Pela Constituição do
Império, de 1824, só poderia se eleger deputado ou senador quem tivesse uma
renda anual de pelo menos 400 mil réis. E para votar em candidatos a esses
cargos era exigida uma renda mínima de 200 mil réis. Nas eleições locais, só
podiam votar aqueles que tivessem pelo menos 100 mil réis de renda anual: quem
tivesse renda menor do que isso não votava nem em eleições paroquiais. Em
resumo: quanto mais rica fosse uma pessoa, maior seria seu poder político.
Esse fato é contado
e ensinado quase como anedótico e usado para ilustrar como nosso passado era
pouco democrático. Afinal, uma legislação como aquela garantia que só os ricos
decidiam sobre o futuro de todos no país.
Entretanto, uma
observação mais aguçada mostra que a situação até piorou desde então. Vamos
ver.
Desde o início da
década de 1990, a legislação que regula o financiamento eleitoral no Brasil
(Leis 8713/1993 e 9504/1997) permite que pessoas físicas financiem seus
candidatos com até 10% de seu rendimento anual bruto. Como o sucesso em uma
campanha hoje depende de divulgação, divulgação depende de dinheiro e o
dinheiro vem do financiamento quase exclusivamente privado, quanto mais rica
for uma pessoa, mais poder eleitoral terá.
Ou seja, ainda que
possa parecer absurdo e totalmente antidemocrático, o poder político eleitoral
de uma pessoa é tão maior quanto maior for sua renda. Enquanto na Constituição
de 1824 um rico valia apenas um voto, hoje ele vale tantos votos quanto a
propaganda feita com seus recursos for capaz de carrear. Parece que conseguimos
piorar uma situação que já era esdrúxula há dois séculos.
Há outros absurdos
na nossa legislação de financiamento eleitoral: pessoas jurídicas, ou seja,
empresas, podem financiar campanhas políticas com valores de até 2% do
faturamento anual. Ora, empresas não são entes políticos e não podem ter
preferências eleitorais. Dar a elas um poder eleitoral, como faz a lei, ao
permitir que financiem eleições, é tão absurdo quanto permitir que elas pudessem
votar ou ser eleitas.
Outro absurdo diz
respeito aos valores dos financiamentos possíveis dentro daquela “limitação” de
2% do faturamento. O faturamento total das empresas em um país capitalista é da
ordem do próprio produto interno bruto, ou seja, mede-se, no caso brasileiro,
em trilhões de reais! Mesmo excluindo as empresas que, por lei, não podem
contribuir, o “rigor” da lei limita o financiamento eleitoral das empresas em
“apenas” algumas dezenas de bilhões de reais, valor muitas vezes superior aos
gastos totais declarados nas eleições de 2010. Como as possibilidades de
sucesso em uma eleição dependem dos investimentos feitos nas campanhas, as
empresas têm o poder de eleger quantos candidatos desejarem ou precisarem,
mesmo que invistam muito menos do que os 2% do faturamento que a lei permite. E
precisarem não se refere apenas a benefícios na forma de contratos
governamentais, mas, também, a coisas muito mais amplas e importantes: aí
estão, como alguns poucos exemplos, as leis que permitiram e permitem as
privatizações; códigos, como o florestal; legislações que favorecem a
privatização da educação e da saúde; preços, subsídios e políticas dos
transportes coletivos; tanto as leis como as ausências de leis referentes aos
meios de comunicação; leis orgânicas, como as que regulam a ocupação e a
propriedade dos solos urbano e rural; e, evidentemente, a própria legislação
que dá poderes políticos a empresas. Esses são apenas poucos exemplos, pois
toda a estrutura legal e econômica do país é controlada pelos próprios donos do
país.
Há mais
perversidade ainda. Note que o financiamento não é feito pela alta direção ou
pelos donos e controladores da empresa, com seus dinheiros pessoais. O
financiamento é feito pelas empresas e, assim, recai em suas planilhas de custo
em pé de igualdade com todas as outras despesas, como insumos, fornecedores,
salários, impostos, aluguéis etc., sendo, obviamente, transferidas para os
custos e os preços dos seus produtos e serviços. Assim, quem paga a conta desse
financiamento eleitoral somos nós, os trabalhadores, os consumidores, os
fregueses, os clientes, os pacientes, os passageiros, os inquilinos, os alunos,
os correntistas etc. E, claro, pagam também, os trabalhadores das próprias
empresas que financiam as eleições, uma vez que se forem feitas maiores
despesas com um insumo qualquer, como o financiamento eleitoral, sobram menos
recursos para os salários.
Quem financia?
Como quem decide
quantos e quais candidatos serão financiados e com que volume de recursos são
os donos do país, o atual mecanismo de financiamento é uma espécie de impostos
que pagamos para que eles convençam os eleitores a mantê-los na condição de
donos do país.
Evidentemente, os
eleitos dessa forma não irão responder às demandas dos eleitores, mas, sim, às
demandas daqueles que têm o poder de decidir quais candidatos e partidos serão
financiados.
Pior ainda: pagamos
muito caro, pois o financiamento feito por pessoas jurídicas contribuiu para
aumentar os custos das campanhas eleitorais. E a propaganda viabilizada pelos
recursos financeiros contrapõe-se ferozmente à atuação das militâncias reais e
sinceras, estas, sim, instrumentos legítimos para a conquista de votos. Com o
domínio da propaganda, as posições ideológicas dos candidatos passaram a ter
menos peso na escolha dos eleitores. Pouquíssimos candidatos se elegem,
atualmente, com base em posições ideológicas ou militância.
Entre os argumentos
usados no início da década de 1990 para justificar a legalização do
financiamento feito por pessoas jurídicas estavam o fim do caixa dois, que,
hipoteticamente, não seria mais necessário, e o fato que os eleitores poderiam
saber quais candidatos são financiados por quem. Ora, esse último argumento é
bobagem, pois uma mesma empresa financia um leque de candidatos, de tal forma
que tenham, entre os financiados, pessoas de diferentes perfis políticos, mas
privilegiando, obviamente, aqueles que seus controladores realmente querem que
sejam eleitos. Além disso, quantos eleitores têm a paciência e a possibilidade
de fazer um complexo mapa de quais candidatos receberam recursos de quais
empresas, de que setores e em quais quantidades?
O outro argumento
também não é correto, pois o financiamento feito pelas empresas, com o caixa
um, não eliminou o caixa dois, tanto por haver despesas que não podem ser
financiadas legalmente, como pelo fato de algumas empresas e candidatos não
quererem explicitar seus vínculos, preferindo o segredo do caixa dois.
Assim, a legislação
viabilizou uma situação esdrúxula, absurda e totalmente antidemocrática:
pagamos caro para eleger os candidatos escolhidos pela elite econômica do país,
continuamos a amargar o caixa dois, empresas passam a ser entes políticos e intensifica-se
o poder econômico dos mais ricos.
Com tais
ingredientes, é impossível construir uma democracia. Uma legislação republicana
deveria, em lugar de permitir o financiamento eleitoral feito por pessoas
jurídicas, criminalizá-lo, qualquer que fosse o número do caixa, restringindo o
financiamento eleitoral e de partidos políticos apenas a pessoas físicas e ao
poder público. E no caso de pessoas físicas, deveria haver um limite máximo
para a contribuição individual para os partidos compatível com a renda per
capita do país e independente da renda individual do doador. Da forma atual,
criou-se um círculo vicioso terrível, no qual a concentração da renda e
patrimônio leva a uma concentração do poder, que não abrirá mão da concentração
da renda e do patrimônio.
Precisamos defender
o financiamento público. E para isso é necessário denunciar a situação atual,
pois perece que a enorme maioria da população ainda não percebeu que, como
está, nós financiamos os candidatos que as elites escolhem, e a altos custos,
contribuindo para que os donos do país se perpetuam como donos do poder.
Há uma frase
atribuída a Mark Twain que diz que “nós temos o melhor governo que o dinheiro
pode comprar”. A nossa legislação eleitoral, aprovada no auge do neoliberalismo,
transformou o chiste de Mark Twain em lei.
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