Se os excelsos Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) quiserem conhecer a natureza real
das delações premiadas, devem convidar delatores para uma audiência privada,
sigilosa, para que relatem o ambiente da prisão de Curitiba e o papel dos
procuradores – não apenas os de lá mas aqueles ligados à Procuradoria Geral da
República.
O medo os mantêm
calados, mas, daqui a alguns anos, depois de cumpridas as penas, essas
histórias virão à tona e mancharão definitivamente a imagem da Justiça nesse
período.
Não se sabe se o
fato de ter sido exposto na delação da JBS, mas o nome de Marcelo Miller sempre
é citado como o batedor, o sujeito incumbido de espalhar o terror nos
prisioneiros para induzi-los a delatar.
E não havia
preferências. De criminosos óbvios e executivos sem nenhuma noção das
ilegalidades cometidas, todos recebiam o tratamento da tortura psicológica até
abrir o bico para dizer o que os procuradores queriam que dissessem.
Havia as
conversas preliminares, nas quais os procuradores infundiam terror, os anos de
condenação a que estariam sujeitos.
Se o prisioneiro
tivesse noção de direito e alegasse que sua atuação nada tinha de criminosa,
era contestado. O procurador alegava mudança na jurisprudência, dizia que a
Justiça sempre ficaria do lado da Lava Jato e apontava o vingador Sérgio Moro
segurando a corda da guilhotina.
As condições eram
as mesmas. Especialmente no caso da delação maciça da Odebrecht, a condição
para uma delação favorável seria admitir que cometeu crime e, de alguma forma,
envolver Lula.
Os peixes mais
graúdos tinham outros caminhos, através dos advogados que integravam a
milionária cadeia produtiva da indústria da delação.
Nenhum governante
minimamente informado trata de dinheiro. Fernando Henrique Cardoso sabia dos
financiamentos de campanha, assim como Lula, Fernando Collor e outros
presidentes. Não há um caso sequer de presidente negociando propinas ou
financiamentos. O caso mais explícito conhecido até agora é o do inacreditável
Michel Temer indicando o seu caixa para Joesley Batista. Assim, os candidatos a
delatores tinham que se virar ou fazendo afirmações inverossímeis, ou
afirmações óbvias não acompanhadas de provas.
A pressão maior
era sobre familiares. Se o prisioneiro tivesse uma empresa limitada e colocasse
um filho como sócio – por exigência da legislação –, ainda que com participação
irrisória, o procurador chantagearia, ameaçaria envolver o filho. Várias
delações foram obtidas dessa maneira.
O juiz que entendia de medicina
Os exemplos
desses tempos de terror não se esgotam na Lava Jato. Ainda há muito a se
escrever sobre o período em que o espírito de Torquemada assumiu a presidência
do Supremo Tribunal Federal, na figura de Joaquim Barbosa, na AP 470, do
“mensalão”.
O sadismo de
Joaquim Barbosa beirava o desequilíbrio. Sérgio Moro e procuradores da Lava
Jato exercem suas arbitrariedades friamente, têm método, sabem quando usar a
mídia, sabem quando atender os advogados mais próximos, usam o terror para fins
políticos explícitos, sempre de um olho na repercussão midiática.
Já Joaquim
Barbosa não atuava por motivação política nem para atender à demanda de
escândalos da mídia. Era pelo prazer, pelo orgasmo de infligir sofrimento, em
uma revanche diuturna contra a vida. É o exemplo maior do espaço que a guerra
midiática abriu para as figuras mais desequilibradas, da malandragem explícita
do MBL, às personalidades mais sádicas do Judiciário.
O episódio mais
emblemático envolveu a figura unanimemente reconhecida como a mais inocente, de
José Genoíno.
Na condição de
presidente do PT, Genoíno assinou contratos de empréstimo do partido com o
Banco Rural. Até Ministros que votaram por sua condenação reconheceram que a
assinatura foi de boa fé.
Condenado, remetido à papuda, Genoíno ficou
sob a guarda do juiz Ademar Silva de Vasconcelos, da Vara de Execuções Penais
do Distrito Federal. Barbosa o considerou condescendente demais e
pressionou o presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e
Territórios, Dácio
Vieira, para transferir o processo para o juiz substituto
Bruno André Silva Ribeiro.
A atuação
conjunta de Barbosa e Ribeiro é a repetição de movimentos psicológicos
similares em torcidas de futebol ou no efeito-manada que une linchadores, a
estranha solidariedade que junta personalidades desequilibradas em um ritual
sádico.
Certa manhã, na
Papuda, o médico José Ricardo Teixeira examinou Genoíno e notou alteração no
seu eletrocardiograma. Genoíno havia sido transportado do Hospital Sírio
Libanês para a Papuda, logo após uma cirurgia de alto risco.
Telefonou para a
gerente da administração penitenciária, Larissa Feitosa, responsável pela
Papuda, que imediatamente informou o Secretário de Saúde do Distrito Federal da
necessidade de transferir Genoíno para um hospital, já que o presídio não tinha
condições de atender a emergências cardíacas.
Estava a caminho
da Papuda, quando o juiz Bruno lhe telefonou:
·
Que história é essa de encaminhar o Genoíno.
Ele é o MEU preso!
·
Doutor, estou indo para lá para ver a situação
dele.
E Bruno:
·
Pois eu também.
Chegando a
Papuda, o juiz Bruno entrou na cela de Genoíno. No corredor, ficaram Larissa, o
médico, o vice-diretor, os seguranças.
Bruno saiu da
cela com o diagnóstico pronto:
·
Basta uma dieta.
E apregoou seus
conhecimentos de medicina: tinha sido técnico em enfermagem.
Saiu de lá, e o
médico José Ricardo insistiu com Larissa:
·
Minha conduta é encaminhar.
Foi-lhe
recomendado para ficar de olho em Genoíno e reavaliar.
No dia seguinte,
quando Larissa chegou na Papuda, o médico tinha feito outro eletroeletrônico, e
o quadro tinha piorado. Havia agora três alterações.
Larissa não
vacilou. Ligou para o Secretário de Saúde informando que iria encaminhar
Genoíno para uma clínica especializada. Imediatamente o Secretário ligou para
diretora do Incor. Larissa ligou em seguida, informando sobre o quadro de
Genoíno. A médica não vacilou:
·
Não pense duas vezes, traga o paciente.
Quando chegou o
coordenador do sistema penitenciário, para coordenar a reunião que deveria
decidir sobre a transferência. Nada havia a decidir.
·
A decisão não é de vocês, é decisão médica,
informou Larissa.
Entrou na cela
para comunicar a decisão a Genoíno.
·
Pode ser que o senhor chegue lá e não tenha
nada ou que esteja infartando. Estamos tratando o senhor do mesmo modo que
trataríamos qualquer cidadão.
Genoíno concordou
com a transferência.
Foi colocado em
uma viatura descaracterizada. Larissa ia no banco da frente, ajudando a driblar
os cones da penitenciária.
No caminho, ligou
o técnico em
enfermagem Bruno.
·
Que história é essa?
·
Doutor Bruno, deu três alterações.
O juiz
Bruno rumou, então, para a Papuda e informou que ele havia dado autorização
para retirar Genoíno. Assim que terminou o atendimento, Joaquim Barbosa ordenou
sua volta à prisão.
Daqueles tempos
cabeludos, restam demonstrações inesquecíveis de coragem e algumas exceções de
bom jornalismo. Como a do advogado Luiz Fernando Pacheco, que ousou enfrentar
Barbosa no próprio STF, em um episódio que descompensou de tal modo a
personalidade complexa de Barbosa, que apressou sua aposentadoria; do
jornalista Felipe Recondo, que ousou fazer jornalismo em plena tempestade
midiática. E Larissa Feitosa, exemplo maior.
Cada qual, em
determinado momento, cumpriu com suas obrigações em relação à profissão que
abraçaram.
A repetição
indefinida de casos similares no Judiciário mostra muito mais que coincidência.
É resultado direto de uma epidemia social cujo vírus foi o ódio alimentado
diuturnamente por uma campanha midiática irresponsável.
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