segunda-feira, 25 de junho de 2018
Carta de Karl Marx para Abraham Lincoln
Senhor, felicitamos o povo americano pela sua
reeleição por uma larga maioria. Se a palavra de ordem reservada da sua primeira
eleição foi resistência ao Poder dos Escravistas [Slave Power], o grito de guerra triunfante da sua reeleição é Morte
à Escravatura.
Desde o começo da titânica contenda americana, os
operários da Europa sentiram instintivamente que a bandeira das estrelas
carregava o destino da sua classe. A luta por territórios que desencadeou a
dura epopeia não foi para decidir se o solo virgem de regiões imensas seria
desposado pelo trabalho do emigrante ou prostituído pelo passo do capataz de
escravos?
Quando uma oligarquia de 300 000 proprietários de
escravos ousou inscrever, pela primeira vez nos anais do mundo, “escravatura”
na bandeira da Revolta Armada, quando nos precisos lugares onde há quase um
século pela primeira vez tinha brotado a ideia de uma grande República
Democrática, de onde saiu a primeira Declaração dos Direitos do Homem (2) e de
onde foi dado o primeiro impulso para a revolução Europeia do século XVIII;
quando, nesses precisos lugares, a contrarrevolução, com sistemática
pertinácia, se gloriou de prescindir das “ideias vigentes ao tempo da formação
da velha constituição” e sustentou que “a escravatura é uma instituição
beneficente”, [que], na verdade, [é] a única solução para o grande problema da
«relação do capital com o trabalho” e cinicamente proclamou a propriedade sobre
o homem como “a pedra angular do novo edifício” — então, as classes operárias
da Europa compreenderam imediatamente, mesmo antes da fanática tomada de
partido das classes superiores pela fidalguia [gentry] Confederada ter dado o seu funesto aviso, que a rebelião
dos proprietários de escravos havia de tocar a rebate para uma santa cruzada
geral da propriedade contra o trabalho e que, para os homens de trabalho,
[juntamente] com as suas esperanças para o futuro, mesmo as suas conquistas
passadas estavam em causa nesse tremendo conflito do outro lado do Atlântico.
Por conseguinte, suportaram pacientemente, por toda a parte, as privações que
lhes eram impostas pela crise do algodão (3), opuseram-se entusiasticamente à intervenção
pró-escravatura — importuna exigência dos seus superiores — e, na maior parte
das regiões da Europa, contribuíram com a sua quota de sangue para a boa causa.
Enquanto os operários, as verdadeiras forças [powers] políticas do Norte, permitiram
que a escravatura corrompesse a sua própria república, enquanto perante o Negro
— dominado e vendido sem o seu consentimento — se gabaram da elevada
prerrogativa do trabalhador de pele branca de se vender a si próprio e de
escolher o seu próprio amo, foram incapazes de atingir a verdadeira liberdade
do trabalho ou de apoiar os seus irmãos Europeus na sua luta pela emancipação;
mas esta barreira ao progresso foi varrida pelo mar vermelho da guerra civil
(4).
Os operários da Europa sentem-se seguros de que,
assim como a Guerra da Independência Americana (5) iniciou uma nova era de
ascendência para a classe média, também a Guerra Americana Contra a Escravatura
o fará para as classes operárias.
Consideram uma garantia da época que está para vir
que tenha caído em sorte a Abraham Lincoln, filho honesto da classe operária,
guiar o seu país na luta incomparável pela salvação de uma raça agrilhoada e
pela reconstrução de um mundo social.
Karl
Marx – 22-29 de novembro de 1864.
Notas
1 — A Mensagem da Associação
Internacional dos Trabalhadores ao presidente Abraham Lincoln dos Estados
Unidos, por ocasião da sua reeleição, foi redigida por Marx por decisão do
Conselho Geral. No auge da Guerra Civil nos Estados Unidos esta mensagem teve
uma grande importância. Sublinhou a enorme importância da guerra contra a
escravatura na América para os destinos de todo o proletariado internacional.
Apoiando todos os movimentos progressistas e democráticos, Marx e Engels
educavam no proletariado e nos seus elementos de vanguarda na Internacional uma
atitude verdadeiramente internacionalista em relação à luta dos povos oprimidos
pela sua libertação.
2 — Trata-se da Declaração de
Independência, adotada em 4 de julho de 1776 no Congresso de Filadélfia pelos
delegados das 13 colônias britânicas da América do Norte; o congresso proclamou
a separação das colônias norte-americanas na Grã-Bretanha e a formação de uma
república independente: os Estados Unidos da América. Nesse documento foram
formulados princípios democráticos burgueses tais como a liberdade da pessoa, a
igualdade dos cidadãos perante a lei, a soberania do povo, etc. Todavia, a
burguesia e os grandes proprietários fundiários americanos violaram desde o
início os direitos democráticos proclamados na Declaração, afastaram as massas
populares da vida política e mantiveram a escravatura, que privava os negros,
que constituíam uma parte importante da população, dos direitos mais
elementares da pessoa humana.
3 — A crise do algodão foi
provocada pela cessação do fornecimento de algodão vindo da América, em virtude
do bloqueio dos Estados escravistas do Sul pela Marinha dos nortistas durante a
Guerra Civil. Uma grande parte da indústria algodoeira da Europa ficou
paralisada, o que se refletiu duramente na situação dos operários. Apesar de
todas as privações, o proletariado europeu apoiou decididamente os Estados do
Norte.
4 — A Guerra Civil na América
(1861-1865) opôs, nos Estados Unidos, os Estados industriais do Norte e os
Estados escravistas do Sul, que se rebelaram contra a abolição da escravatura.
A classe operária da Inglaterra opôs-se à política da burguesia inglesa, que
apoiava os plantadores escravistas, e impediu a ingerência da Inglaterra na
Guerra Civil nos Estados Unidos.
5 — A Guerra da Independência
das colônias inglesas na América do Norte (1775-1783) contra a dominação
inglesa foi causada pela aspiração da nação burguesa americana, em formação, à
independência e à supressão dos obstáculos que entravavam o desenvolvimento do
capitalismo. Em resultado da vitória dos norte-americanos foi criado um Estado
burguês independente: os Estados Unidos da América.
Fonte: “Obras Escolhidas” (Editorial Avante! /Edições Progresso
Lisboa-Moscou, 1982, tradução de José Barata-Moura), de Karl Marx. A carta foi
escrita entre 22 e 29 de novembro de 1864, em plena Guerra Civil Americana. Foi
publicada em “The Bee-Hive Newspaper”, nº 169, de 7 de janeiro de 1865.
domingo, 24 de junho de 2018
A utopia de Piketty – por Slavoj Žižek
Le Capital au XXIe siècle é um livro essencialmente utópico. Por que?
Por conta de sua modéstia. Thomas Piketty percebe a tendência inerente do
capitalismo à desigualdade social, de tal forma que a ameaça à democracia
parte do interior da própria dinâmica capitalista. Até aí tudo bem, estamos de
acordo. Ele vê o único ponto luminoso da história do capitalismo entre as
décadas de 30 e de 60, quando essa tendência à desigualdade era controlada, com
um Estado mais forte, Welfare State etc. Mas reconhece ainda
que as condições para isso foram – e eis a trágica lição do livro –
Holocausto, Segunda Guerra Mundial e crise. É como se estivesse implicitamente
sugerindo que nossa única solução viria com uma nova guerra mundial, ou algo
assim!
Mas por que digo que ele é utópico? De certa forma
ele não está errado. A tentativa de superação do capitalismo no século XX de
fato não funcionou. O problema é que ele então acaba implicitamente
generalizando isso. Piketty aceita, como um bom keynesiano, que o
capitalismo é, ao fim e ao cabo, o único jogo na praça; que todas as
alternativas a ele acabaram em fiasco, e que portanto temos de
preservá-lo. Ele é quase que uma versão social-democrata do Peter Mandelson, o
príncipe escuro de Tony Blair que disse que na economia somos todos thatcheritas,
e que tudo que podemos fazer é intervir no nível da distribuição, um pouco mais
para a saúde, para a educação e assim por diante.
Thomas Piketty é utópico porque ele simplesmente
propõe que o modo de produção permaneça o mesmo: vamos só mudar a distribuição
implementando – e não há nada de muito original nessa ideia – impostos
radicalmente mais altos.
Aqui começam os problemas. Veja, não digo que não
devemos fazer isso, só insisto que fazer apenas isso não
é possível. Essa é a utopia dele: que basicamente podemos ter o capitalismo de
hoje, que como maquinaria permaneceria basicamente inalterado: “opa opa, quando
você lucra bilhões, aqui estou eu, imposto, me dê 80% de sua fatura”. Não acho
que isso seja factível. Imagine um governo fazendo isso em nível mundial. E
Piketty está ciente que isso deve ser feito globalmente, porque se fizer em um
só país, o capital se desloca para outro lugar e assim por diante. Meu
ponto é que se você conseguir imaginar uma organização mundial em que a
medida proposta por Piketty pode efetivamente ser realizada, então os problemas
já estão resolvidos. Então você já tem uma reorganização política total, você
já tem um poder global que pode efetivamente controlar o capital. Ou seja:
nós já vencemos!
Então acho que nesse sentido Piketty trapaça nas
cartas: o verdadeiro problema é o de criar as condições para que sua medida
aparentemente modesta seja atualizada. E é por isso que, volto a dizer, não sou
contra ele, ótimo, vamos cobrar 80% de imposto dos capitalistas. O que estou
dizendo é que se você fosse fazer isso, logo se daria conta de que isso levaria
a mudanças subsequentes. Digo que é uma verdadeira utopia – e isso é o que
Hegel queria dizer com pensamento abstrato: imaginar que você pode tomar uma
medida apenas e nada mais muda. É claro que seria ótimo ter o capitalismo de
hoje, com todas suas dinâmicas, e só mudar ele no nível da redistribuição – mas
isso é que é utópico. Não se pode fazer isso pois uma mudança na
redistribuição afetaria o modo de produção, e consequentemente a própria
economia capitalista. Às vezes a utopia não é anti-pragmática. Às vezes
ser falsamente modesto, ser um realista, é a maior utopia.
É como – e perdoem-me o paralelo esdrúxulo – um
certo simpatizante nazista que disse basicamente: “Ok, Hitler está certo, a
comunidade orgânica e tal, mas porque ele não se livra logo desse asqueroso
antissemitismo”. E houve uma forte tendência, inclusive dentre os judeus – e
isso é realmente uma história curiosa –, houve uma minoria de judeus
conservadores que inclusive se dirigiam a Hitler dessa maneira: “Pôxa,
concordamos com você, unidade nacional e tal, mas por que você nos odeia tanto,
queremos estar com você!” Isso é pensamento utópico. E é aqui que entra o velho
conceito marxista de totalidade. Tudo muda se você abordar
os fenômenos com a perspectiva da totalidade.
* Extraído da conferência “Towards
a Materialist Theory of Subjectivity“, no Birbeck Institute for the
Humanities. A
tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.
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