Há dois marcos na nova etapa do jogo político brasileiro: o fim político de José Serra e o novo protagonismo político do STF (Supremo Tribunal Federal).
Vamos analisar algumas variáveis que serão determinantes do novo tempo político.
A luta pela civilidade política ainda tem um longuíssimo caminho pela frente.
1. A radicalização exacerbada não desaparece com Serra.
A ultradireita que emergiu no país nos últimos anos não se organizou em torno de Serra. Ele foi apenas o oportunista que pretendeu cavalgar a onda – como tantas outras que cavalgou, antes, como a do desenvolvimentismo, da socialdemocracia, sem nunca empunhar de fato a bandeira. Hoje está claro, mesmo para quem conviveu a vida toda com ele, que jamais passou de um arrivista.
Como explico na abertura da série “O caso de Veja”, o ódio como arma política começou como um sentimento algo difuso, que ganhou eco na agressividade de alguns comentaristas de televisão – imitando o estilo da Fox norte-americana. O episódio do “mensalão” serviu como agente deflagrador da intolerância, assim como a perspectiva da velha mídia de derrubar mais um presidente e retornar aos tempos de glória do pós-impeachment.
Apesar de o gatilho ter sido o “mensalão”, é algo muito mais orgânico, cuja raiz (em termos globais) está na ascensão das novas massas, no fim do sonho neoliberal, no protagonismo da mídia na era Murdoch.
Serra percebeu a mudança de ventos e se adaptou ao novo figurino. O terreno era-lhe familiar porque a intolerância e os métodos obscuros já eram parte integrante de sua personalidade. Termina a carreira execrado pela esquerda, sob desconfiança da direita, deplorado por amigos que um dia acreditaram nele e… desprezado pela velha mídia por inservível
2. A ultradireita ficou sem um candidato.
E o que virá agora, para canalizar o ódio político?
Há paradoxos curiosos nessa história.
Nas últimas duas décadas, a legitimação do PSDB se dava em cima do suposto intelectualismo de FHC e Serra, e suas tropas de intelectuais, em contraposição ao PT, tratado como intelectualmente tosco pela mídia. De fato, os intelectuais do partido sempre tiveram enorme dificuldade em compatibilizar ideias progressistas mais contemporâneas com o cipoal de tendências que sempre marcou a história do PT.
Com Lula, o PT ocupou a centro-esquerda, enquanto o radicalismo inconsequente de Serra tirou do PSDB paulista toda uma geração de novos intelectuais que poderia revitalizá-lo. Sua prepotência e falta de discernimento fez o PSDB perder o grupo de Bresser-Pereira, os economistas da Unicamp, os irmãos Mendonça de Barros, os socialdemocratas da USP – as gerações mais velhas se mantêm fieis a FHC, mas passam a quilômetros de distância de Serra e intelectualmente já deram o que tinham que dar.
Nessas eleições, o candidato do PT à prefeitura é um legítimo representante da elite intelectual paulista – formado em três centros de irradiação de influência, as Faculdades de Direito, Filosofia e Economia. Serra é um repetidor de bordões de intolerância. E a liderança que restou ao PSDB paulista, Geraldo Alckmin, é intelectualmente tão tosco que chegou a chocar o conservadorismo mais elaborado do Estadão, no episódio em que defendeu a PM pela chacina da semana passada (“só morreu quem resistiu”). No plano federal, Aécio Neves é uma promessa que não se realizou nem deverá se realizar.
Não havendo nenhum fato político anormal, a oposição tenderá a se aglutinar em torno de Eduardo Campos, um socialdemocrata com vinculação histórica com o centro-esquerda e sem necessidade de encarar a figura ultrarradical para se firmar.
Mas os ventos do ódio estão longe de se dissipar. E a aposentadoria de Serra cria um vácuo que deixa uma interrogação: para onde vai ser canalizada esse ódio político visceral?
3. Um personagem velho, a mídia, e um novo protagonista, o STF.
Daqui para diante, a luta política não se dará no campo partidário, mas em duas frentes: na mídia e no Judiciário, especialmente após o novo papel do STF (Supremo Tribunal Federal) e da cúpula do Ministério Público Federal.
No pano de fundo, a reação contra os descaminhos do modelo político, mas também um sentimento difuso contra o PT e Lula. Dificilmente o Procurador Geral Roberto Gurgel investiria com o mesmo ímpeto contra malfeitos do PSDB. No entanto, dentro do MPF há um sentimento corporativista solidificado, identificado com o pensamento de Gurgel.
Na outra ponta, por razões variadas, tem-se o STF assumindo um protagonismo perigoso.
Judiciário e MPF são compostos por um público que pertence ao extrato mais conservador da sociedade – no sentido de se informarem apenas através das mídias convencionais, seguirem rituais formalísticos, se diferenciarem do chamado cidadão comum por um conjunto de convenções, vestimentas, linguajar.
Todos os sinais que emanam do STF indicam que essa resistência aos novos tempos (e aos velhos vícios da política) resultou um novo protagonismo que, em breve, irá provocar conflitos com o Legislativo e, talvez o Executivo.
Podem-se buscar explicações individuais para a atitude de cada Ministro.
Gilmar Mendes sempre foi um Ministro político. Marco Aurélio de Mello trombou com o PT quando presidiu o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e guardou mágoas. Ayres Britto submeteu-se totalmente à mídia após ter sido alvo de uma denúncia inepta envolvendo seu genro. Embora ninguém jamais colocasse em dúvida sua idoneidade pessoal, desde então ele se curvou a todas as pressões da velha mídia.
Joaquim Barbosa é um caso à parte, talvez o maior erro político de Lula. Embora ninguém coloque em dúvida sua capacidade, existem dezenas de procuradores federais tão bem preparados quanto ele. Foi escolhido por seu simbolismo, por sua cor. No período que antecedeu a escolha, chegou a irritar Lula com seu servilismo. Empossado Ministro, tornou-se um deus ex-machina.
Dias Toffoli foi um segundo engano de Lula, provavelmente para corrigir o primeiro. Sem bagagem jurídica, foi escolhido para ser o Gilmar de Lula. Mas a diferença de estatura é enorme.
Mas como explicar a nova leva de Ministros, indicados por Dilma, todos igualmente tomados pelo ira santa? É evidente que essa situação reflete um estado de espírito majoritário na cúpula do Judiciário e não apenas uma conjunção pontual de personalidades.
Restou a posição heroica e solitária de Ricardo Lewandowski tentando fazer valer princípios de direitos individuais e preocupando-se em não se deixar levar pelo fogo da politização.
Não se sabe como será daqui para frente. Mas inegavelmente a oposição saiu do campo político para o campo midiático-jurídico.
Do lado da mídia, a estratégia visa interditar Lula definitivamente da política. Após o mensalão, tentarão levantar o caso dos empréstimos consignados do BMG para acusar Lula do chamado ato de ofício.
É uma cartada agressiva e que poderá gerar confrontos imprevisíveis.
4. A estratégia do governo Dilma.
Para tornar mais complexo o cenário, tem-se esse extraordinário paradoxo: Dilma é umbilicalmente ligada a Lula, tem demonstrado lealdade em todas as circunstâncias, mas para efeito midiático, foi transformada em uma espécie de anti-Lula. Na substituição de Cesar Peluso, não cedeu ao erro de indicar o advogado geral da União, fazendo uma escolha técnica.
Aparentemente considera que o republicanismo e o anti-corporativismo serão suficientes para blindá-la de tentativas futuras de desestabilização.
A boa imagem junto à classe média midiática se deve à sua racionalidade na gestão pública, mas também, a um pacto tácito com a velha mídia de não fortalecer nenhum canal alternativo, mantendo intacto para ela o botim das verbas públicas. Com a indústria, um pacto desenvolvimentista de redução de juros e proteção tarifária. Com os grandes grupos nacionais, parcerias nos projetos de desenvolvimento. Com o funcionalismo público, atitudes que geram resistência neles, mas apoio da classe média midiática.
Mas ainda mantém uma fé quase ingênua na capacidade da velha mídia se desarmar e retomar seu papel de crítico racional dos atos de governo.
Por Jotavê - A mídia e a ultradireita no Brasil
A sede da ultradireita no Brasil não é um partido político, mas a grande mídia. Os partidos políticos (PSDB, DEM e, conforme soprem os ventos, o PMDB) são apenas instrumentos de um centro de poder exterior a eles. A principal ferramenta utilizada é a denúncia seletiva e as campanhas orquestradas de difamação. O combustível que move a ultradireita, sem o qual ela não conseguiria sobreviver, é a banditização da política. As denúncias seletivas só se tornam viáveis contra um pano de fundo de culpas efetivas, de crimes efetivamente cometidos em função da natureza intrinsecamente corrupta do sistema político. Você pode sustentar uma ou duas denúncias completamente falsas, mas a grande maioria tem que ser verdadeira, ou pelo menos consistente. Caso contrário, a denúncia não consegue ganhar efetividade no plano do Judiciário. O caso do mensalão é típico. Você consegue contrabandear os casos duvidosos (José Dirceu e José Genoíno) graças à existência de um grande número de casos inconstroversos.
O político é, hoje, um elemento descartável no esquema de poder da ultradireita capitaneada diretamente pela mídia. Vejam o caso de Demóstenes Torres. Quando as provas se tornaram incontornáveis, foi jogado aos leões sem dó nem piedade. O mesmo aconteceu com José Roberto Arruda. É muito mais fácil cassar um político do que levar um jornalista da grande imprensa aos tribunais - o caso de Policarpo Jr. é emblemático. É muito mais fácil criar mecanismos de controle no Legislativo e no Judiciário do que no âmbito da grande imprensa. Em princípio, os políticos poderiam se unir e impor medidas restritivas, não da liberdade de imprensa (nunca!), mas do controle exercido pelos proprietários sobre os conteúdos veiculados. Não o fazem porque, como bem lembrou Marcos Coimbra, citando Augusto dos Anjos, "a mão que afaga é a mesma que apedreja". O juiz do Supremo, o deputado, o senador, o prefeito, tem que escolher: ou colabora com o esquema, e ganha páginas amarelas na revista Veja, ou resolve ter um comportamento altivo, e o genro leva chumbo na semana seguinte. É assim que funciona.
Serra será brevemente moído por essa mesma imprensa que o tem incensado. Ele não é mais importante, nem mais precioso do que Demóstenes Torres. Precisam de alguém disposto a vocalizar com a necessária truculência o ponto de vista da ultradireita no Jornal Nacional. Na falta de Demóstenes, eles têm se virado perfeitamente bem com o senado Álvaro Dias. Se algum bicheiro resolver colocar o nome do senador na roda, comprarão outro papagaio chipado para fazer o serviço. Candidatos não faltam. Serra foi útil. Não é mais. Será literalmente vomitado do noticiário assim que terminar a campanha.
A grande questão no Brasil contemporâneo, portanto, não passa pelos partidos políticos, mas pelo controle social da mídia. A esquerda patina, apresentando propostas que conseguem ser a um só tempo inócuas, perigosas e autoritárias. Temos que imaginar propostas novas, eficazes, de grande apelo argumentativo, e conquistar um grande número de políticos para a idéia. Não se combate o poder da ultradireita tentando implementar medidas RESTRITIVAS, que redundam em censura prévia de conteúdos. Temos que combater o autoritarismo da ultradireita com MAIS LIBERDADE, lembrando as imensas possibilidades abertas pelo advento da internet, e fazendo com que o poder de pressão dos proprietários dos meios de comunicação seja apenas UM dos fatores envolvidos na resultante.
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