sábado, 25 de fevereiro de 2017

Fotografia - por Asier Relâmpago Estúdio (Freepik)

O mito do 'investidor estrangeiro' – por André Araújo (Jornal GGN)

     Alan Greenspan, o "maestro" do Federal Reserve System por 18 anos, passava horas na banheira lendo estatísticas da economia real: geladeiras, yougurt, pneus, caminhões, pão de hambúrguer, todos dados da vida das pessoas lhe interessam. Tinha especial fixação por telhados, quantos telhados foram vendidos na semana (nos EUA a construção se faz por conjuntos e não por peças). Era por estes indicadores que Greenspan tirava o pulso da economia que importava. Greenspan, que está com 90 anos, proporcionou o maior período contínuo de prosperidade dos EUA no pós-guerra, embora lhe atribuam culpa da crise de 2008, decorrência exatamente do excesso de confiança nessa prosperidade longa demais.

     No Brasil, no oceano de ignorância sobre economia que domina a grande mídia, os únicos indicadores valorizados são os de câmbio e bolsa. Os comentaristas da Globonews são os mais rasos, para eles a economia se resume em câmbio e bolsa e, nesta última, o que interessa é o mítico "investidor estrangeiro". O padrão se repete em outras mídias, como a Jovem Pan, onde sua comentarista só conhece câmbio e bolsa, a economia se resume nisso. Na Globonews o comentarista Donny di Nuccio, a qualquer observação sobre economia, replica "Ah, mas a bolsa subiu". Pronto, esta é para eles TODA a economia. Na FOLHA de 19 de fevereiro de 2017, pag.A 23, um artigo "Mercado especula melhor nota do Brasil" mostra esse viés de considerar o mercado financeiro como único indicador da economia brasileira.

     No passado longínquo do início da mídia econômica no Brasil, com o jornal Observador Econômico e Financeiro, a revista BANAS, os temas eram a produção de café, de cana, de aço, de cimento, de tijolos, de telhas, cacau, de sisal, de construção de rodovias, usinas, aeroportos, havia comentaristas especializados em agropecuária, como Mario Mazzei Guimarães, comentava-se com detalhes e atenção a produção de carne e de leite, de tubos de ferro e de concreto para saneamento, de tecidos de algodão, de farinha de trigo. Economia é isso e o Brasil só crescerá quando esses fatores voltarem a ser o centro da economia como foram nos anos, em que o Brasil cresceu e se tornou a 5ª economia do mundo, saindo de um País essencialmente agrícola para um país industrial no pós-guerra.

     A partir do Plano Real e com o domínio dos "economistas de mercado" sobre a política econômica, fixou-se que a única coisa que faz andar a economia é a bolsa e, nesta, o "investidor estrangeiro", se ele não aparecer afunda a economia, se ele trouxer dinheiro para cá, está tudo indo bem na economia. Esse mítico "investidor " é o único que os "economistas de mercado" conhecem, os fundos de investimento estrangeiros tipo BlackRock, Fidelity, Templeton que operam no Brasil via parceiros daqui e com isso garantem empregos para alguns desses "economistas de mercado", eles são as únicas fontes de informação da mídia conservadora, que é quase toda a imprensa, rádio e tv.

     Ao usar exclusivamente essa régua, os comentaristas esquecem da enorme "economia real" do País, onde está o crescimento, o emprego, a produção e o dinamismo do processo que faz as famílias sobreviverem e ter perspectivas de futuro para seus filhos.

     Ao comentar câmbio e bolsa, os comentaristas da mídia oficialista tampouco aprofundam a informação. O dólar está caindo quando devia subir? Porque? Onde está a análise? Nunca vi nesses comentaristas qualquer menção ao centro do problema do câmbio, a política cambial do Banco Central, que é a de intervenção "suja" (não declarada) e que em 2016 foi o motivo central para a derrubada do dólar, a um custo estratosférico, só no primeiro semestre de 2016 os swaps cambiais deram perda de R$ 207 bilhões ao Banco Central, mais que todo o déficit do orçamento federal que os "economistas de mercado" consideram o maior problema do Brasil. Sobre esse custo monumental nunca ouvi um mísero comentário dos jornalistas de economia da grande mídia, em primeiro lugar porque não correlacionam cotação do dólar com política cambial e, em segundo, se conhecem o "background" não convém comentar porque isso seria uma crítica ao Banco Central, que eles respeitam como o Vaticano da moeda, infalível e inatingível.

     Não comentam, ou só falam marginalmente, do "carry trade", dinheiro emprestado nos EUA a 2% ao ano e aplicado aqui em títulos do Tesouro a 13%, além do lucro do diferencial de juros. Desde que começou a gestão da atual equipe econômica, esse tipo de especuladores levou para casa também o lucro cambial fantástico, dólar que entra a 3,60 e volta a 3,10 graças à generosidade do Banco Central, mas quem e porque comanda este espetáculo? Aguardam-se análises dos comentaristas da grande imprensa. Muita coisa que circula no mercado por alguma razão a imprensa não reporta e são fatos importantes da economia.

     Além da atuação catastrófica do Banco Central para empurrar o dólar para baixo visando "trazer a inflação para o centro da meta" há outro personagem que os comentaristas da Globonews veneram: o "investidor estrangeiro". Quem é ele?

     O "investidor estrangeiro" é o mesmo personagem mítico que na Itália devastada pela miséria no imediato pós-guerra via no "turista americano". Nos escombros de Nápoles, um "turista americano" era visto como salvador do almoço do dia. A mesma cafonice impera na fala dos comentaristas ignorantes de hoje. Veem no "investidor estrangeiro" a salvação do Brasil sem realmente saber que é esse Mandrake que é tão reverenciado como fiel da balança da nossa estagnada economia.

     O "investidor estrangeiro" de hoje, adorado pela Globonews, é um fundo especulativo da pior espécie que entra e sai da bolsa e das apostas em juros e índices, é o mais destrutivo tipo, o mais deletério, o mais inútil dos personagens em uma economia em desintegração de seus reais fatores de crescimento, o investimento privado nacional das pequenas e médias empresas que anseiam por crescer e que tem hoje tais limitações que muitas definham e morrem, para essas o BNDES abre linhas de crédito que só uma carta de fiança do Banco Rothschild pode atender em termos de garantia, higidez de balanço e certidões fiscais.

     Tampouco chama a atenção a falta do fundamental investimento público, primeira vítima do ajuste fiscal "à outrance" e cuja falta é uma das causas da recessão.

     Fundos abutres e especulativos cujo modelo universal é o padrão Soros (Quantum Fund) são hoje o arroz com feijão da bolsa brasileira, é para eles que se pratica toda política cambial, não é para o exportador de soja, de frango e de carne bovina, o alvo a agradar é o fundo especulativo de Nova York, fundos esses que produziram 49 bilionários na lista da revista FORBES, que vivem exclusivamente de especulação e o Brasil é um dos seus territórios preferidos porque garante saída livre sem questionamentos, o capital entra e sai como um turista do Carnaval carioca. Uma porta rotatória que gira sem parar.

     Quando entra o "investidor estrangeiro" fundo especulativo, soltam rojões, mas quando sai "boca fechada", não é notícia. O mercado de câmbio no Brasil é inteiramente livre, entra e sai como e quando quiser, o investimento financeiro pode sair no mesmo dia em que seus donos decidem, bastam cliques de botão de computador. Já o investimento produtivo, em fábricas, não pode sair rápido e fácil, é preciso vender os ativos, fazer caixa para depois remeter, isso leva meses ou anos. Então o investimento produtivo é sólido, é o que interessa ao País, por isso a separação conceitual entre o financeiro e o produtivo é fundamental, nada disso é sequer de leve noticiado e muito menos analisado. A conexão do "sistema" Banco Central + mercado financeiro (uma coisa só) é exclusivo com Wall Street e não com os polos de economia produtiva dos grandes países.

     O "investimento direto no País" IDP, tratado com tapete vermelho, quem é ele?

     Quase todo IDP que chega é para COMPRA de empresas no Brasil, não é para novas fábricas, usinas ou shoppings. A razão? Como a economia está em recessão, causada pela política monetária recessiva do BC, o preço dos ativos no Brasil caiu muito, os empresários nacionais estão vendendo suas empresas e negócios, além de venda de concessões, privatizações e demais ativos, muitas vezes para pagar dívidas, como os das empreiteiras alvos da Lava Jato, que estão vendendo bens acumulados ao longo de décadas. O BC e seus porta vozes na mídia comemoram essas entradas que têm um efeito econômico perverso, esses IDP serão base futura de remessas de dividendos e lucros, o chamado PASSIVO EXTERNO do País, soma dos IDP mais dívida externa pública e privada mais contratos de leasing que são outra forma de passivo. O estoque registrado no BC já chega perto de UM TRILHÃO DE DÓLARES, um valor tão grande como o da dívida pública interna, todo esse passivo exige serviço de juros, dividendos, lucros ou parcelas de leasing, uma hipoteca sobre o País que exige cada vez divisas para remessas.

     A conta de "serviços" está ficando perigosamente alta e nela estão as remessas de juros, dividendos, leasing e royalties. Em 2016, todo o saldo da balança comercial, US$ 45 bilhões, não foi suficiente para pagar as remessas, ainda faltaram US$ 24 bilhões, que foram cobertos pelas entradas do investimento direto, mas isso significa vender a casa para pagar o almoço. O IDP entra e forma base de novas remessas futuras e o valor dele é gasto para sempre, estamos trocando ativos do País por despesas que nunca mais voltam, quando entra o IDP tudo é festa, mas depois ele serve de motor para novas remessas eternas.

     Ao contrário do período pré-Plano Real, o BC não informa ao público, embora sejam números disponíveis para especialistas, qual é o passivo externo, qual é a dívida pública externa e a dívida privada externa do País. NINGUÉM COMENTA esses dados cruciais, muito mais importantes do que quanto gasta turista no exterior no mês, dado de escassa relevância a não ser para mostrar que o dólar está barato demais e está sendo esbanjado nos outlets de Miami.

     O que importa são DADOS MACRO do passivo externo, que ninguém comenta e são esses os dados importantes e não números pontuais mensais disto ou daquilo.

     A dívida externa pública, que inclui Petrobras, BNDES e Banco do Brasil e as demais estatais, mesmo sem garantia formal, a dívida externa de estatal implica em responsabilidade implícita da União, a dívida pública privada também afeta o risco País pois se um grande banco ou corporação privada deixa de pagar um compromisso de imediato acende luz vermelha sobre todo o risco País, hoje a DÍVIDA EXTERNA PRIVADA é considerável, são esses os dados cruciais da economia MACRO e não o que os brazucas gastam em Miami em Janeiro ou o que os estrangeiros gastam aqui no Carnaval, temas muito comentados em toda a mídia como se isso fosse de enorme importância.

     E o exemplo dos dólares da China para pagar a compra da CPFL e da ENEL italiana para pagar a compra da CELG, entradas recentes, não geram um único emprego no Brasil, ao contrário, quem compra geralmente faz um enxugamento no quadro do pessoal. Mais ainda, essas compras exigirão remessas já em 2018, um ativo que até então não gerava gasto externo de divisas, agora passa a ser fonte de remessa.

     Tampouco se informa o RETORNO de capital investido, só o que entra, pode até haver déficit na conta de investimentos do exterior, o que não se explicita para chamar a atenção apenas para a entrada e não para a saída de capital com o intuito de demonstrar a "confiança na política econômica", operação que conta com toda a colaboração da mídia apoiadora da máxima "o que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde". Sem essa visão global não vale nada dizer o que entrou em Janeiro.

     Para mostrar a montanha de equívocos que se informa a população, a agência Fitch, uma das três agências globais de rating, já anunciou que pode rebaixar a nota do Brasil, que já está dois graus abaixo do nível de investimento, "porque a economia não cresce". Isso é revelador! E não adianta desqualificar as agências, quando deram grau de investimento se soltaram rojões na Av. Faria Lima em SP e na Rua Dias Ferreira no Leblon, catedrais dos "economistas de mercado" e suas gestoras de fortunas, a "turma da bolsa".

     A Standard & Poor´s também mantém o viés negativo, não se impressionam com resultados mensais. Com todas as vitórias cantadas em prosa e verso pela mídia mistificadora como porta voz da equipe econômica, as agências não se deixam enganar, "onde está o crescimento?" As agências têm um olhar de longo prazo sobre a estabilidade do País, uma mega recessão com enorme desemprego mostra instabilidade política e social futura ou o BC acha que só tratar da inflação é suficiente?

     Todo esse foco no "investidor estrangeiro" quase 100% de fundos e não de empresas da produção é um vício inacreditável da mídia brasileira. Porque não se interessam no crescimento ou fechamento das milhares de médias empresas do interior, são essas que realmente empregam gente, que geram riqueza sólida, que dão lastro à economia e que podem tirar o pais da recessão, não é o fundo BlackRock e nem o fundo Templeton, esses compram ações velhas que acham baratas visando vendê-las daqui a seis meses e levar o lucro de volta, não criam um mísero emprego e nem tem essa vocação.

     Boa parte do investimento que entra é especulativo, a economia não cresce, o PIB de 2016 vai registrar queda de, 4,3%, em cima de 3,8% de 2015, não adianta as vanglórias do BC, podem enganar os daqui, mas não engana os de fora. O Brasil não cresce por causa da política recessiva do BC, para as agências de rating não adianta nada "a inflação no centro da meta", se outros fatores centrais da economia indicam problemas de maior dificuldade de solução com a retração do PIB e o altíssimo desemprego, maior entre todos os países BRIC.

     O que vale é crescimento com ou sem inflação, esse é o valor real do mundo real, fora das planilhas, é o crescimento que atrai capital ótimo e dinamizador, aliado do País a longo prazo.

     O investidor que secularmente fez o crescimento brasileiro não é o estrangeiro. O Brasil se desenvolveu realmente de 1930 até 1980, 50 anos, quando o crescimento médio foi o maior do mundo entre todos os países. O Brasil cresceu pelo seus empreendedores que construíram fábricas, mesmo com inflação e déficits enormes do orçamento federal, nasceram linhas de ônibus interestaduais, fazendas de café, cana, soja, gado, armazéns beneficiadores de grãos, empresas engarrafadoras de gás de cozinha, fábricas de doces, de bebidas, de massas, retíficas de motores, indústrias mecânicas, de material elétrico, fiação e tecelagem de algodão, de seda, cerâmicas, olarias, fábricas de enxadas e arados, sem falar do imenso parque automotivo, que inclui tratores, do parque de bens de capital, foi daí que surgiu o crescimento e os empregos do Brasil, de suas grandes empreiteiras que fizeram o maior parque hidroelétrico do mundo, da Petrobras em expansão permanente de 1955 a 1990.

     O capital estrangeiro foi sempre subsidiário, importante, mas nunca o eixo da economia brasileira, me referindo ao capital de produção, o capital financeiro, esse que a mídia gosta, jamais foi bom para o Brasil, aliás foi um aspirador de dinheiro para fora do Brasil.

     Hoje a mídia econômica se esfrega nesse "investidor estrangeiro", roupa dentro da qual se disfarçam também muitos brasileiros que usam pessoas jurídicas de paraísos fiscais para ter maior proteção para seu capital aqui, portanto parte desse "investidor estrangeiro" é brasileiro disfarçado, um fato perfeitamente conhecido do mercado mas que a mídia tradicional jamais menciona, talvez porque alguns de seus personagens se enquadram no modelo.

     A coluna econômica da grande imprensa só terá algum valor quando seus comentaristas começarem a falar de tijolos e azulejos, de produção de leite, de venda de pneus e de sapatos, esquecendo a miséria intelectual de "câmbio e bolsa" que vale tanto como palpite de jogo de futebol de 3ª divisão e principalmente quando deixarem de ser meras correias de transmissão de mensagens do boletim Focus e de suas "bocas de varal", os "economistas de mercado" sempre à disposição para entrevistas, do meio dia à meia noite, repetindo os mesmos bordões acríticos e dentro de uma cartilha ensaiada.

     Uma nova cruzada do Ministro da Fazenda para se viabilizar como candidato à Presidência em 2018 espalha a noção de que "a recessão acabou" (entrevista de 22/02/2017 na Globonews) o que é um delírio, uma recessão de três anos não acaba em um mês, faltou avisar as 12 milhões de famílias dos desempregados que já podem ir correndo fazer compras de novas Tvs. Uma recessão acaba quando o desemprego cai de 12% para 5% e não há sinal algum de que isso esteja ocorrendo, MERCADO FINANCEIRO não é balizador de começo ou fim de recessão e é esse o único que o Ministro da Fazenda conhece, mas parece que o Ministro está conseguindo convencer alguns jornalistas de que sua fantasia é real, mesmo com os índices de popularidade do Governo em níveis baixíssimos.

     O debate de economia no Brasil precisa sair dos blogs corajosos e entrar na mídia tradicional, economia é hoje o fenômeno mais importante da vida da população que tem o direito de ser melhor informada sobre a realidade e não ouvir narrativas montadas sobre o nada.

Fotografia - por Ryan McGilchrist (Magdeleine.co)

O psicanalista das massas – por Andrea Dip (Publica)

     Pouco a pouco, as lonas pretas vão se abrindo sobre as estruturas de bambu e ferro, formando as tendas que passam a abrigar colchões, cadeiras e um fogão. Pessoas que saem do trabalho reduzem a velocidade dos passos, curiosas para saber o que interrompe o trânsito na movimentada esquina da avenida Paulista com a rua Augusta – no coração de São Paulo – naquele fim de tarde de 15 de fevereiro. No pequeno carro de som, Chico Buarque e Racionais MC’s convivem com funks conhecidos em versão de luta – “A militância me deu onda”. A trilha anima cerca de 20 mil pessoas que saíram caminhando do largo da Batata ou da praça da República, debaixo do sol forte, e agora ocupam a calçada em frente ao escritório paulista da Presidência da República. A principal reivindicação é a retomada da faixa 1 do programa federal Minha Casa Minha Vida para famílias com renda de até R$ 1.800 por mês, mas eles também gritam “fora, Temer” e protestam contra as mudanças nas reformas trabalhista e da Previdência.


     À frente do ato, está o coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, que sobe e desce do carro de som, intercalando palavras de ordem no microfone com negociações com a PM. Quando está no chão, o líder conversa com militantes que conhece pelo nome, provenientes de caravanas vindas de ocupações de toda a cidade. Cumprimenta, bate um papo rápido, dá instruções. Quando está no alto, imposta a voz e se dirige à multidão na primeira pessoa do plural: “Para todos aqueles que desacreditaram da nossa luta, para o sr. Michel Temer, para todos aqueles que estão incomodados, o nosso recado é direto e reto: daqui não arredamos pé até ter nossa conquista nas mãos. Não tem arrego: ou negocia, ou não vai ter sossego”.

     Boulos tem voz de comando, mas suja os sapatos visitando uma a uma as ocupações do movimento. Um estilo tradicional de líder de movimento social que quase não se vê mais, como observa a doutora em ciências sociais e pesquisadora Esther Solano: “Nós vivemos um momento de vácuo de lideranças de esquerda. Nesse contexto, acredito que o Guilherme Boulos é a maior liderança de movimentos sociais agora. Porque faz uma ponte entre os movimentos sociais e o institucional, em um momento em que não há mais essa conexão que era tão presente nos primeiros anos do governo Lula”.


     Também de Frei Betto, experimentado na mobilização popular, o homem tem a admiração. E a bênção: “Guilherme Boulos é uma das mais jovens e promissoras lideranças de movimentos sociais brasileiros. Dotado de boa formação ética e intelectual, fez uma opção radical, evangélica, pelos mais pobres, concentrando sua atividade no segmento da população sem acesso ao direito de moradia. Modesto, despojado, inteligente, Boulos pôs a sua vida a serviço dos direitos humanos fundamentais definidos pelo papa Francisco, os três T: teto, terra e trabalho”, diz.

     O fato é que Boulos tem conseguido chamar atenção para a causa que abraçou. A ocupação dos sem-teto na Paulista segue firme há mais de uma semana e aumenta a cada dia com a participação de outros movimentos sociais, shows de cantores famosos, aulas públicas. O caldo está em ponto de fervura e não só em São Paulo, mas por todo o país, em lugares onde a mídia por vezes não chega. Prestes a completar 20 anos, o MTST duplicou de tamanho nos últimos quatro anos e hoje conta com cerca de 35 mil famílias em todo o país e uma crescente lista de espera para participar das ocupações. Em 2016, a Câmara dos Deputados teve de reconhecer sua importância – contra muitos gostos – e o homenageou com a Medalha do Mérito Legislativo. Também ganhou uma coluna em um dos principais jornais do país, a Folha de S.Paulo.
 
Negociação com a PM na manifestação de 15 de fevereiro,
que deu início à ocupação na Avenida Paulista
(Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública)
Sem romance

     “Tudo bem. Eu te dou a entrevista e topo que faça meu perfil, mas com a condição de que não entre muito na minha vida pessoal. Não vou falar ‘meus gostos’, essas coisas. E sem romancear demais. Vamos conversar e ver no que dá”, acedeu finalmente um desconfiado Guilherme Boulos, após alguns dias de conversas e negociações por telefone do que seria esse perfil, mais focado em sua trajetória de luta – que considera a parte interessante de sua vida.

     Para o público, o homem, hoje com 34 anos, nasce aos 15, quando, vindo de uma família de classe média de São Paulo, filho de pais médicos professores da USP, se envolveu com o movimento estudantil da União da Juventude Comunista, conheceu o MST e depois o MTST, seu destino. Apaixonou-se pela legitimidade da bandeira. Diz: “A luta por moradia no Brasil foi certamente a principal luta urbana, para além do movimento sindical. Nós tivemos um processo de formação das cidades que nunca assegurou esse direito. E que isso continue a ser uma questão em 2017 não é qualquer coisa. O Brasil tem quase 90% da população urbana, está entre as dez economias do mundo, é um país com uma indústria importante. Que as pessoas tenham que se organizar pra lutar pra ter um teto, para ter o direito básico de morar, é uma tragédia. Isso faz da luta por moradia algo muito legítimo, dá uma potência muito significativa, como poucas outras. Esse conjunto de elementos me levou a ver uma importância e me aproximar do MTST”.

     A chuva que cai forte sem trégua na lona da barraca de madeira na ocupação “Povo Sem Medo”, na divisa de São Paulo com Embu das Artes, nos obriga a falar mais alto. Foi ali que ele quis marcar nossa conversa. As roupas molhadas e cheias do barro da subida do morro onde 1.300 pessoas reivindicam um pedaço de chão são uma pequena amostra dos ossos desse ofício ao qual ele se dedica com razão e emoção desde 2002. E uma prova de resistência necessária para os que pretendem conhecer Boulos: é na peregrinação pelas ocupações que se revela o sentido de sua liderança.


     “O Guilherme é o nosso norte, é uma referência pra periferia. Porque ele traz para as pessoas a perspectiva de alcançar seus direitos. Na sua fala informativa, na forma de liderar. E não é uma liderança que ele queira, as pessoas entregam pra ele. Ele pra nós é sem dúvida nosso ponto de referência maior”, me disse a militante Jussara Basso, na Nova Palestina, enquanto caminhamos pela ocupação que é uma das mais antigas de São Paulo, com mais de três anos, e provavelmente é a maior da América Latina, com 4 mil famílias. Maria, moradora da Nova Palestina, que vive com o marido e três filhos, acrescenta: “Ele é um cara que enfia o pé no barro pra andar junto com a gente. Não é porque é liderança que não chega aqui, não quer saber dos acampados. Eu aprendi muito com ele, com a forma dele lutar. Ele não precisava estar lutando, mas faz isso pelo próximo. Eu aprendi com ele e repito que, enquanto estiver sem teto na rua, eu vou estar lutando. Mesmo quando eu conseguir minha moradia. Meus filhos também”.

     Boulos é alvo de adoração mas também de ódio. O rapaz que deixou a casa de classe média aos 20 anos para morar em uma ocupação do MTST (A Carlos Lamarca, em Osasco) incomoda muita gente. A militância nunca impediu seus estudos, ele é formado em filosofia e, embora poucos saibam, é psicanalista. Casado com uma militante, dedica seu conhecimento ao movimento social, desafiando a especulação imobiliária que empurra a população pobre para as bordas da cidade, agindo na contramão do que se espera dos mais aquinhoados e despertando mais ressentimento. O conhecimento transferido ao movimento social também é uma arma que assusta.

     Guilherme Boulos foi portador de uma novidade no movimento de moradia: a análise de conjuntura como prática semanal. “Isso sem dúvida permite o crescimento e a formação política dos quadros do MTST. Essa prática é comum a todos os movimentos que tiveram origem no MST, como o MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens], Levante Popular da Juventude, a Consulta Popular”, explica a urbanista, ativista e professora da Faculdade de Arquitetura da USP Ermínia Maricato. “Grande parte dos movimentos de moradia, na luta, que é natural, por resultados, deu prioridade à ação institucional quando não claramente clientelista. O MTST foge dessa limitação e por isso tem inovado bastante. Destaque-se ainda a coragem de Boulos e seus seguidores, que é notável”, diz.

     Apesar do bombardeio de opiniões, Boulos se mantém sereno. Sua maior preocupação, diz, não é com a própria pele: “Se eu ouvir a Jovem Pan, vou sair convencido de que sou um calhorda e não presto! Os blogs da Veja, os editoriais do Estadão… Eu coleciono!”, brinca. “Há um processo de desmoralização que não é só contra mim, é sobre as lideranças de movimentos sociais. Eu não deixo de dormir por isso. Diria até que num certo sentido ser atacado por tipos como esses é um atestado de caminho correto. Mas uma coisa é as pessoas mexerem com você, te atacarem. Alguém que se dispõe a estar na linha de frente de um movimento social tem que se preparar psicologicamente pra esse tipo de ataque. Outra coisa é começarem a atacar sua família, sua casa. Aí entra num patamar mais complicado. É importante se preservar.”

“Ele é um cara que enfia o pé no barro pra andar junto com a gente”, diz a militante Maria sobre Boulos
(Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública)
     O que não o impede de ser, além de xingado, preso. A última detenção foi no 17 de janeiro passado, quando participava das negociações durante uma reintegração de posse extremamente violenta de um terreno em São Mateus, na zona leste da capital paulista. A ocupação nem era do MTST, ele foi chamado para ajudar na negociação. A prisão foi política?, pergunto. Ele acena afirmativamente com a cabeça. “Não foi a minha primeira prisão, já fui preso algumas vezes, quase todas em desocupações. A penúltima foi na do Pinheirinho, respondo processo até hoje.” Responde a quantos processos? “Respondo a alguns”, desconversa. E segue adiante: “Você tem um sistema de criminalização dos movimentos sociais no país que é feito historicamente e que, no último período, tem se acentuado. Qual a melhor maneira de criminalizar? Você desmoralizar primeiro. Por exemplo, o que estão fazendo com o Lula, com a figura dele. Desumaniza, desmoraliza, depois se prenderem, se matarem, vai ter aplauso. O processo de desmoralização do movimento social está a todo vapor. ‘Movimento social é vagabundo’, ‘movimento social quer boquinha’, ‘movimento social quer favores e privilégios’. A criminalização nasce de uma desmoralização brutal que vem principalmente da mídia. Porque, quando você fala ‘esse cara não presta’, se ele for linchado em praça pública, você não está nem aí, ele merece. A criminalização pode ser judicial, pode ser física, prender, espancar, matar. E pode vir com processos judiciais. Aí não podemos deixar de mencionar a lei do terrorismo aprovada pela Dilma. A biografia dela vai estar manchada por isso. ‘Ah, excluiu movimento social, tirou as piores partes’, mas, meu amigo, no fim das contas, a caneta que vale é a do promotor, a do delegado. E qual é a mentalidade de delegado e promotor nesse país?”, questiona.


     E conta uma história de arrepiar mesmo para quem conhece a violência policial constante nas ocupações. “Pouca gente sabe disso, mas a desocupação mais violenta que eu já presenciei ocorreu em 2004 ou 2003 em Osasco. As pessoas moravam lá há um ano e meio mais ou menos, e a polícia chegou sem aviso prévio, entrou, arrancou as pessoas dos barracos na porrada. Me lembro de uma cena que me marcou muito, que foi uma senhora bem forte, bem grande, que não queria sair da casa dela. E foram cinco policiais, pegaram ela, derrubaram no meio da lama. Estava uma chuva como a de hoje. Deram uma gravata nela. E um menino, o filho dela de 12 anos, gritando ‘mãe, mãe’. Pegaram o menino e algemaram. Assim começou essa desocupação. Ela terminou com a polícia juntando todos os pertences das pessoas, botando gasolina e queimando. Foi brutal. As pessoas saíram, não tinham pra onde ir, tentei fazer uma assembleia, pra tentar organizar as pessoas pra sair. Quando eu comecei a reunião, a polícia jogou uma bomba no meio da reunião. Eu fui preso nesse dia, outros dirigentes foram presos. As pessoas não tinham pra onde ir. Tentamos por as pessoas em um ônibus e ir pra uma outra área, mas a polícia foi pra essa outra área, pegou as pessoas, colocou em caminhões-baú, atravessou a divisa de Osasco, deixou as pessoas na lateral da Marginal Pinheiros. Largou lá. Hoje, depois de dez anos, as pessoas que continuaram conseguiram suas casas. Mas aquilo foi… Eu nunca tinha visto uma barbaridade daquelas”, conclui com a voz embargada.

     Boulos não é alinhado ao PT nem poupa críticas a Dilma Rousseff, mas se destacou como uma das figuras mais proeminentes nos protestos contra o impeachment e depois nos atos “Fora Temer”, quando ficou conhecido para além da sua atuação no MTST. Para ele, o Brasil vive agora um “golpe continuado”. O militante, porém, não acredita que foram as manifestações do lado contrário, pedindo o impeachment, que derrubaram a presidente. “Sim, as manifestações contra a Dilma foram maiores [dos que as contrárias ao impeachment] por uma série de razões, até porque com o apoio da Globo fica tudo mais fácil. Mas eu não acredito que as manifestações foram decisivas. Foram um fator, mas você tinha um bloco de poder muito forte, que pegava a elite brasileira mais atrasada, os ranços da casa-grande, que soube trabalhar isso muito bem na classe média urbana, o grande poder econômico, o Judiciário, o escroque do Eduardo Cunha na presidência da Câmara. Tudo isso levou à vitória do golpe. Foi a vitória de um programa de rapinagem nacional. O tripé do governo Temer, que é a emenda constitucional e o teto de gastos, que é uma “desconstituinte” que liquida com a capacidade de investimento social do Estado; a reforma da Previdência que querem aprovar – e quem mora nesse acampamento não vai se aposentar, já que a expectativa de vida na maioria da periferia de São Paulo não ultrapassa os 65 anos – e a reforma trabalhista, que é de uma ousadia inacreditável. Nós tivemos 21 anos de ditadura militar e nem os milicos ousaram mexer na CLT. Nós entramos na era do escárnio, não há mais a maior pretensão de esconder ou manter as aparências. Essa etapa já foi. Se deixar essa galera até 2018, vão revogar a Lei Áurea”, diz.
 
Em janeiro, Boulos foi detido durante reintegração de posse
na zona leste de São Paulo. Para ele, a ação foi política
(Foto: José Cícero da Silva)
     Sobre o papel da esquerda, que anda calada, acrescenta: “A esquerda organizada no Brasil está pagando o preço do que deixou de fazer nos últimos 20 anos. Se dependesse de qualquer dirigente de movimento social, esse governo tinha sido arrancado do Planalto pelo colarinho. O problema é o seguinte: a esquerda perdeu no último período base social, capilaridade social. Não basta você ter compreensão da gravidade do que está acontecendo, não basta ter ideias boas do que deve acontecer, ter um bom programa pra enfrentar o golpe, uma denúncia convincente. Você precisa ter força social, você precisa ter gente na rua. A história é movida por isso, não pelas boas ideias. E a esquerda deixou de fazer trabalho de base. Por que o PT conseguiu gerar um caldo social, expressar e representar um caldo social a ponto de construir um fenômeno político como construiu independente do que se deu depois? Porque estava ali, nas comunidades eclesiais de base, no sindicalismo, nas ocupações urbanas, nas ocupações rurais, uma militância pisando no barro, subindo os morros, dialogando com o povo, ouvindo o povo”.

Esquerda lacaniana

     Quando fala em ouvir o povo, Boulos não se refere apenas ao convívio por meio da militância. Em 2002, na Argentina, enquanto acompanhava o pós-Argentinazo – grande levante popular causado por uma crise política, econômica, social e institucional que derrubou cinco presidentes –, ele se aproximou do movimento Piquetero e participou de grupos de reflexão com militantes que haviam sido marcados por uma tragédia que ficou conhecida como Massacre de Avellaneda, quando dois jovens foram assassinados pela polícia da província de Buenos Aires enquanto participavam de um protesto contra o fechamento de uma ponte ao sul da capital federal. O massacre, que deixou 33 feridos, foi televisionado e mostrou os policiais arrastando os corpos dos jovens pelo chão. “Agora imagina as feridas que ficaram, para além das feridas físicas, nas pessoas que participaram disso”, questiona.

     “Nestes grupos de reflexão, que aconteciam em bairros da periferia da Argentina, psicanalistas trabalhavam os aspectos subjetivos e a elaboração desses efeitos”, conta. “Aquilo foi extraordinário. Ver o que esse encontro da psicanálise com a periferia é capaz de gerar. Ali tinha ao mesmo tempo formação de sujeito, um elemento de elaboração de sofrimento, empoderamento. Tudo isso me seduziu e me levou a ter um interesse maior pela psicanálise”, explica com empolgação. “Depois fui estudar, me formei em uma escola lacaniana e hoje dou aula em um curso de especialização que tem foco na psicanálise, mas não clinico, não tenho consultório. A psicanálise é muito elitizada hoje no Brasil, infelizmente.”


     O conhecimento da psicanálise enriqueceu a militância. Seguindo uma tendência abraçada por novos filósofos e pensadores como Vladimir Safatle e o esloveno Slavoj Zizek, Boulos diz que começou a pensar o movimento social sob um novo viés, não só como massa em movimento, mas a partir do vínculo, do que aproxima as pessoas. “Eu concluí há pouco um mestrado com esse tema. Como em ocupações de terra as pessoas estabelecem vínculos que permitem que elas deem saltos subjetivos, é muito frequente você ouvir relatos de pessoas que estavam em sofrimento psíquico atroz e que, vindo para as ocupações, criaram um círculo de relações sociais, um espaço de reconhecimento, um resgate de autoestima de gente que estava pisada, humilhada por essa máquina de moer carne que é a vida urbana. Hoje as pessoas estão em multidão, mas sozinhas. E as histórias familiares são dramáticas para as pessoas pobres no país. São crivadas de sofrimento, às vezes de abusos, as das mulheres em especial. E claro que a ocupação não é o paraíso na terra, mas é um lugar em que se pode construir um espaço de convivência. Isso tem muito a ver com a psicanálise.”
 
“Entramos na era do escárnio, não há mais a maior pretensão
de esconder ou manter as aparências”, afirma Boulos
(Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública)
     Para o psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP Christian Dunker, Boulos é “o que se pode chamar de representante brasileiro da esquerda lacaniana”. Ele explica que muitas tendências da esquerda encontraram em Lacan uma espécie de renovador da crítica da ideologia e um teórico potente das relações de poder. “Ao mesmo tempo a teorização do laço social entre psicanalistas feita por Lacan oferece subsídios que inspiram uma reflexão crítica sobre o funcionamento do poder em movimentos sociais.”

     O entusiasmo com a psicanálise é a face menos conhecida do homem que insiste em se resguardar. Mais sobre a vida pessoal dele é difícil arrancar. Temos um trato, afinal. Entre raios, trovões e a chuva que não arreda naquela casinha de madeira, o militante/professor/psicanalista/filósofo prefere falar de futuro. Do nosso futuro: “Se o Temer ficar até 2018 e não houver reação popular, a gente vai ver a dilapidação do que restou. Ou vamos por um caminho que pode empurrar o país pra convulsão social. Não descarte a possibilidade de vermos algo que não acontece por aqui desde os anos de 1990, que são os saques, o povo saqueando. Porque grande parte da população assistiu o golpe pela TV por entender que aquilo era uma briga entre partidos políticos. E ela pode fazer diferença no jogo e se enxergar como protagonista com o avanço brutal do desemprego, o arrocho salarial, a iminência de colapso dos serviços públicos. No ano passado, 1,7 milhão de pessoas saíram dos convênios médicos e foram para o SUS, no momento em que o SUS está com contingenciamento de recursos. Isso é explosivo, vai dar colapso. Falência dos estados, polícia sem receber, ataque aos direitos trabalhistas, à aposentadoria. A chance de isso gerar um caldo de reação popular espontânea, para além dos movimentos sociais, está dada e é real. Eu não duvido de que ainda vamos presenciar uma explosão de gente nas ruas ainda esse ano.”

     Se Boulos estiver certo, o governo que pise ligeiro. Como diz o bordão, tantas vezes repetido nas manifestações populares, “quem não pode com formiga não atiça o formigueiro”.


*Colaborou Guilherme Peters

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Fotografia – por Nilsson Lee (Cupcake)

O desmonte do Brasil avança a passos largos – por Roberto Amaral (ramaral.org)

A arrecadação federal despenca, a indústria definha e o desemprego galopa, enquanto o governo Temer se desfaz do patrimônio nacional
Pedro Parente, presidente da Petrobras, já pode comemorar a queda de
 nossas reservas para o nível de 2001, após a venda de ativos e a contração
dos investimentos em exploração e produção de óleo


     A cada dia que passa, a cada medida que adota, o governo Temer mais assume, agora sem rebuços, seu projeto mesquinho de desestruturação do País, por meio do desmantelamento do Estado e da desconstrução da economia nacional, a serviço de interesses internacionais e do rentismo. A política recessiva, o neoliberalismo, o monetarismo arcaico não são fins em si, mas instrumentos de que se vale o situacionismo para destruir o que ainda sobrevive de projeto de desenvolvimento. 

     A arrecadação de tributos federais teve uma queda de 3% em 2016, em comparação com 2015, e o declínio não foi maior graças ao ingresso dos 46,8 bilhões de reais advindos da receita extra de impostos e multas da repatriação de recursos ilegais de brasileiros no exterior. Posta de lado essa receita, a queda sobe para 6%. Na comparação entre dezembro de 2016 e dezembro de 2015, a queda foi de 1,19%. A retração no início de 2017 superou 10%, mantendo a expectativa de contração no ano.

     Dessa forma, a arrecadação cai pelo terceiro ano consecutivo e retorna ao nível de 2010. As principais quedas se dão entre os maiores empregadores de mão de obra, a saber, no comércio, na construção e na indústria, cujo faturamento caiu 12,1% em comparação com o ano passado.

     E o ajuste fiscal?

     Enquanto a receita míngua, crescem as despesas. As contas do governo ficaram no vermelho pelo terceiro ano consecutivo, com um déficit primário de 154,255 bilhões em 2016, o maior rombo desde 1997, resultado do aumento de despesas na ordem de 7,2% em 2016 sobre 2015.

     A estimativa de crescimento de 0,5% do PIB foi revisada pelo Fundo Monetário Internacional para 0,2%, e pode ser ainda menor, enquanto a dívida das famílias cai na proporção em que sobe o gasto com seu pagamento. O crédito encolhe, o peso dos juros sobe de 41% (média de 2014) para 48% (novembro de 2016) e a taxa média dos juros ao consumidor chegou a 71,9% no final do ano passado. A contração da economia até 2016 chegou a 9%.

     Os reflexos nas vendas do comércio de varejo são visíveis e imaginável é a queda das encomendas à indústria, com seu rol de consequências que começa com o desemprego, crescente. Já chegou a 15% e pode, até o final do ano, atingir 20%. Só no ano passado foram eliminados três milhões de empregos com carteira assinada, o que significa três milhões de famílias de trabalhadores no desespero.

     Os Estados, já em crise, enfrentando quedas crescentes de receita, são, ainda, apenados pela União com a cobrança de uma dívida pelo menos discutível.

     Na impossibilidade de privatizar de uma só vez a Petrobras, o governo cuida de fragilizá-la ao limite de renunciar às expectativas do Pré-sal, a maior descoberta de petróleo do planeta nos últimos 30 anos. Parte para a venda fatiada, na bacia das almas, de ativos valiosíssimos de nossa maior empresa, como campos do Pré-sal e outros, de gasodutos, da Liquigás, de sua indústria petroquímica e tudo isso por que o projeto de destruição da estatal visa a reduzi-la à condição de mera produtora de óleo bruto, o que pode ser levado a cabo em pouco tempo.

     À irresponsável venda de ativos soma-se a contração dos investimentos em exploração e produção de óleo, e assim o senhor  Pedro Parente, presidente da estatal, já pode comemorar a queda de nossas reservas para o nível de 2001. A atual direção da Petrobras, criminosamente, praticamente abandonou a atividade de exploração (perfuração de novos poços para ampliar reservas), o que fará com que, em pouco tempo, nosso mercado interno venha a ser atendido majoritariamente pelas petroleiras estrangeiras.

     Fica cada vez mais claro que o grande objetivo é o desmonte do Brasil qual o conhecemos e a entrega de nosso patrimônio, construído com tanto sacrifício e ao longo de tantos anos, a grupos internacionais que avançam sobre todos os setores da economia brasileira, principalmente nos setores vitais, da indústria de um modo geral, do comércio, da educação e da saúde. Coerente com essa política verdadeiramente de terra arrasada, o governo pretende entregar a empresas estrangeiras o controle do tráfego aéreo nacional (o que comprometerá até a aviação militar e os deslocamentos de nossas autoridades).

     Pretende liberar a aquisição integral das empresas brasileiras de aviação a empresas estrangeiras e a política de ‘céus sem fronteiras’ que permitirá a empresas estrangeiras explorar a aviação comercial doméstica, quando nossas empresas encolheram 5,47% no ano passado, o pior desempenho desde 2003.

     Às empresas estrangeiras é liberada a captação de fundos públicos, o que contraria a lógica da atração de capitais estrangeiros, pois, por suposto, viriam eles aumentar a nossa capacidade de investir. Se nem mais capital têm de trazer, virão simplesmente abocanhar fatia crescente do capital privado nacional, acelerando, com a ajuda governamental, a desnacionalização de nossa economia.  Pari passu é autorizada a instalação de 21 Zonas de Processamento de Exportação (ZPES) sem cobrança de contrapartidas, ao lado de concessões de serviços públicos sem a exigência de conteúdo local.

     Enquanto isso, segue o esforço da maioria parlamentar, guiada pelo Planalto, visando à destruição da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), à perversa precarização do trabalho em meio à recessão e ao desemprego, e a reforma da previdência que só cuida de prejudicar quem mais dela depende, o assalariado.

     O governo que assim comanda a economia brasileira, permanentemente na corda bamba, sem credibilidade, carente de legitimidade e apoio popular, cuida do dia a dia sem saber se terá amanhã, pois pode e deve ser alcançado pelas delações dos executivos da Odebrecht, recentemente homologadas pela presidente do STF.

     Se salvar-se dessa ameaça, saída improbabilíssima, o ainda presidente pode ter seu mandato cassado como consequência da eventual impugnação pelo TSE das contas da campanha de 2014, embora as chicanas jurídicas do ministro Gilmar Mendes, aquele que não disfarça sua condição de militante partidário e, agora conselheiro do presidente que mais tarde julgará, tenta ora desvincular as candidaturas Dilma-Temer, ora prorrogar ao máximo o julgamento. Enseja ao presidente a renovação de duas ou mais vagas no plenário, inclusive a substituição do relator, o que lhe daria absoluto controle da Corte.

     Festeja-se a homologação das delações, mas é de lamentar a manutenção do sigilo, que só contribui para fortalecer suspeições difusas que são utilizadas para toldar o ambiente já de si tenso após tanta espera. O recurso ao sigilo, ademais, contraria o principio basilar da transparência, segundo o qual a publicidade deve ser a regra e o sigilo a exceção, e só tem servido para o ‘vazamento seletivo’ manipulado nas entranhas dos inquéritos e seus agentes.

     Pelo que se comenta em todos os bastidores da política e dos templos da Justiça, a delação dos executivos e do principal acionista da Odebrecht é grave demais, para os destinos da República e da Lava Jato, pelos seus aspectos intrínsecos, civis e criminais. De igual modo é importantíssima pelos suas evidentes implicações políticas e consequências institucionais, para ser tratada às escondidas, abrindo espaço para suspeições.

     A homologação e o sigilo foram anunciados quando estávamos nas vésperas da eleição das mesas diretoras do Senado Federal e da Câmara dos Deputados que definirá, ademais, a linha sucessória da Presidência da República, podendo eleger futuros réus da Lava Jato.

     O que está posto à toda evidência é que a conjuntura aponta para uma crise político-institucional potencializada pela crise econômico-social. Neste momento, os partidos precisam de nitidez ideológica afirmada em sua fidelidade a princípios e programas.

     Vencida pela reação sempre enérgica de sua brava militância, a bancada do PT na Câmara tende a ficar onde deve e de onde não pode sair, ou seja, na oposição ao governo títere. Precisa cumprir o papel  – se puder fazê-lo – de aglutinador, sem veleidades hegemonistas, dos partidos de oposição (PDT, PCdoB, Rede e PSol) num bloco parlamentar de resistência ao desmonte do Estado e da economia nacional.

     Do movimento social, sindicatos à frente, a conjuntura exige capacidade de ação,  mobilização permanente, dando sustentação, impulso e vigor  à oposição parlamentar. É hora de ampliar nossos espaços e cuidar de alianças táticas – inclusive com o capital produtivo, que os poucos vai descobrindo o erro que cometeu com a solidariedade ao impeachment.

     Em tais circunstâncias, a superação da crise passa por entendimento que antecipe a eleição direta de novo Presidente da República. Este sim, ungido pelo voto popular, e só nesta condição, terá legitimidade para dar rumo ao País.