sexta-feira, 29 de dezembro de 2017
De Getúlio a Jefferson, PTB acaba com direitos e Temer mente sobre emprego - por Ricardo Kotscho (Balaio do Kotscho)
A
trajetória do PTB (para quem não lembra, a sigla quer dizer Partido
Trabalhista Brasileiro), de Getúlio Vargas, seu fundador, a Roberto Jefferson,
atual dono da legenda, é emblemática da degradação do sistema
político-partidário no país.
Getúlio criou a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT)
na década de 40 do século passado, que acaba de ser desmontada em poucos meses
pelo governo Michel Temer, ao implantar na íntegra o projeto de reforma
apresentado pela CNI (Confederação Nacional da Indústria), sob a alegre batuta
do agora ex-ministro Ronaldo Nogueira, do PTB gaúcho (gaúcho como Vargas!),
indicado por Jefferson, que atendeu a todas as antigas reivindicações do
patronato para acabar com os sindicatos, a Justiça Trabalhista e os direitos
dos assalariados.
Ninguém sabia quem era Ronaldo Nogueira, que agora
voltará para o anonimato do baixo clero, mas seu nome será lembrado como o do
ministro do PTB que tentou revogar a Lei Áurea. Houve protestos até da ONU e
Temer foi obrigado a recuar daquela barbaridade que praticamente liberava o trabalho
escravo no Brasil.
Sob o pretexto de “modernizar a legislação
trabalhista” para criar mais empregos, Nogueira apresentou um balanço da sua
gestão na carta em que pediu demissão do cargo na quarta-feira.
“Saímos de um modelo de alta regulação estatal para
uma forma moderna de autocomposição dos conflitos trabalhistas, colocando o
Brasil ao lado das nações mais desenvolvidas do mundo”.
Que beleza, agora somos modernos! O que dirão disso
as “nações mais desenvolvidas”? A quem eles pensam que enganam?
Colocar os trabalhadores para defender seus
direitos em negociação direta com os patrões, sem a intermediação dos
sindicatos e do Estado, é mais ou menos como botar o meu São Paulo para jogar
de igual para igual com o Barcelona, no campo do Barcelona, num jogo sem juiz,
com os direitos de transmissão de TV negociados por Marin, Teixeira, Del Nero e
cia. bela.
Por ironia do destino, no mesmo dia, o ministro do
PTB, que será substituído por outro deputado do PTB, também indicado pelo
inefável Roberto Jefferson, foi obrigado a anunciar que em novembro o Brasil
teve mais demissões do que contratações, com um saldo negativo de 12,3 mil
vagas, justamente no mês em que foi implantada a nova legislação trabalhista.
Em lugar de mais empregos, mais demissões.
Nos primeiros 11 meses de 2017, o saldo foi
positivo em 299,6 mil vagas, bem longe do um milhão de novos empregos
repetidamente anunciados pelo presidente Temer e o ministro Meirelles em seus
discursos e na feérica e milionária campanha do governo “Agora, é avançar”
veiculada dia e noite nos meios de comunicação.
Avançar para onde? A propaganda oficial só não fala
que vivemos num país onde ainda há quase 13 milhões de desempregados e correm,
ou melhor, dormem no Supremo Tribunal Federal 12 ações diretas de
inconstitucionalidade contra a tal “Lei da Modernização Trabalhista”.
De mentira em mentira, de recuo em recuo, estão
criando um Brasil de fantasia nas fake news com carimbos oficiais embaladas na
propaganda pública e privada de que agora tudo vai melhorar.
Bem que poderia ser verdade nesta passagem de ano,
um tempo em que sempre há uma renovação de esperanças, mas os números insistem
em mostrar a realidade e os Maruns da vida nadam de braçada tirando um sarro da
nossa cara.
Se os fatos negam a propaganda, danem-se os fatos.
Vida que segue.
Comentário
Ainda
haveria muito a comentar, especialmente sobre a qualidade dos empregos que
foram criados este ano.
É
o engenheiro que trabalhava em um estaleiro, com conhecimento e valor de
mercado para um salário de dez mil reais, que virou motorista de uber, ganha
mil e duzentos reais, mas para o governo tem “emprego” da mesma forma que
antes.
Para
citar um caso que conheço pessoalmente, uma engenheira mecânica que trabalhava
prestando serviço a uma grande empresa, depois de ficar desempregada por meses,
para não ficar parada hoje trabalha em uma loja de colchões.
Todo
o investimento feito na formação desta pessoa (em universidade federal), toda a
experiência que ela possui como profissional qualificada, tudo foi para o lixo.
Estes
são os empregos que o desgoverno está comemorando.
Ademais,
nossa brilhante equipe econômica desconsidera a quantidade de jovens que está
chegando ao mercado a cada ano em relação aos aposentados que saem, ou seja,
gerar cerca de 300.000 empregos por ano é, proporcionalmente, aumentar a taxa
de desemprego.
Por
fim, ter Roberto Jefferson como presidente de partido é sintomático do estado (terminal)
da política brasileira.
segunda-feira, 25 de dezembro de 2017
Humano assim como Jesus só Deus mesmo – por Leonardo Boff (blog homônimo)
O Natal nos faz lembrar as nossas origens humildes. O Filho de Deus não quis nascer num
palácio com tudo o que lhe pertence em pompa e glória. Não preferiu um templo,
com seus ritos, incensos, velas acesas e cânticos. Sequer buscou uma casa
minimamente decente. Nasceu lá onde comem os animais, numa manjedoura. Os pais
eram pobres operários, do campo e da oficina, a caminho de um recenseamento
imposto pelo imperador romano.
Esta cena nos
remete à situação presente no país e no mundo: milhões e milhões de pobres,
muitos famélicos, outros tantos milhões de crianças cujos olhos quase saltam do
rosto por causa da fome e da fraqueza. A maioria morre antes de atingir 3 anos.
Eles atualizam para nós a condição escolhida pelo Filho de Deus.
Ao escolher
aqueles que não são socialmente e os
tidos como invisíveis, o Filho de
Deus nos quis passar uma mensagem: há uma dignidade divina em todos estes
sofredores. Face a eles devemos mostrar solidariedade e compaixão, não como
pena, mas como forma de participar de sua paixão. Sempre haverá pobres neste
mundo, já o disse a Bíblia. Razão a mais para sempre retomarmos a solidariedade
e a compaixão. Se alguém caminha junto, estende a mão e levanta o caído, mais
ainda, se alguém se faz companheiro, quer dizer, aquele que comparte o pão, o
sofrimento se torna menor e a cruz mais leve.
Quem está
longe dos pobres, mesmo o cristão mais piedoso, está longe de Cristo. Cabe
sempre recordar a palavra do Juiz Supremo: “O que fizer ou deixar de fazer a
estes meus irmãos e irmãs mais pequenos: os famintos, os sedentos, os
encarcerados e os nus, foi a mim que o fez ou deixou de fazer” (Mt 25,40).
O Natal é uma
festa da contradição: ela nos recorda o mundo que ainda não foi humanizado
porque somos cruéis e sem piedade para com aqueles penalizados pela vida. O
Natal nos recorda a mesma situação vivida pelo Verbo da vida, o Filho feito
carne: “veio para o que era seu mas os seus não o receberam” (Jo 1,11).
Por outro
lado, no Natal nos alegramos que Deus em Jesus “mostrou a sua bondade e
jovialidade para conosco” (Epístola a Tito 3,4). Alegra-nos saber que Deus se
fez criança que não julga nem condena ninguém. Quer apenas, como criança, ser
acolhido mais que acolher, ser ajudado mais que ajudar.
Apraz-me
terminar esta pequena reflexão com os versos do grande poeta português,
Fernando Pessoa. Poucos disseram coisas mais belas do que ele sobre o Menino
Jesus:
Ele é a Eterna Criança, o Deus
que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que
brinca.
E por isso é que eu sei com toda
certeza
Que Ele é o Menino Jesus
verdadeiro.
E a criança tão humana que é
divina.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo,
Que nunca pensamos um no outro.
Mas vivemos juntos os dois
Com um acordo íntimo,
Como a mão direita e a esquerda.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, a mais
pequena.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro de tua
casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu
acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu
brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Depois desta
beleza singela e verdadeira só me resta desejar um Feliz Natal sereno a todos
dentro de nosso mundo tão conturbado. Feliz Natal!
sexta-feira, 22 de dezembro de 2017
Lula, PT e CUT: outra hora da verdade – por Aldo Fornazieri (Jornal GGN)
É
forçoso constatar que as esquerdas brasileiras têm sido
refratárias em aprender com as lições da história. Os mais eminentes clássicos
da Filosofia Política sempre chamaram a atenção para o fato de que os grandes
líderes políticos precisam recorrer história, extraindo dela lições negativas,
para evitar caminhos que levam a derrotas, e lições positivas, seguindo como
modelos as ações exemplares que levaram a grande vitórias e contribuíram para
construir a grandeza do Estado e alcançar a glória imorredoura dos grandes
condutores políticos e dos povos. Basta ler as biografias de um Péricles, de um
Alexandre, de um Cipião, de um Júlio César, de um Otávio Augusto, de um Carlos
Magno, de um Napoleão, de um Bismark e de tantos outros, antigos e
modernos, para ver como esses líderes se esmeravam no estudo da história,
visando compreender os segredos das vitórias ou das derrotas, da grandeza ou da
vergonha, da virtude combativa ou da covardia da fuga.
Desgraçadamente, a maior parte dos políticos brasileiros é constituída
de arrogantes. Arrogância e ignorância andam juntas. Eles pressupõem que sabem
tudo e, na sua desastrosa autossuficiência, se negam a aprender com a história,
com os bons exemplos e com os bons conselhos. Todo líder sábio e prudente tem
essas três fontes de sabedoria política: a história, os bons exemplos e os bons
conselhos.
Todo golpe tem dois grandes conjuntos de causa: os erros e a inépcia dos
golpeados e a ação criminosa e ilegal dos golpistas. As circunstâncias e causas
que estão imbricadas no o golpe militar de 1964 e no golpe jurídico-parlamentar
de 2016, são diferentes, embora algumas questões de fundo sejam as mesmas.
Outro elemento comum aos dois eventos, com nuances e circunstâncias diferentes,
é a conduta capitulacionista das forças de esquerda, a sua fraqueza e
desorganização, a sua retórica inflamada e a sua inconsequência na ação
prática.
Os líderes sindicais haviam convocado uma greve geral para 31 de março
de 1964, mas, praticamente, ninguém aderiu. Com alguns líderes presos, outros
foragidos, os sindicatos mostraram toda a sua debilidade. O suposto esquema
militar de Jango, a rigor, era um campo minado. Jango tinha mantido em postos de
comandos alguns militares que se tornaram chefes golpistas. Se não eram
golpistas, eram incompetentes. O próprio general Castelo Branco era chefe do
Estado Maior do Exército.
Com Dilma, não foi diferente: Temer, participava das reuniões para
evitar o impeachment ao mesmo tempo articulava o golpe com alguns ministros do
governo, com líderes do governo no Congresso, notadamente o senador Romero
Jucá. Ministros saíram da explanada dos Ministérios para orientar as suas
bancadas para derrubar Dilma. Desta vez sequer existiam tanques e baionetas.
Mas também não existiam os prometidos exércitos do MST e as trincheiras do
presidente da CUT. Os manifestantes do fatídico 17 de abril de 2016, é bom que
se repita, no final do dia, e em face da derrota imposta por uma Câmara dos
Deputados ignominiosa, que fez corar de vergonha até mesmo a grama da praça dos
Três Poderes, se retiraram para as suas casas cabisbaixos e desmoralizados.
As esquerdas sofreram outras derrotas como resultado da sua impotência
ou da sua omissão. No contexto das Diretas Já, após grandes mobilizações
populares, se limitaram a votar contra a chapa Tancredo-Sarney no Colégio
Eleitoral. Após as mobilizações pelo impeachment de Collor, nenhum saldo mais
significativo. Os caras-pintas evaporaram e o resultado foi o reinado de oito
anos de FHC.
Agora mesmo o governo golpista de Temer impôs a reforma trabalhista sem
grande resistência de rua. No dia da votação da reforma no Senado, o presidente
da CUT, Wagner Freitas, se encontrava no recinto querendo entrar no plenário.
Compare-se esta atitude com a atitude dos sindicatos e dos movimentos sociais
argentinos que, na última semana, cercaram o Congresso e inviabilizaram a
votação da reforma da previdência naquele país. Uma das palavras de ordem
entoada pelos manifestantes é que lá "não é o Brasil".
Este grito precisa vibrar nos ouvidos dos governantes argentinos, mas
também dos sindicalistas e líderes sociais brasileiros. Na verdade, os
sindicatos brasileiros vêm revelando uma debilidade histórica: garantidos à
sombra do imposto sindical, são dirigidos por burocracias de bem viventes, bem
vestidos e bem alimentados, distantes de suas bases e alheios às vicissitudes
destas. Este afastamento entre direções e bases impede que nos momentos
decisivos se tenha força mobilizadora, força de combate.
A interdição da candidatura Lula deve ser inaceitável
e inegociável
O julgamento de Lula em 24 de janeiro pelo TRF4 será uma nova hora da
verdade para as forças de esquerda e progressistas brasileiras, particularmente
para o PT e para a CUT. Em que pese a resolução do Diretório Nacional do PT
chamar para a mobilização, se observa um certo ar de capitulacionismo em
setores do partido. A CUT está desafiada a conseguir ir além do tom
declaratório dos seus dirigentes. O PT terá que mostrar que sabe ir além de si
mesmo, chamando as demais forças democráticas, progressistas e de esquerda para
enfrentar este último ato do golpe. Caso contrário, poderá caminhar sozinho
para uma nova derrota. Pensar num plano B, neste momento, numa candidatura
substituta a Lula, significa antecipar a derrota sem luta. Mas setores de
esquerda são tão ufanistas e inconsequentes que acreditam que se Lula for
impedido, transferirá os votos para outro candidato e o elegeria. Prefere-se
acreditar em fantasias do que lutar.
As forças progressistas e de esquerda precisam perceber que existe um
embate prévio às eleições: garantir o direito à candidatura Lula como uma
questão democrática central, como uma questão da luta do povo contra as elites
predadoras. Não cabem condutas oportunistas nessa questão, por mais
ressentimentos que muitos possam ter do PT. Se surgir uma Frente Democrática e
Progressista desse processo, tanto melhor. Se não surgir, as diversas
candidaturas e partidos de esquerda poderão participar das eleições com a
dignidade do dever cumprido se lutarem por garantir Lula na disputa.
É preciso perceber que as forças golpistas perderam a legitimidade moral
junto à sociedade e que este é o momento da confraofensiva. Os fatores são
vários: por ser o governo uma quadrilha; pelo PSDB ter ser revelado um
partido hipócrita, moralista sem moral; pelo STF ser um abrigo de bandidos de
colarinho branco, soltando empresários corruptos, salvando Aécio Neves, abrindo
mão de suas prerrogativas e rasgando a Constituição; por existirem juízes do
STF e de outros tribunais tisnados pela suspeição de graves irregularidades;
pela parcialidade persecutória do juiz Moro e pela suspeita de que a Lava Jato
tem se tornado um balcão de negócios de Moro e dos procuradores; pelo fato de
que em vários setores do Judiciário se resvalou para o arbítrio, para a exceção
e se deixou de cumprir a lei. Não se pode aceitar a condenação de Lula, sem
provas, por um Judiciário carcomido pela incompetência, pela corrupção, pelos
privilégios, pela proteção de criminosos ricos e pela penalização dos pobres
As forças progressistas e de esquerda do Rio Grande do Sul têm o dever
de se colocar na linha de frente desta luta, mobilizando os ativistas de todo o
estado para ocupar Porto Alegre. Trata-se de fazer confluir caravanas de todas
as regiões do estado para dizer que o último capítulo do golpe não será aceito.
Trata-se, não só de ocupar Porto Alegre, mas de parar a capital gaúcha usando
táticas que não se restrinjam a um mero piquenique cívico, como vem ocorrendo
na Avenida Paulista.
Os movimentos sociais e progressistas do Rio Grande do Sul precisam
resgatar as virtudes combativas, de enfrentamentos cívicos, das lutas sociais e
populares -virtudes e combates que estão enredados com a história do próprio
estado. É preciso transformar o dia 24 de janeiro num novo paradigma da
história dos progressistas e das esquerdas no Brasil. Um paradigma que seja o
da organização social, do poder social e do poder da mobilização popular,
escrito com brio, coragem e combatividade. Travar a luta no interior das
instituições é uma necessidade, mas criar poderosas e combativas organizações e
movimentos da sociedade, a exemplo do MTST, é uma garantia de que haverá lutas
por direitos e dignidade e que golpes não poderão ser dados sem enfrentamentos.
Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e
Política (FESPSP).
Discurso do Papa Francisco aos Movimentos Populares - por Rádio Vaticana
Há alguns meses,
reunimo-nos em Roma e não esqueço aquele nosso primeiro encontro. Durante este
tempo, trouxe-vos no meu coração e nas minhas orações. Alegra-me vê-vos de novo
aqui, debatendo os melhores caminhos para superar as graves situações de
injustiça que padecem os excluídos em todo o mundo. Obrigado Senhor Presidente
Evo Morales, por sustentar tão decididamente este Encontro.
Então, em Roma,
senti algo muito belo: fraternidade, paixão, entrega, sede de justiça. Hoje, em Santa Cruz de la Sierra , volto a sentir o
mesmo. Obrigado! Soube também, pelo Pontifício Conselho «Justiça e Paz»
presidido pelo Cardeal Turkson, que são muitos na Igreja aqueles que se sentem
mais próximos dos movimentos populares. Muito me alegro por isso! Ver a Igreja
com as portas abertas a todos vós, que se envolve, acompanha e consegue
sistematizar em cada diocese, em cada comissão «Justiça e Paz», uma colaboração
real, permanente e comprometida com os movimentos populares. Convido-vos a
todos, bispos, sacerdotes e leigos, juntamente com as organizações sociais das
periferias urbanas e rurais a aprofundar este encontro.
Deus permitiu que
nos voltássemos a ver hoje. A Bíblia lembra-nos que Deus escuta o clamor do seu
povo e também eu quero voltar a unir a minha voz à vossa: terra, teto e
trabalho para todos os nossos irmãos e irmãs. Disse-o e repito: são direitos
sagrados. Vale a pena, vale a pena lutar por eles. Que o clamor dos excluídos
seja escutado na América Latina e em toda a terra.
1. Comecemos por reconhecer que precisamos
duma mudança. Quero esclarecer, para que não haja mal-entendidos, que falo dos
problemas comuns de todos os latino-americanos e, em geral, de toda a
humanidade. Problemas, que têm uma matriz global e que atualmente nenhum Estado
pode resolver por si mesmo. Feito este esclarecimento, proponho que nos
coloquemos estas perguntas:
- Reconhecemos nós que as coisas não andam bem
num mundo onde há tantos camponeses sem terra, tantas famílias sem teto, tantos
trabalhadores sem direitos, tantas pessoas feridas na sua dignidade?
- Reconhecemos nós que as coisas não andam
bem, quando explodem tantas guerras sem sentido e a violência fratricida se
apodera até dos nossos bairros? Reconhecemos nós que as coisas não andam bem,
quando o solo, a água, o ar e todos os seres da criação estão sob ameaça
constante?
Então digamo-lo
sem medo: Precisamos e queremos uma mudança.
Nas vossas cartas
e nos nossos encontros, relataram-me as múltiplas exclusões e injustiças que
sofrem em cada atividade laboral, em cada bairro, em cada território. São
tantas e tão variadas como muitas e diferentes são as formas próprias de as
enfrentar. Mas há um elo invisível que une cada uma destas exclusões:
conseguimos nós reconhecê-lo? É que não se trata de questões isoladas.
Pergunto-me se somos capazes de reconhecer que estas realidades destrutivas
correspondem a um sistema que se tornou global. Reconhecemos nós que este
sistema impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social
nem na destruição da natureza?
Se é assim –
insisto – digamo-lo sem medo: Queremos uma mudança, uma mudança real, uma
mudança de estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam os
camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não
o suportam os povos.... E nem sequer o suporta a Terra, a irmã Mãe Terra, como
dizia São Francisco.
Queremos uma
mudança nas nossas vidas, nos nossos bairros, no vilarejo, na nossa realidade
mais próxima; mas uma mudança que toque também o mundo inteiro, porque hoje a
interdependência global requer respostas globais para os problemas locais. A
globalização da esperança, que nasce dos povos e cresce entre os pobres, deve
substituir esta globalização da exclusão e da indiferença.
Hoje quero
refletir convosco sobre a mudança que queremos e precisamos. Como sabem,
recentemente escrevi sobre os problemas da mudança climática. Mas, desta vez,
quero falar duma mudança noutro sentido. Uma mudança positiva, uma mudança que
nos faça bem, uma mudança – poderíamos dizer – redentora. Porque é dela que
precisamos. Sei que buscais uma mudança e não apenas vós: nos diferentes
encontros, nas várias viagens, verifiquei que há uma expectativa, uma busca
forte, um anseio de mudança em todos os povos do mundo. Mesmo dentro da minoria
cada vez mais reduzida que pensa sair beneficiada deste sistema, reina a
insatisfação e sobretudo a tristeza. Muitos esperam uma mudança que os liberte
desta tristeza individualista que escraviza.
O tempo, irmãos e
irmãs, o tempo parece exaurir-se; já não nos contentamos com lutar entre nós,
mas chegamos até a assanhar-nos contra a nossa casa. Hoje, a comunidade
científica aceita aquilo que os pobres já há muito denunciam: estão a
produzir-se danos talvez irreversíveis no ecossistema. Está-se a castigar a
terra, os povos e as pessoas de forma quase selvagem. E por trás de tanto
sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o cheiro daquilo que Basílio de
Cesareia chamava «o esterco do diabo»: reina a ambição desenfreada de dinheiro.
O serviço ao bem comum fica em segundo plano. Quando o capital se torna um
ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez do dinheiro domina
todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem,
transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, faz lutar povo
contra povo e até, como vemos, põe em risco esta nossa casa comum.
Não quero
alongar-me na descrição dos efeitos malignos desta ditadura subtil: vós
conhecei-los! Mas também não basta assinalar as causas estruturais do drama
social e ambiental contemporâneo. Sofremos de um certo excesso de diagnóstico,
que às vezes nos leva a um pessimismo charlatão ou a rejubilar com o negativo.
Ao ver a crônica negra de cada dia, pensamos que não haja nada que se possa
fazer para além de cuidar de nós mesmos e do pequeno círculo da família e dos
amigos.
Que posso fazer
eu, recolhedor de papelão, catador de lixo, limpador, reciclador, frente a
tantos problemas, se mal ganho para comer? Que posso fazer eu, artesão, vendedor
ambulante, carregador, trabalhador irregular, se não tenho sequer direitos
laborais? Que posso fazer eu, camponesa, indígena, pescador que dificilmente
consigo resistir à propagação das grandes corporações? Que posso fazer eu, a
partir da minha comunidade, do meu barraco, da minha povoação, da minha favela,
quando sou diariamente discriminado e marginalizado? Que pode fazer aquele
estudante, aquele jovem, aquele militante, aquele missionário que atravessa as
favelas e os paradeiros com o coração cheio de sonhos, mas quase sem nenhuma
solução para os meus problemas? Muito! Podem fazer muito. Vós, os mais
humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podeis e fazeis muito.
Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas
mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na
busca diária dos “3 T” (trabalho, teto, terra), e também na vossa participação
como protagonistas nos grandes processos de mudança nacionais, regionais e
mundiais. Não se acanhem!
2.
Vós sois semeadores de mudança. Aqui, na Bolívia, ouvi uma frase de que gosto
muito: «processo de mudança». A mudança concebida, não como algo que um dia
chegará porque se impôs esta ou aquela opção política ou porque se estabeleceu
esta ou aquela estrutura social. Sabemos, amargamente, que uma mudança de
estruturas, que não seja acompanhada por uma conversão sincera das atitudes e
do coração, acaba a longo ou curto prazo por burocratizar-se, corromper-se e
sucumbir. Por isso gosto tanto da imagem do processo, onde a paixão por semear,
por regar serenamente o que outros verão florescer, substitui a ansiedade de
ocupar todos os espaços de poder disponíveis e de ver resultados imediatos.
Cada um de nós é apenas uma parte de um todo complexo e diversificado
interagindo no tempo: povos que lutam por uma afirmação, por um destino, por
viver com dignidade, por «viver bem».
Vós, a partir dos movimentos populares,
assumis as tarefas comuns motivados pelo amor fraterno, que se rebela contra a
injustiça social. Quando olhamos o rosto dos que sofrem, o rosto do camponês
ameaçado, do trabalhador excluído, do indígena oprimido, da família sem teto,
do imigrante perseguido, do jovem desempregado, da criança explorada, da mãe
que perdeu o seu filho num tiroteio porque o bairro foi tomado pelo
narcotráfico, do pai que perdeu a sua filha porque foi sujeita à escravidão;
quando recordamos estes «rostos e nomes» estremecem-nos as entranhas diante de
tanto sofrimento e comovemo-nos…. Porque «vimos e ouvimos», não a fria
estatística, mas as feridas da humanidade dolorida, as nossas feridas, a nossa
carne. Isto é muito diferente da teorização abstrata ou da indignação elegante.
Isto comove-nos, move-nos e procuramos o outro para nos movermos juntos. Esta
emoção feita ação comunitária é incompreensível apenas com a razão: tem um plus
de sentido que só os povos entendem e que confere a sua mística particular aos
verdadeiros movimentos populares.
Vós viveis, cada
dia, imersos na crueza da tormenta humana. Falastes-me das vossas causas,
partilhastes comigo as vossas lutas. E agradeço-vos. Queridos irmãos, muitas
vezes trabalhais no insignificante, no que aparece ao vosso alcance, na
realidade injusta que vos foi imposta e a que não vos resignais opondo uma
resistência ativa ao sistema idólatra que exclui, degrada e mata. Vi-vos
trabalhar incansavelmente pela terra e a agricultura camponesa, pelos vossos
territórios e comunidades, pela dignificação da economia popular, pela
integração urbana das vossas favelas e agrupamentos, pela autoconstrução de
moradias e o desenvolvimento das infraestruturas do bairro e em muitas
atividades comunitárias que tendem à reafirmação de algo tão elementar e
inegavelmente necessário como o direito aos “3 T”: terra, teto e trabalho.
Este apego ao
bairro, à terra, ao território, à profissão, à corporação, este reconhecer-se
no rosto do outro, esta proximidade no dia-a-dia, com as suas misérias e os
seus heroísmos quotidianos, é o que permite realizar o mandamento do amor, não
a partir de ideias ou conceitos, mas a partir do genuíno encontro entre
pessoas, porque não se amam os conceitos nem as ideias; amam-se as pessoas. A
entrega, a verdadeira entrega nasce do amor pelos homens e mulheres, crianças e
idosos, vilarejos e comunidades... Rostos e nomes que enchem o coração. A
partir destas sementes de esperança semeadas pacientemente nas periferias
esquecidas do planeta, destes rebentos de ternura que lutam por subsistir na
escuridão da exclusão, crescerão grandes árvores, surgirão bosques densos de
esperança para oxigenar este mundo.
Vejo, com
alegria, que trabalhais no que aparece ao vosso alcance, cuidando dos rebentos;
mas, ao mesmo tempo, com uma perspectiva mais ampla, protegendo o arvoredo.
Trabalhais numa perspectiva que não só aborda a realidade setorial que cada um
de vós representa e na qual felizmente está enraizada, mas procurais também
resolver, na sua raiz, os problemas gerais de pobreza, desigualdade e exclusão.
Felicito-vos por
isso. É imprescindível que, a par da reivindicação dos seus legítimos direitos,
os povos e as suas organizações sociais construam uma alternativa humana à
globalização exclusiva. Vós sois semeadores de mudança. Que Deus vos dê
coragem, alegria, perseverança e paixão para continuar a semear. Podeis ter a
certeza de que, mais cedo ou mais tarde, vamos ver os frutos. Peço aos
dirigentes: sede criativos e nunca percais o apego às coisas próximas, porque o
pai da mentira sabe usurpar palavras nobres, promover modas intelectuais e
adoptar posições ideológicas, mas se construirdes sobre bases sólidas, sobre as
necessidades reais e a experiência viva dos vossos irmãos, dos camponeses e
indígenas, dos trabalhadores excluídos e famílias marginalizadas, de certeza
não vos equivocareis.
A Igreja não pode
nem deve ser alheia a este processo no anúncio do Evangelho. Muitos sacerdotes
e agentes pastorais realizam uma tarefa imensa acompanhando e promovendo os
excluídos em todo o mundo, ao lado de cooperativas, dando impulso a
empreendimentos, construindo casas, trabalhando abnegadamente nas áreas da
saúde, desporto e educação. Estou convencido de que a cooperação amistosa com
os movimentos populares pode robustecer estes esforços e fortalecer os
processos de mudança.
No coração,
tenhamos sempre a Virgem Maria, uma jovem humilde duma pequena aldeia perdida
na periferia dum grande império, uma mãe sem teto que soube transformar um
curral de animais na casa de Jesus com uns pobres paninhos e uma montanha de
ternura. Maria é sinal de esperança para os povos que sofrem dores de parto até
que brote a justiça. Rezo à Virgem do Carmo, padroeira da Bolívia, para fazer
com que este nosso Encontro seja fermento de mudança.
3. Por último, gostaria que refletíssemos,
juntos, sobre algumas tarefas importantes neste momento histórico, pois queremos
uma mudança positiva em benefício de todos os nossos irmãos e irmãs. Disto
estamos certos! Queremos uma mudança que se enriqueça com o trabalho conjunto
de governos, movimentos populares e outras forças sociais. Sabemos isto também!
Mas não é tão fácil definir o conteúdo da mudança, ou seja, o programa social
que reflita este projeto de fraternidade e justiça que esperamos. Neste
sentido, não esperem uma receita deste Papa. Nem o Papa nem a Igreja têm o
monopólio da interpretação da realidade social e da proposta de soluções para
os problemas contemporâneos. Atrever-me-ia a dizer que não existe uma receita.
A história é construída pelas gerações que se vão sucedendo no horizonte de
povos que avançam individuando o próprio caminho e respeitando os valores que
Deus colocou no coração.
Gostaria, no entanto, de vos propor três
grandes tarefas que requerem a decisiva contribuição do conjunto dos movimentos
populares:
3.1 A primeira tarefa é pôr a economia ao
serviço dos povos.
Os seres humanos e a natureza não devem estar
ao serviço do dinheiro. Digamos NÃO a uma economia de exclusão e desigualdade,
onde o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia mata. Esta economia
exclui. Esta economia destrói a Mãe Terra.
A economia não
deveria ser um mecanismo de acumulação, mas a condigna administração da casa
comum. Isto implica cuidar zelosamente da casa e distribuir adequadamente os
bens entre todos. A sua finalidade não é unicamente garantir o alimento ou um
«decoroso sustento». Não é sequer, embora fosse já um grande passo, garantir o
acesso aos “3 T” pelos quais combateis. Uma economia verdadeiramente
comunitária – poder-se-ia dizer, uma economia de inspiração cristã – deve
garantir aos povos dignidade, «prosperidade e civilização em seus múltiplos
aspectos».[1] Isto envolve os “3 T” mas também acesso à educação, à saúde, à
inovação, às manifestações artísticas e culturais, à comunicação, ao desporto e
à recreação. Uma economia justa deve criar as condições para que cada pessoa
possa gozar duma infância sem privações, desenvolver os seus talentos durante a
juventude, trabalhar com plenos direitos durante os anos de atividade e ter
acesso a uma digna aposentação na velhice. É uma economia onde o ser humano, em
harmonia com a natureza, estrutura todo o sistema de produção e distribuição de
tal modo que as capacidades e necessidades de cada um encontrem um apoio
adequado no ser social. Vós – e outros povos também – resumis este anseio duma
maneira simples e bela: «viver bem».
Esta economia é
não apenas desejável e necessária, mas também possível. Não é uma utopia, nem
uma fantasia. É uma perspectiva extremamente realista. Podemos consegui-la. Os
recursos disponíveis no mundo, fruto do trabalho intergeneracional dos povos e
dos dons da criação, são mais que suficientes para o desenvolvimento integral
de «todos os homens e do homem todo».[2] Mas o problema é outro. Existe um
sistema com outros objetivos. Um sistema que, apesar de acelerar
irresponsavelmente os ritmos da produção, apesar de implementar métodos na
indústria e na agricultura que sacrificam a Mãe Terra na ara da
«produtividade», continua a negar a milhares de milhões de irmãos os mais
elementares direitos econômicos, sociais e culturais. Este sistema atenta
contra o projeto de Jesus.
A justa
distribuição dos frutos da terra e do trabalho humano não é mera filantropia. É
um dever moral. Para os cristãos, o encargo é ainda mais forte: é um
mandamento. Trata-se de devolver aos pobres e às pessoas o que lhes pertence. O
destino universal dos bens não é um adorno retórico da doutrina social da
Igreja. É uma realidade anterior à propriedade privada. A propriedade,
sobretudo quando afeta os recursos naturais, deve estar sempre em função das
necessidades das pessoas. E estas necessidades não se limitam ao consumo. Não basta
deixar cair algumas gotas, quando os pobres agitam este copo que, por si só,
nunca derrama. Os planos de assistência que acodem a certas emergências
deveriam ser pensados apenas como respostas transitórias. Nunca poderão
substituir a verdadeira inclusão: a inclusão que dá o trabalho digno, livre,
criativo, participativo e solidário.
Neste caminho, os
movimentos populares têm um papel essencial, não apenas exigindo e reclamando,
mas fundamentalmente criando. Vós sois poetas sociais: criadores de trabalho,
construtores de casas, produtores de alimentos, sobretudo para os descartados
pelo mercado global.
Conheci de perto
várias experiências, onde os trabalhadores, unidos em cooperativas e outras
formas de organização comunitária, conseguiram criar trabalho onde só havia
sobras da economia idólatra. As empresas recuperadas, as feiras francas e as
cooperativas de catadores de papelão são exemplos desta economia popular que
surge da exclusão e que pouco a pouco, com esforço e paciência, adopta formas
solidárias que a dignificam. Quão diferente é isto do fato de os descartados
pelo mercado formal serem explorados como escravos!
Os governos que
assumem como própria a tarefa de colocar a economia ao serviço das pessoas
devem promover o fortalecimento, melhoria, coordenação e expansão destas formas
de economia popular e produção comunitária. Isto implica melhorar os processos
de trabalho, prover de adequadas infraestruturas e garantir plenos direitos aos
trabalhadores deste sector alternativo. Quando Estado e organizações sociais
assumem, juntos, a missão dos “3 T”, ativam-se os princípios de solidariedade e
subsidiariedade que permitem construir o bem comum numa democracia plena e
participativa.
3.2
A segunda tarefa é unir os nossos povos no caminho da paz e da justiça.
Os povos do mundo
querem ser artífices do seu próprio destino. Querem caminhar em paz para a
justiça. Não querem tutelas nem interferências, onde o mais forte subordina o
mais fraco. Querem que a sua cultura, o seu idioma, os seus processos sociais e
tradições religiosas sejam respeitados. Nenhum poder efetivamente constituído
tem direito de privar os países pobres do pleno exercício da sua soberania e,
quando o fazem, vemos novas formas de colonialismo que afetam seriamente as
possibilidades de paz e justiça, porque «a paz funda-se não só no respeito
pelos direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos,
sobretudo o direito à independência».[3]
Os povos da
América Latina alcançaram, com um parto doloroso, a sua independência política
e, desde então, viveram já quase dois séculos duma história dramática e cheia
de contradições procurando conquistar uma independência plena.
Nos últimos anos,
depois de tantos mal-entendidos, muitos países latino-americanos viram crescer
a fraternidade entre os seus povos. Os governos da região juntaram seus
esforços para fazer respeitar a sua soberania, a de cada país e a da região
como um todo que, de forma muito bela como faziam os nossos antepassados,
chamam a «Pátria Grande». Peço-vos, irmãos e irmãs dos movimentos populares,
que cuidem e façam crescer esta unidade. É necessário manter a unidade contra
toda a tentativa de divisão, para que a região cresça em paz e justiça.
Apesar destes
avanços, ainda subsistem fatores que atentam contra este desenvolvimento humano
equitativo e limitam a soberania dos países da «Pátria Grande» e doutras
latitudes do Planeta. O novo colonialismo assume variadas fisionomias. Às
vezes, é o poder anônimo do ídolo dinheiro: corporações, credores, alguns
tratados denominados «de livre comércio» e a imposição de medidas de
«austeridade» que sempre apertam o cinto dos trabalhadores e dos pobres. Os
bispos latino-americanos denunciam-no muito claramente, no documento de
Aparecida, quando afirmam que «as instituições financeiras e as empresas
transnacionais se fortalecem ao ponto de subordinar as economias locais,
sobretudo debilitando os Estados, que aparecem cada vez mais impotentes para
levar adiante projetos de desenvolvimento a serviço de suas populações».[4]
Noutras ocasiões, sob o nobre disfarce da luta contra a corrupção, o
narcotráfico ou o terrorismo – graves males dos nossos tempos que requerem uma
ação internacional coordenada – vemos que se impõem aos Estados medidas que
pouco têm a ver com a resolução de tais problemáticas e muitas vezes tornam as
coisas piores.
Da mesma forma, a
concentração monopolista dos meios de comunicação social que pretende impor
padrões alienantes de consumo e certa uniformidade cultural é outra das formas
que adopta o novo colonialismo. É o colonialismo ideológico. Como dizem os
bispos da África, muitas vezes pretende-se converter os países pobres em «peças
de um mecanismo, partes de uma engrenagem gigante».[5]
Temos de
reconhecer que nenhum dos graves problemas da humanidade pode ser resolvido sem
a interação dos Estados e dos povos a nível internacional. Qualquer ato de
envergadura realizado numa parte do Planeta repercute-se no todo em termos
econômicos, ecológicos, sociais e culturais. Até o crime e a violência se
globalizaram. Por isso, nenhum governo pode atuar à margem duma
responsabilidade comum. Se queremos realmente uma mudança positiva, temos de
assumir humildemente a nossa interdependência. Mas interação não é sinônimo de
imposição, não é subordinação de uns em função dos interesses dos outros. O
colonialismo, novo e velho, que reduz os países pobres a meros fornecedores de
matérias-primas e mão de obra barata, gera violência, miséria, emigrações
forçadas e todos os males que vêm juntos... precisamente porque, ao pôr a
periferia em função do centro, nega-lhes o direito a um desenvolvimento
integral. Isto é desigualdade, e a desigualdade gera violência que nenhum
recurso policial, militar ou dos serviços secretos será capaz de deter.
Digamos NÃO às
velhas e novas formas de colonialismo. Digamos SIM ao encontro entre povos e
culturas. Bem-aventurados os que trabalham pela paz.
Aqui quero
deter-me num tema importante. É que alguém poderá, com direito, dizer: «Quando
o Papa fala de colonialismo, esquece-se de certas ações da Igreja». Com pesar,
vô-lo digo: Cometeram-se muitos e graves pecados contra os povos nativos da
América, em nome de Deus. Reconheceram-no os meus antecessores, afirmou-o o
CELAM e quero reafirmá-lo eu também. Como São João Paulo II, peço que a Igreja
«se ajoelhe diante de Deus e implore o perdão para os pecados passados e
presentes dos seus filhos».[6] E eu quero dizer-vos, quero ser muito claro,
como foi São João Paulo II: Peço humildemente perdão, não só para as ofensas da
própria Igreja, mas também para os crimes contra os povos nativos durante a
chamada conquista da América.
Peço-vos também a
todos, crentes e não crentes, que se recordem de tantos bispos, sacerdotes e
leigos que pregaram e pregam a boa nova de Jesus com coragem e mansidão,
respeito e em paz; que, na sua passagem por esta vida, deixaram impressionantes
obras de promoção humana e de amor, pondo-se muitas vezes ao lado dos povos
indígenas ou acompanhando os próprios movimentos populares mesmo até ao
martírio. A Igreja, os seus filhos e filhas, fazem parte da identidade dos
povos na América Latina. Identidade que alguns poderes, tanto aqui como noutros
países, se empenham por apagar, talvez porque a nossa fé é revolucionária,
porque a nossa fé desafia a tirania do ídolo dinheiro. Hoje vemos, com horror, como
no Médio Oriente e noutros lugares do mundo se persegue, tortura, assassina a
muitos irmãos nossos pela sua fé em Jesus. Isto também devemos denunciá-lo: dentro
desta terceira guerra mundial em parcelas que vivemos, há uma espécie de
genocídio em curso que deve cessar.
Aos irmãos e irmãs do movimento indígena
latino-americano, deixem-me expressar a minha mais profunda estima e
felicitá-los por procurarem a conjugação dos seus povos e culturas segundo uma
forma de convivência, a que eu chamo poliédrica, onde as partes conservam a sua
identidade construindo, juntas, uma pluralidade que não atenta contra a
unidade, mas fortalece-a. A sua procura desta interculturalidade que conjuga a
reafirmação dos direitos dos povos nativos com o respeito à integridade territorial
dos Estados enriquece-nos e fortalece-nos a todos.
3.3 A
terceira tarefa, e talvez a mais importante que devemos assumir hoje, é
defender a Mãe Terra.
A casa comum de
todos nós está a ser saqueada, devastada, vexada impunemente. A covardia em defendê-la
é um pecado grave. Vemos, com crescente decepção, sucederem-se uma após outra
cimeiras internacionais sem qualquer resultado importante. Existe um claro,
definitivo e inadiável imperativo ético de atuar que não está a ser cumprido.
Não se pode permitir que certos interesses – que são globais, mas não
universais – se imponham, submetendo Estados e organismos internacionais, e
continuem a destruir a criação. Os povos e os seus movimentos são chamados a
clamar, mobilizar-se, exigir – pacífica mas tenazmente – a adoção urgente de
medidas apropriadas. Peço-vos, em nome de Deus, que defendais a Mãe Terra.
Sobre este assunto, expressei-me devidamente na carta encíclica Laudato si’.
4. Para
concluir, quero dizer-lhes novamente: O futuro da humanidade não está
unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites.
Está fundamentalmente nas mãos dos povos; na sua capacidade de se organizarem e
também nas suas mãos que regem, com humildade e convicção, este processo de
mudança. Estou convosco. Digamos juntos do fundo do coração: nenhuma família
sem teto, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhum
povo sem soberania, nenhuma pessoa sem dignidade, nenhuma criança sem infância,
nenhum jovem sem possibilidades, nenhum idoso sem uma veneranda velhice.
Continuai com a vossa luta e, por favor, cuidai bem da Mãe Terra. Rezo por vós,
rezo convosco e quero pedir a nosso Pai Deus que vos acompanhe e abençoe, que
vos cumule do seu amor e defenda no caminho concedendo-vos, em abundância,
aquela força que nos mantém de pé: esta força é a esperança, a esperança que
não decepciona. Obrigado! E peço-vos, por favor, que rezeis por mim.
[1] JOÃO XXIII, Carta enc. Mater et Magistra
(15 de Maio de 1961), 3: AAS 53 (1961), 402.
[2] PAULO VI, Carta enc. Popolorum progressio,
14.
[3] PONTIFÍCIO CONSELHO «JUSTIÇA E PAZ»,
Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 157.
[4] V CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO
LATINO-AMERICANO E DO CARIBE (2007), Documento de Aparecida, 66.
[5] JOÃO PAULO II, Exort. ap. pós-sinodal
Ecclesia in Africa (14 de Setembro de 1995), 52: AAS 88 (1996), 32-33. Cf.
IDEM, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 22: AAS 80
(1988), 539.
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