alianças do governo Lula. Ignora as condições reais em que são feitas as campanhas eleitorais no país, que misturam dinheiro de caixa 2, dinheiro limpo e também dinheiro corrupto. Sem mudanças nessas regras, nada vai acontecer. E, sem querer ser chato, até agora não se demonstrou que o DNA financeiro do PT tenha uma formação diferente daquele de seus adversários.

Na melhor das hipóteses, a democracia brasileira será amputada ao sabor das decisões da Justiça, que ora pode andar de um jeito, ora de outro. O mensalão tucano sequer chegou aos tribunais e, além do mestre Jânio de Freitas e deste modesto aprendiz de jornalismo, ninguém mais diz que isso é um disparate. Sem falar, claro, de Wanderley  Guilherme dos Santos, que publicou uma aula sobre o tema no site O Cafezinho.

A linguagem da acusação tem-se mostrado preocupante. Seria irônico se não tivesse um aspecto trágico. No esforço para provar compra de votos, a acusação selecionou alguns projetos do início do governo Lula, como a reforma da Previdência, a reforma tributária. Em seu tempo, estes projetos  chegaram a ser elogiadas,  como demonstração de que o PT rompera com dogmas considerados pré-históricos. Custaram uma divisão e até mesmo um racha na bancada do PT. Mas receberam elogios gerais.

O próprio Fernando Henrique Cardoso, em artigo recente onde alinhou um pacote de críticas ao governo Lula, lembrou  essas duas reformas como aspectos positivos, lamentando apenas que não tivessem ido adiante.

Na visão da acusação, contudo, essas reformas foram o símbolo da compra de votos. São descritas como de interesse  “dos corruptores.” Quer dizer: não havia interesse nacional, sequer um esforço de aproximação com a oposição. Não era política, essa atividade que pressupõe acordos, aproximações, afastamentos e ruptura. Era o “esquema.”

Na mesma linha, quando o governo consegue o voto de um partido que fora adversário para votar numa proposta que é mais oposicionista do que petista, a acusação define isso como “ato de ofício,” expressão equivalente a “recibo” de corrupção. Quando Delúbio Soares dá um depoimento, ele “confessa.” Nessa lógica, não são petistas que são acusados de votar em seu partido, o que não faz sentido. É o PP que cobra para votar no que defendeu.

Ao explicar por que votara na reforma da Previdência, Roberto Jefferson lembrou, na Polícia Federal, que o caráter trabalhista de seu partido não impedia que fosse favorável a medidas como a reforma da previdência, que já apoiava quando estava na base do governo FHC.

Por trás de todos esses atos “criminosos” abriga-se aquilo que é visto como um plano maquiavélico, “perpetuar-se no poder”, que faz parte da cartilha de qualquer partido político que, por mais democrático que seja, nunca imagina que a oposição fará um governo melhor do que seu. (Salvo casos patológicos, de psicanalistas e crises existenciais, mas não vou falar disso agora).

Instrumento de determinada visão política, essa linguagem ajuda a montar um quadro sob medida para se chegar ao resultado que parece cada vez mais provável: a condenação, a penas pesadas, da maioria dos acusados, salvo alguns mequetrefes.

E aí vamos combinar: tudo vai estar perfeito se os condenados forem apanhados com provas verdadeiras e consistentes. Neste caso, as condenações serão justíssimas. Mas será diferente, no entanto, se uma visão política, que pressupõe a culpa, acabar prevalecendo. Não é isso o que está por trás da noção de “eles só querem roubar”? Do partido “sem ideologias?”