quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Fotografia manipulada - por Wallpaper Warrior

"Lava Jato atacou e destruiu as bases do direito brasileiro", diz Jessé Souza - por Marcelo Coelho (Folha)

Professor da Universidade Federal Fluminense, com doutorado em Heidelberg, na Alemanha, e pós-doutorado na New School for Social Research, nos Estados Unidos, o sociólogo Jessé Souza, 56, acaba de publicar "A Radiografia do Golpe" (Leya), livro em que condena as articulações que levaram ao afastamento de Dilma Rousseff. Em entrevista ao colunista da Folha Marcelo Coelho, ele apresenta os pontos principais de sua análise.

*

Folha - Que fatores, a seu ver, determinaram o afastamento de Dilma Rousseff?
Em primeiro lugar, os interesses na manutenção de um rentismo perverso, que significa uma rapina sobre o resto da sociedade em benefício de poucos. A presidenta decidiu atacar o rentismo reduzindo os juros. Quis romper a política de compromisso de Lula e perdeu a batalha.

A partir daí, a elite econômica – com seus dois braços, o Congresso comprado e a grande imprensa sócia da rapina – criou uma base social conservadora junto à fração da alta classe média, parte dela com interesses no rentismo e outra parte receosa com a ascensão social dos pobres. Apropriou-se da narrativa das "jornadas de Junho", distorcendo o sentido das manifestações e federalizando pautas locais.

Essa foi uma das principais novidades em relação ao mensalão: uma fração social desde sempre conservadora e sempre vencida no voto, foi apresentada pela manipulação televisiva como o "povo nas ruas".

A outra novidade foi a cooptação da fração corporativa do aparato jurídico-policial do Estado. Uma casta com altos salários e vantagens que fogem da transparência, e se acredita acima da sociedade, adorou posar de guardiã da moralidade, aumentando seus privilégios e colonizando a agenda do Estado no sentido da restrição dos direitos individuais para aumentar ainda mais seu próprio poder.

Foram esses quatro elementos conjugados que articularam o golpe. As contradições entre eles tendem a ocorrer a partir de agora.

Folha - Como explicar o impeachment de um presidente claramente identificado com propostas neoliberais, como Fernando Collor?

Sim, as condições históricas eram outras e acredito que Collor seja um ponto fora da curva: um presidente patologicamente narcísico sem nenhuma credibilidade e que era percebido pelo público como mero assaltante dos recursos do Estado. Todos os "golpes" – Getúlio, Jango e Dilma – tiveram, entretanto, o sentido de restaurar a regra de que este é um país para poucos e onde o dinheiro compra tudo.

Folha - A deterioração do quadro econômico, durante o governo Dilma, não teve peso em sua queda de popularidade?

Tem gente que acredita naquela frase "é a economia, tolinho" como elemento definidor da política. No entanto, "tolinho" é quem acredita que a economia enquanto tal decida alguma coisa. Toda crise econômica precisa ser interpretada e é sua interpretação – no nosso caso a que se torna vitoriosa em um contexto de distorção sistemática da informação – que permitiu a percepção da crise como causada unicamente pela presidenta.

Na realidade, a crise fiscal tem a ver com a captura do Estado pela elite financeira que compra o Congresso e a política para que sua riqueza não seja taxada e ainda força o Estado a "pedir emprestado" via dívida pública – ou seja, nós todos que somos feitos de tolos que pagamos a conta – aquilo que a evasão fiscal retira da sociedade como um todo.

Como 90% dos analistas econômicos representam esses mesmos interesses rentistas, a "interpretação" dominante de temas complexos para o público tende a ser pervertida de fio a pavio.

Folha - Você afirma no livro que a "agenda da moralidade" no Brasil foi construída paulatinamente para rebater a agenda do combate à desigualdade. Mas, durante os governos Sarney, Collor e Fernando Henrique, nenhum partido bateu mais na tecla da moralidade do que o PT.

Eu critico no livro tanto a direita quanto a esquerda. Nossa esquerda sempre foi colonizada pelo discurso de falso moralismo da direita. Não à toa Sergio Buarque e Raymundo Faoro, baluartes do moralismo conservador, são heróis da esquerda. O PT ajudou a criar as instituições sem controle hoje em dia. Uma monstruosidade jurídica que hoje persegue e criminaliza até mesmo a liberdade de expressão.

Folha - Partiu dos juízes do Supremo Tribunal Federal a proibição de financiamento corporativo a campanhas eleitorais. A Igreja, com seu poder de arregimentação popular, foi importante na aprovação da Lei da Ficha Limpa. Como explicar que esses passos para a reforma política tenham sido dados, enquanto os governos petistas foram incapazes de liderar tal processo?

O PT era, no governo, um partido minoritário que sempre defendeu o financiamento público e sempre foi derrotado no Congresso cuja imensa maioria havia sido comprada via financiamento privado. Os erros do partido me parecem residir em outro lugar: deveria ter combatido o corporativismo nefasto das corporações jurídico-policiais e deveria ter contribuído para uma imprensa mais plural.

Folha - Seu livro se refere constantemente aos "donos do dinheiro", ao "1% mais rico", à "elite do dinheiro". O conceito não perderia algumas nuances? Enquanto o setor industrial, representado pela Fiesp, aderia abertamente ao impeachment, líderes do setor financeiro, como os presidentes do Bradesco e do Itaú, declararam-se contrários ao afastamento de Dilma. O atual ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, foi presidente do Banco Central no governo Lula, e no seu segundo mandato, com amplo apoio da imprensa, Dilma nomeou Joaquim Levy para a Fazenda...

O Bradesco nomear o ministro da Fazenda não significa apoio, mas, sim aproveitar a chance de "exercer diretamente" a política econômica de um governo acuado. Consistia em ajuste fiscal para a educação e saúde da população e liberdade para juros gordos para a meia dúzia que manda em tudo. Essa é política econômica imposta a Dilma – que resistiu depois – e que foi derrubada para que tenhamos esse mesmo projeto agora sem resistência alguma. De resto, a união entre todas as frações da elite econômica advém do fato de que todos eles confiam seus ganhos ao rentismo e aos ganhos pelos juros estratosféricos.

Folha - Na formulação clássica do conceito de populismo, pensava-se na presença de um líder providencial, capaz de representar os pobres e redistribuir renda por ato de vontade política... Embutida nessa crítica, estava a ideia de que tal estratégia minimizava o papel da auto-organização das classes populares e da formação de um partido político sólido. A distribuição de renda surgia como um favor, embalado na simbologia de uma representação que no fundo não era democrática nem participativa. Você não acha que o petismo, ao se transformar em lulismo, sofreu desse problema?

O conceito de populismo tem algo de extremamente conservador e ridículo. O ridículo é chamar qualquer ajuda à maioria de abandonados e de trabalhadores super-explorados – cerca de 70% da população brasileira – de populismo. Nesse caso, democrático seria, por pura exclusão lógica, atender aos interesses da ínfima elite.

O conservadorismo é imaginar que existam classes conscientes de seus interesses o tempo todo. Se nossas classes médias – que efetivamente poderiam ser mais inteligentes do que são – são feitas de tolas todo dia pelas doses diárias de veneno midiático, imaginemos as classes abandonadas que não têm defesa cognitiva possível a esse tipo de ataque a não ser o racionalismo prático do dia a dia que a fazem escolher os líderes que efetivamente melhoram seu bem estar concreto e aumentam suas chances de vida.

A única classe "consciente de si" entre nós é a elite da rapina. Seus braços econômicos, políticos, midiáticos e jurídicos se uniram maravilhosamente quando perceberam a chance do golpe em benefício próprio.

Folha - Na atual crise, deu-se o fato inédito de a Operação Lava Jato ter levado à cadeia alguns dos empresários mais poderosos do país, como Marcelo Odebrecht. Isso não representa uma virada importante, aumentando o prestígio de um juiz como Sérgio Moro?

A crença na Lava Jato como instância purificadora de nossa realidade é a maior fraude de todo esse processo que vivemos. Fraude construída por manipulação midiática.

Primeiro, escolheu-se dar toda a ênfase à narrativa do PT como "organização criminosa" como se a corrupção política a serviço do mercado não fosse sistêmica e não abrangesse todos os partidos e todos os níveis da administração. Aliado a isso o "timing" da operação e seus vazamentos ilegais se casou perfeitamente com o golpe parlamentar lhe dando narrativa e justificação. Alguém com mais de cinco anos acredita em coincidências e papai Noel?

Segundo, não se constrói nenhuma realidade jurídica nova minando as bases do direito que são as garantias individuais e o processo legal formal. Nada atacou e destruiu tanto as bases do direito brasileiro quanto a Lava Jato. Houve uma "des-diferenciação" do direito que se politizou e regrediu historicamente perdendo sua autonomia.

Depois não é próprio da ação jurídica, que é restrita ao seu escopo de garantir direitos violados, a tarefa de reformulação social. Essa é a tarefa da política.

Folha - O vazamento das conversas entre o empresário Sergio Machado e Romero Jucá, nos quais se cogitava de meios para abafar a Operação Lava Jato, é classificado por você como "seletivo". Seria um artifício dos meios de comunicação para dar ilusão de imparcialidade? Na mesma linha, os jornais noticiam caixa dois na candidatura Serra e pagamentos solicitados por Temer à Odebrecht. É possível, pensando nestes exemplos, falar em "indignação seletiva" da mídia contra o PT?

Dois pontos são importantes esclarecer nesta questão. A imprensa, como o judiciário, não é uma coisa só. Existem conflitos importantes entre órgãos mais e menos isentos e existem também profissionais que se fazem respeitar e conquistam algum espaço de autonomia. A imprensa precisa da aparência de isenção e isso cria espaços alternativos importantes.

O que a fração de imprensa mais conservadora e menos isenta fez – muito especialmente os oligopólios de TV – e faz foi tentar e efetivamente conseguir demonizar e criminalizar o discurso de esquerda – uma esquerda muito "light" diga-se de passagem – o que ela foi aprendendo a fazer cada vez melhor nos últimos anos. No entanto, seja para assaltar um banco, seja para assaltar a soberania popular, é sempre mais fácil achar aventureiros para a empreitada do que dividir o bolo. Na hora de dividir o butim do golpe é que surgem os conflitos. Essa é a fase em que estamos hoje. A luta de morte aqui é para salvar as aparências. Nem todos conseguirão

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Arte digital - por Wallpaperscraft

Sobre achismos, torcidas e que tais

     O grande escritor uruguaio Eduardo Galeano, em seu pequeno e belo livro Futebol ao sol e à sombra, compartilha uma emblemática história conosco, alcunhada Fervores:
     “Em abril de 97, tombaram crivados de balas os guerrilheiros que ocupavam a embaixada do Japão na cidade de Lima. Quando os comandos irromperam, e num relâmpago executaram a espetacular carnificina, os guerrilheiros estavam jogando futebol. O chefe, Néstor Cerpa Cartolini, morreu vestindo as cores do Alianza, o clube de seus amores.
     Poucas coisas ocorrem na América Latina, que não tenham alguma relação, direta ou indireta, com o futebol. Festa compartilhada ou compartilhado naufrágio, o futebol ocupa um lugar importante na realidade latino-americana, às vezes o lugar mais importante, ainda que ignorem os ideólogos que amam a humanidade e desprezam as pessoas.”

     Lembrei-me deste trecho porque no clássico entre Palmeiras e Flamengo na última quarta-feira, o rubro-negro carioca, jogando na casa do adversário, sem torcida por conta de uma decisão do STJD, tendo um jogador injustamente expulso ainda no primeiro tempo, conseguiu a proeza de abrir o placar contra o Palmeiras e só levou o gol de empate quase aos quarenta minutos do segundo tempo.
     A despeito do belo jogo, só um dos dois times jogou como um campeão, o que me faz crer que o Flamengo levará o título esse ano.
     Tal conclusão sobre o time que levantará a taça  que não à toa é o meu  me fez lembrar que nós, torcedores deste esporte que tanto impacta em nosso imaginário coletivo (como bem aponta a história de Galeano), damos vazão a sentimentos intensos, abrangentes e determinantes. Mas todos estes fervores, como não poderia deixar de ser, ainda são oriundos de sentimentos – por isto não são racionais. Nós torcemos para um lado, e vamos defendê-lo até o fim, vamos atacar o time adversário – afinal, ele é adversário. Nós, torcedores, temos determinada preferência, valorizamos o que nos agrada, o que se destaca do nosso time e minimizamos o que é bom no outro. Damos suma importância às faltas que julgamos que cometeram contra nós e desvalorizamos as faltas cometidas pelo nosso time, pelo nosso lado, ou pela nossa seleção.
     Nossa torcida não expressa uma decisão racional, calculada  mas antes preferências arbitrárias. Se formos honestos, admitiremos que nunca conseguimos ter a isenção devida, sempre distorceremos (eventualmente mais ou menos) a realidade para fazer com que ela se encaixe em nossas premissas de torcedores. Mesmo que imperceptivelmente, nós deixamos que nossa escolha por certo time, ou por certa seleção, ou por certo lado, interfira no que acreditamos e defendemos, ¿não é mesmo? Temos que ter ao menos a grandeza de admiti-lo, a torcida é tão intensa que é capaz de distorcer nossa razão. Por isso, os torcedores do Flamengo têm certeza que o Márcio Araújo até poderia, mas não deveria ter sido expulso e o árbitro cometeu um erro grave; enquanto os do Palmeiras acham que ele deveria ter sido expulso invariavelmente. Com efeito, passamos realmente a acreditar que estamos sendo prejudicados e que os do outro lado estão sendo beneficiados irregularmente.
     É raça, amor e paixão, como diria um dos gritos de guerra rubro-negros. Não era de se esperar nada de diferente. É coisa de torcedor, onde prevalece aquilo que é irracional, emotivo, arbitrário. Torcida não é sinônimo de razão, de justiça, de imparcialidade. Muito ao contrário.
     Mas eu não poderia deixar de pontuar. Exatamente por ser um torcedor e saber como isto influi nos meus julgamentos, por ser um torcedor e compreender que isto deprecia minha capacidade analítica, por ser um torcedor e ter ao menos o discernimento de saber que tal sentimento afeta minha percepção do que é justo ou não, por ser um torcedor e saber que isto perturba minha racionalidade, por ser um torcedor e reconhecer que tenho lado, que sou parcial, emotivo e arbitrário em minha preferência, eu quero deixar bem claro: eu não tenho provas de que o Flamengo ganhará o título esse ano. Só tenho a convicção.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Lá longe - por Gerard Miley (Arte digital - Coolvibe)

Temer e a PEC 241: entre o engodo e a guerra civil - por Roberto Requião (Carta Maior)

     Os tubarões estão atrás de factoides que provoquem uma euforia compradora das ações, empresas e títulos que eles adquiriram a preço de banana.

     O governo interino enviou ao Congresso a PEC 241 com o objetivo de congelar os gastos públicos por 20 anos, tendo como referência os gastos de 2016.
     Nunca em nenhum outro país uma proposta de congelamento dos gastos públicos foi sequer cogitada como proposta legislativa, muito menos colocar tal aberração em um texto constitucional. Mesmo na Grécia, massacrada pela austeridade fiscal imposta pelos credores e pela Alemanha, imaginou-se tal coisa.
     Essa proposta tão absurda serve para mostrar o grau de anormalidade política e institucional em que vive hoje o país.
     É a prova de que estamos caminhando para o caos político e econômico, em razão da incrível ousadia e irresponsabilidade daqueles que imaginam controlar o povo e o Congresso com a repetição nauseante de um arsenal de mentiras.
     A proposta é tão anormal que nenhum economista ou professor universitário com credibilidade se atreveu a defende-la. No dia 16 de agosto, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado debateu o assunto.
     Meirelles mandou dois funcionários de segundo escalão para defender a proposta. Confrontados pelos professores convidados a fazer uma análise séria do assunto, exibiram a grande fragilidade da PEC 241 e da visão econômica do chefe.
     Os dois rapazes apenas aumentaram minha incompreensão sobre as razões pelas quais "o "mercado" e certos políticos progressistas veem Meirelles como "salvador da Pátria". Que Pátria?
     Os mensageiros deste "salvador do mercado" repetiram o velho chavão que diz que o "Estado é como uma dona de casa que sabe que não pode gastar mais do que arrecada". Ora, qualquer um que lê os jornais com atenção e conhece um pouco de história sabe que isso é um sofisma manipulador e primário. O Estado, no mundo inteiro, gasta mais do que arrecada quase sempre e isso é visto como absolutamente normal e saudável.
     Infelizmente ou felizmente o Estado é muito mais complexo do que o orçamento doméstico.
     Voltando à PEC 241.
     Obviamente, em termos bem simples e diretos essa PEC promete explicitamente e na melhor das hipóteses que:
.         a saúde não melhore nada por 20 anos,
·         a educação não melhore nada por 20 anos,
·         o salário mínimo não melhore nada por 20 anos
·         a segurança pública não melhore nada por 20 anos,
·         o trânsito das cidades – que depende da construção de metrô e obras viárias – não melhore nada por 20 anos,
·         as condições de moradia não melhore nada por 20 anos, mas que a população nas favelas ou em submoradias aumente significativamente em 20 anos.
·         o saneamento básico não melhore nada por 20 anos
·         a qualidade de vida da maioria da população não melhore nada por 20 anos
·         a proteção ao meio ambiente não melhore nada por 20 anos
·         nossa justiça lenta e parcial não melhore nada por 20 anos
·         o combate à seca no Nordeste e às mudanças climáticas, que podem ter efeitos catastróficos, não melhore nada em 20 anos
·         o desenvolvimento científico e tecnológico do país não melhore nada em 20 anos
·         a gestão pública não melhore por 20 anos
·         a distribuição de renda não melhore nada por 20 anos
·         a desigualdade regional não melhore nada por 20 anos
·         a capacidade do país se defender não melhore nada por 20 anos
·         a infraestrutura não melhore nada por 20 anos
     É exatamente isso o que esta PEC está propondo. E olhe, senhoras e senhores senadores que essa PEC é considerada a medida mais importante do governo interino.
     Falando português claro e sem eufemismo, na verdade, é a proposta legislativa mais idiota e mais desumana que eu já vi tramitar no Congresso por iniciativa do Executivo, em toda história do Brasil.
     Obviamente o povo brasileiro jamais vai concordar com essa barbaridade. Não foi para isso que muitos pediram o afastamento de Dilma. Mas o povo não sabe que isso esta em discussão.
     A grande mídia, é claro, não vai dar espaço para que o povo seja informado.
     Ademais, os congressistas têm a voz cortada pelos instrumentos ilegais de tramitação acelerada, que excluem o debate.
     Além do que, uma parte significativa dos parlamentares tem medo de criticar em público e se posicionar contra as medidas impostas pelo poder econômico depois que:
·         os tentáculos e os métodos agressivos de Eduardo Cunha e seus parceiros se espalharam no Congresso e no governo,
·         a grande imprensa passou a adotar o critério de que todo mundo que pensa diferente dela é sua inimiga mortal,
·         começaram as investigações da Lava-Jato com prisões preventivas generalizadas, abusivas, espetacularização e destruição de reputações,
·         o Poder Judiciário e o Ministério Público tomaram para si a prerrogativa de condenar a opinião do Congresso e seu poder de legislar.
     O Congresso esta funcionando de forma anômala. No mínimo, quando se refere a questões de interesse do poder econômico, as opiniões divergentes e o contraditório estão restritos em razão do medo e da forma de tramitação inconstitucionais e não democráticos que funcionam como rolo compressor.
     Esse contexto explica porque a PEC 241 pode ser aprovada, mesmo propondo explicitamente que o Brasil não melhore em nada nos próximos 20 anos.
     Se nosso país já fosse o mais desenvolvido do mundo, a proposta já seria um absurdo, porque o ser humano quer sempre melhorar e progredir.
     Mas, com as carências que temos, como esperar por vinte anos, duas gerações, para retomar os investimentos em saúde, educação, habitação, saneamento, infraestrutura urbana e mais?
     Pensando bem, a PEC 241 é ainda muito pior do que isso.
     Sabemos que a população brasileira vai aumentar e que, portanto, nada vai melhorar por 20 anos, pelo contrário tudo vai piorar com a vigência da PEC.
     Mais doentes para os mesmos hospitais, mais idosos para a mesma previdência pública, mais estudantes para as mesmas escolas e universidades, mais carros para as mesmas ruas, mais pessoas para as mesmas favelas, mais dejetos para o mesmo sistema de esgoto e de tratamento de água, mais caminhões para as mesmas estradas, mais caos urbano para mesma segurança pública, mais conflitos para a mesma justiça.
     Limitam-se aí os malefícios desta PEC?
     Não. Esses são apenas os mais evidentes.
     A população brasileira esta envelhecendo rapidamente. Esse fato é certamente a inspiração econômica da PEC 241.
     No dia 16 de agosto, o professor Pedro Rossi, da Unicamp, lembrou em audiência pública no Senado, que mesmo a reforma previdenciária mais radical que Temer conseguir aprovar não impedirá que a população brasileira continue a envelhecer. E nem a reforma previdenciária mais radical vai impedir que as despesas previdenciárias ultrapassem 8,6% do PIB em 2036, disse o professor.
     Ora, se aprovada a PEC 241 e as despesas previdenciárias atingirem apenas 8,6% do PIB em 2036, e as despesas com saúde e educação ficarem congeladas, todos os outros gastos públicos – como funcionalismo, segurança, defesa, proteção contra catástrofes, obras viárias, saneamento, habitação, ciência e tecnologia, justiça, legislativo – terão que disputar apenas 1% do PIB.
     Porque é isso que vai restar do orçamento para esses setores. Seria, então, a destruição do Estado Nacional
     O absurdo de tal proposta me faz pensar que essa PEC visa apenas jogar a sociedade contra os aposentados, a saúde e a educação públicas e distrair os brasileiros para que não percebam que o nível atual de juros é incompatível com o envelhecimento da população , com a saúde e a educação públicas.
     Enfim, reafirmando, os cálculos do professor Pedro Rossi mostram que a PEC 241 seria a destruição do Estado Nacional, da educação, da saúde e da previdência.
     É isso que querem que o Congresso aprove?
     Não. É ainda pior.
     O governo e alguns poucos economistas lunáticos que estão defendendo essa proposta dão a entender que mesmo que tudo que dependa do Estado piore por 20 anos, ou seja, destruído, ao menos o setor privado poderá crescer e gerar empregos.
     Mas isso também não acontecerá.
     Nunca na história de um país grande houve crescimento econômico sem que houvesse crescimento dos gastos públicos.
     Em tese, em um país bem pequeno, é possível que o setor privado cresça mais do que o setor público, porque – por ser pequeno – a maior parte da produção industrial e agrícola esta voltada para as exportações. Além disso, quando o consumo interno cai, é possível aumentar as exportações sem gerar super oferta no mercado internacional.
     Portanto, o mercado internacional pode ser decisivo no crescimento do setor privado em um país pequeno. Já em um país grande, o crescimento econômico depende primordialmente do crescimento do mercado interno, que depende dos gastos públicos.
     Como somos um dos principais fornecedores no mercado internacional da maioria dos produtos que nós exportamos, como soja, café, carne, minério de ferro, algodão, celulose de eucalipto e mais, não é possível compensar a queda no consumo interno com mais exportações. Porque isso provocaria uma saturação no mercado de nossos produtos de exportação.
     Além disso, as pessoas demitidas nos serviços e no comércio não poderiam trabalhar na indústria exportadora por não terem capacitação para isso, e por não existirem máquinas suficientes para empregá-las no Brasil, e nem mercado externo para absorver tal aumento das exportações.
     Mesmo em países pequenos, como a Grécia, é muito difícil que a economia cresça se o setor público não acompanha, como a experiência recente mostrou.
     Em um país grande é realmente impossível a economia crescer se os gastos públicos não crescerem, pois o consumo privado já está ajustado à renda das pessoas. Assim, se o gasto público não crescer, a renda e o mercado interno não poderão crescer.
     E se o mercado interno não crescer, não haverá investimento do setor privado e assim o emprego e os salários não irão crescer.
     Em casos excepcionais, e de forma marginal, é possível que o setor privado cresça mais rápido do que o setor público, nos breves momentos em que há uma euforia no investimento privado e taxas de juros muito baixas para financiá-lo a longo prazo.
     Isso está muito distante da realidade brasileira. Taxas de juros baixas não é o caso do Brasil e não será pelos próximos 20 anos. Mesmo porque a PEC 241 tem como objetivo principal garantir que o governo pague as taxas de juros mais altas do mundo por 20 anos, sem tornar a dívida pública impagável.
     Dessa forma, podemos concluir sem sombra de dúvidas que a PEC 241, caso seja aprovada, condenará o Brasil a 20 anos de recessão, estagnação, deterioração dos serviços públicos e das condições de vida.
     Só isso?
     Não, a PEC 241 consegue ainda ser pior...
     O governo interino pode paralisar os gastos em pesquisa e desenvolvimento no Brasil, mas não pode parar o desenvolvimento tecnológico do resto do mundo. Portanto, como nossas empresas estão inseridas no mercado internacional, as máquinas usadas pelos empresários brasileiros continuariam a ser trocadas por outras mais eficientes, dispensando trabalhadores. Logo, o nível de emprego diminuiria nos próximos 20 anos.
     Com o desemprego crescente, os salários cairiam continuamente e, em consequência, o mercado interno encolheria, o que levaria a economia a um ciclo vicioso de depressão.
     Se em 2013, os jovens se revoltaram por 20 centavos de aumento nas passagens, nem posso imaginar o que fariam no contexto de depressão.
     Só não estamos já em uma situação revolucionária e de guerra civil, porque:
1.    quando Dilma colocou Levy para derrubar nossa economia, estávamos no menor nível de desemprego e com o maior salário médio da nossa história.
2.    a mídia e os propagandistas do discurso de ódio nas redes sociais conseguiram convencer que estávamos, em 2013 e 2014, em uma crise moral e econômica profunda, quando, na verdade, a nossa situação econômica e social era a melhor da nossa história.
3.    a mídia e os propagandistas do discurso de ódio nas redes sociais convenceram a maioria de que todos os problemas, reais ou imaginários, presentes, passados ou futuros eram a culpa da Dilma e que, portanto, queimar o "judas" no impeachment iria purgar a sociedade de todas as culpas e problemas.
     Dessa forma, o povo demorou a sentir os efeitos da política recessiva que implantaram e ficou distraído com divisão sórdida que criaram na sociedade, enquanto todos esperam a fogueira do impeachment se apagar.
     Quando isso acontecer e as Olimpíadas acabarem, nem as prisões espetaculares da Lava-Jato vão conseguir distrair a população de seus problemas reais e do que o governo interino esta pretendendo aprovar no Congresso.
     As pessoas aos poucos passarão a direcionar sua raiva contra o Congresso, o governo interino e suas políticas. E o governo e a governabilidade só se sustentarão com muita repressão, violência e censura.
     Mas por quanto tempo, será possível represar a insatisfação?
     Caso consiga conter a insatisfação popular por um ano, o governo Temer talvez crie as condições para uma revolta popular generalizada e um provável golpe militar preventivo, próximo às eleições de 2018.
     Se não conseguir represar a revolta por tanto tempo, o Congresso deverá votar a eleição indireta no início do ano que vem, o que poderá distrair o povo por alguns meses.
     De uma forma ou de outra e, mesmo sob uma ditadura de fato, a aprovação da PEC 241 tornará qualquer governo inviável. Ela transformará o convívio em sociedade no Brasil em um inferno, em razão da depressão econômica, da deterioração dos serviços públicos e da qualidade de vida. Nesse contexto, uma ditadura levaria a uma guerra civil antes do final da década.
     A aprovação da PEC 241 contribuirá decisivamente para esse processo.
     Mas a troco de que o governo interino está propondo medidas tão explosivas?
     Em troca de uma suposta redução de um novo indicador contábil inventado pelos banqueiros, chamado de relação dívida bruta sobre PIB.
     Não parece pouca vantagem para tamanha destruição de milhões de vidas e famílias?
     Parece. Mas é ainda pior do que isso.
     A PEC 241 não melhorará nenhum indicador contábil-fiscal.
     Pelo contrário, piorará, porque em países grandes como o Brasil esses indicadores só podem ser melhorados por meio do crescimento econômico ou, eventualmente, por uma forte desvalorização cambial.
     Se aprovada a PEC 241, o PIB e a arrecadação de impostos não vão crescer. Assim, mesmo que os gastos públicos fiquem estagnados, a dívida não poderá cair. Pelo contrário, em razão dos insanos juros que estão em vigor no Brasil, a dívida continuará aumentando!
     Então quer dizer que o governo interino e o "mercado" ficaram loucos ao propor tal medida?
     Não acho que seja isso. De fato, existe um fanatismo de "mercado" que é incapaz de perceber as tendências suicidas do fundamentalismo neoliberal.
     Mas esse certamente não é o caso da pragmática cúpula do governo interino. Eles não têm convicções neoliberais, porque não têm convicções.
     Essa mesma cúpula, ao promover o maior déficit primário em décadas, já traiu o "mercado" e as próprias promessas neoliberais contidas no documento "Uma Ponte para o Futuro".
     Eles não são tão idiotas irresponsáveis quanto parecem. Acredito que a PEC 241 não seja para valer. Ela é só uma cortina de fumaça para nos distrair, enquanto aprovam o que realmente lhes interessa.
     E o que realmente interessa para eles?
1)    A entrega do Pré-Sal às grandes multinacionais norte-americanas
2)    As privatizações a preço de banana, com os inevitáveis pixulecos
3)    A eliminação de direitos trabalhistas, sociais e previdenciários para satisfazer os financiadores do golpe
     O governo interino não quer realmente aprovar a PEC 241. Para ele, quanto mais tempo, ficar em discussão no Congresso, melhor. No entanto, ao mesmo tempo, eles têm que mostrar ao "mercado" que estão se esforçando para aprovara PEC rapidamente.
     Isso significa que os grandes tubarões do "mercado" são suicidas?
     Não. Eles são tão pragmáticos quanto a cúpula do governo interino.
     No momento, os tubarões estão atrás de pretextos, de factoides que provoquem uma euforia compradora das ações, empresas e títulos que eles adquiriram a preço de banana nos últimos dois anos, em razão da crise econômica por eles engendrada pela política de austeridade do Levy.
     Ao mesmo tempo, o governo interino esta, na prática, se lixando para responsabilidade e austeridade fiscal, pois promove o maior crescimento do déficit primário em décadas. Dessa forma, a PEC 241 é o único álibi que pode justificar algum respeito do atual governo à austeridade fiscal.
     Como a mídia e os tubarões venderam ao "mercado" que as ações e títulos caíram de preço porque Dilma não teve "responsabilidade fiscal", eles só podem criar uma euforia compradora se provarem que ao atual governo é o oposto de Dilma em termos de "responsabilidade fiscal".
     Ora, como todas as evidências mostram que o atual governo esta sendo irresponsável e está se lixando para austeridade fiscal, criaram essa PEC 241 para tentar "provar" que são alucinados fundamentalistas do austericídio fiscal.
     Por alguns meses, isso há de embalar as histórias de carochinha que a mídia vai contar sobre a conversão da cúpula do governo ao fundamentalismo de mercado e, assim, dar embasamento narrativo à euforia das bolsas, para vender a preços elevados as ações que os tubarões compraram a preço de banana nos últimos 2 anos.
     Ao mesmo tempo, distraem o Congresso, a esquerda e o povo, enquanto aprovam o que realmente querem: vender as riquezas nacionais e o patrimônio público a preço de fim de feira, e cortar direitos sociais.
     Parece o plano perfeito, mas não estão contando com o despertar do povo do sono profundo em que foi embalado. Um sono regado a ódio político, muita espetacularização de operações policiais, prisões preventivas mal explicadas e vazamentos ilegais de processos judiciais.
     Também não estão contando que podem errar a mão e acabar aprovando a PEC 241.
     Se isso acontecer, nenhum simulacro de democracia ou de estabilidade sobreviverá.
     Quem viver, verá.
Roberto Requião é senador da República em seu segundo mandato. Foi governador do Paraná por três mandato, prefeito de Curitiba e deputado estadual. É graduado em direito e jornalismo com pós-graduação em urbanismo e comunicação. É capitão do Exército Brasileiro, na reserva.
Também em vídeo: http://www.robertorequiao.com.br

Fotografia manipulada - por Michał Karcz (Site homônimo)

Xadrez da teoria do choque e do capitalismo de desastre - por Luis Nassif (Jornal GGN)

Há um conjunto de peças soltas no golpe que, quando devidamente organizadas, permitem entender de modo muito mais claro um dos aspectos mais relevantes: a influência externa.
São elas:
  • 1.     A campanha sistemática da mídia de destruição da autoestima nacional.
  • 2.     Recém instalado o golpe, a corrida do ouro entre Eduardo Cunha e José Serra, para ver quem se antecipava na aprovação da nova legislação do petróleo.
  • 3.     A ida repentina do senador Aloysio Nunes aos Estados Unidos, para conversar com membros do Senado.
  • 4.     Antes dele, a ida do Procurador Geral da República aos Estados Unidos, para reuniões com o Departamento de Justiça e outros setores sensíveis.
  • 5.     A bandeira mágica que acompanha o golpe, de colocar a salvação do Brasil no trinômio reforma da Previdência-livre fluxo de capital-desregulação/privatização.
Para juntar as peças acima, vale a pena um mergulho no livro “Teoria do Choque” da norte-americana Naomi Klein.

Peça 1 – o início da “teoria do choque”

A base do livro é a descrição de estudos psicológicos nos Estados Unidos, que teriam contribuído igualmente para o aprimoramento dos métodos de tortura da CIA e das intervenções político-econômicos em países conflagrados. Tratam-se dos estudos de 1963 de Ewen Cameron e Donald Hebb, sistematizando os princípios do que veio a ser vulgarmente conhecido como lavagem cerebral através do uso de eletrochoques.  A conclusão principal era a de que “a privação de estímulos (através da tortura) induz à regressão, despojando a mente do indivíduo do contato com o mundo exterior e forçando à regressão”.
Quando o prisioneiro mergulha em um estado de “choque psicológico”, ou “vivacidade interrompida”, é sinal de que está mais aberto a sugestões, mais disposto a ceder. Em situações mais brandas, mas nem por isso menos drásticas, mantem-se o réu detido, sem contato com o mundo exterior, com família, sem acesso a notícias, até que entre no estado da “vivacidade interrompida”. Se o trabalho for bem feito, delata até o casamento da princesa Leopoldina em Diamantina, onde nasceu JK (apud “Samba do crioulo doido”).
Para haver cura, seria preciso eliminar tudo o que existia antes. “Cameron estava seguro de que se varresse para bem longe os hábitos, modelos e lembranças dos seus pacientes, chegaria àquele espaço vazio primitivo”, diz Naomi. Em geral, os resultados alcançados foram os de deixar os pacientes com suas memórias fraturadas e sua confiança traída, constata ela. Mas abrindo o bico, que é o que interessava.
Cameron transpôs suas teses para o campo das ciências sociais, através de um livro onde pontificava sobre como preparar a reconstrução da Alemanha no pós-guerra. Propôs-se a desenvolver uma nova ciência social e comportamental, na qual os cientistas do comportamento passariam a agir como planejadores sociais. Nessa nova utopia não haveria lugar para os doentes e os fracos, que deveriam ser removidos para não influenciar as novas gerações.

Peça 2 – o capitalismo de desastre

Segundo Naomi, essa mesma tese da destruição-reconstrução foi desenvolvida pelo chamado capitalismo de desastre, a partir dos estudos e da pregação de Milton Friedman, da Escola de Chicago, inspirada nas teses de Cameron.
Em um de seus ensaios fundamentais, Friedman desenvolveu a estratégia de como se prevalecer de situações de crise – “crise real ou pressentida” enfatizou. Quando a crise acontece, dizia ele, as ações que são tomadas dependem das ideias que estão à disposição. “Esta, eu acredito, é a nossa função primordial: desenvolver ideias alternativas às políticas existentes, mantê-las em evidência e acessíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente viável”. 
Tão logo uma crise se instale, defendia Friedman, é essencial agir rapidamente, “impondo mudanças súbitas e irreversíveis, antes que a sociedade abalada pela crise possa voltar à tirania do status quo”. Nas suas contas, uma administração teria de seis a nove meses para realizar as principais mudanças. “Caso não agarre a oportunidade de agir de modo decisivo durante esse período, não terá outra chance igual”.
A fórmula salvadora consistia em medidas irreversíveis que atendam ao trinômio liberdade total para o capital-privatização/desregulação-cortes nos serviços e benefícios sociais. Alguma semelhança com o caso brasileiro?
Há inúmeros episódios em que se aplicou a teoria do choque, desde o golpe contra Allende, no Chile, ao enorme fracasso da ocupação do Iraque e ao desmonte total do sistema de educação pública de Nova Orleans, após o terremoto Katrina.
Foi o que Naomi testemunhou na guerra do Iraque. “Os arquitetos da invasão norte-americana e britânica imaginaram que o seu uso da força seria tão chocante, tão esmagador, que os iraquianos mergulhariam em um estado de vivacidade interrompida, muito parecida com aquele descrita no manual Kubark (da CIA)”.
O certo é que parte dos grandes empresários norte-americanos, evangelizados por Friedman, se imbuíram do chamado “destino manifesto”, de levar o capitalismo em estado puro para os povos primitivos. Personagens contemporâneos, como os irmãos Kock repetem os W.R.Grace, católicos de origem irlandesa que, nos anos 60, bancavam o padre Peyton e sua cruzada pelo “rearmamento moral”.
Desde Adlai Stevenson, a CIA tornou-se a parceria fundamental nessa cruzada capitalista, em que se misturam interesses empresariais, a pregação evangélica, a síndrome do “destino manifesto” e a geopolítica do Departamento de Estado. A última tentativa (fracassada) foi quando Otto Reich, do Departamento de Estado, articulou com os grupos de mídia venezuelanos a deposição do presidente Hugo Chávez.

Peça 3 – a “vivacidade interrompida” no golpe brasileiro

Em algum lugar do passado recente, o Brasil era uma nação prestes a entrar para o primeiro time. Indústria naval, cadeia produtiva do pré-sal, grandes empreiteiras, montagem de uma forte indústria nacional de medicamentos, multinacionais brasileiras começando a conquistar o mundo, a diplomacia brasileira se impondo nos principais fóruns globais.
Em pouco tempo o país entrou na fase da “vivacidade interrompida”, a sensação da crise terminal, da falta de saídas, o pessimismo repetido 24 horas por dia, o fim do mundo ao alcance da próxima manchete. Instaurou-se a tal crise pressentida.
O que aconteceu?
A partir da AP 470, a imprensa explorou duas estratégias paralelas. Uma, a da luta contra a corrupção, personificada no PT e em Lula. Outra, a luta de classes, levantando diuturnamente as ameaças chavistas, estigmatizando as políticas sociais, enfatizando a falta de cultura e de verniz dos adversários. É por aí que tem início a cooptação das classes médias, da elite das corporações públicas e do próprio Ministério Público Federal, o reino dos PhDs contra o primarismo dos chavistas.
O brilhante desempenho de Lula e Dilma de 2008 a 2012 anulou a estratégia. Mas a imprensa não interrompeu sua campanha massacrante, sistemática, de desconstrução do que estava sendo feito. Valeram-se de diversos subterfúgios. Se se levantavam grandes obras, com 90% concluídas, enfatizavam os 10% que faltavam. Em um programa social com 15 milhões de famílias assistidas, a manchete era a pequena corrupção identificada em um ponto qualquer do país. Na Copa do Mundo, enquanto os estádios e aeroportos eram construídos, destacava-se o fato de não estarem prontos. Entregues, o destaque era para a falta de sabonete nos banheiros.
Com os sinais de bonança revertendo, as manifestações de junho de 2013 foram o primeiro alerta de que que o pêndulo da opinião pública começava a inverter.
Instalada a crise, a “teoria do choque” pode colocar a cabeça de fora. Parlamentares como Aécio Neves, no Senado, e Eduardo Cunha, na Câmara, trataram de bloquear toda a atividade parlamentar, negando ao governo Dilma as ferramentas mínimas para consertar os erros. Aécio, José Serra e Fernando Henrique Cardoso tornaram-se os porta-vozes do caos estimulando o movimento golpista nas ruas e nos jornais, enquanto a parceria PGR-Lava Jato-mídia tratava de incendiar a classe média com as denúncias de corrupção focadas exclusivamente no PT e em Lula.
Nesse período, para preparar o bote final o Procurador Geral da República (PGR) Rodrigo Janot foi ao Departamento de Estado pedir a bênção e voltou com malas digitais repletas de informações sobre as contas das empreiteiras no exterior e sobre a corrupção na Eletronuclear. Ali, na cooperação internacional, os Estados Unidos deram a contribuição mais ostensiva para o golpe. Outras contribuições demandarão algum tempo para virem à tona.
O discurso anticorrupção foi o mote que juntou todas as pontas, criando o sentimento da classe e fornecendo o álibi para quem pretendesse pular no barco da conspiração.

Peça 4 - o fator Dilma

Sob esse céu coalhado de bombas, há o fator Dilma Rousseff, é verdade.
Poucas vezes na história teve-se governo mais desastrado e indefeso.
Montou a mais ousada política industrial desde o 2o PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) em torno do pré-sal e da Petrobras. Estaleiros, renascimento da indústria de máquinas e equipamentos, atração de laboratórios de grandes multinacionais ao país, montagem pela Petrobras de programas de compras públicas que dotariam o país de competência interna imbatível para tecnologia de extração de petróleo em águas profundas, internacionalização das empreiteiras. Toda essa responsabilidade nas costas da Petrobras. E, de repente, a Petrobras passa a ser sufocada pelos sub-reajustes de combustíveis, como parte da tática de empurrar a inflação com a barriga.
Dilma se fechou para todos os segmentos, dos movimentos sociais aos empresários, e ainda assistiu inerte a Lava Jato completar a destruição de parte relevante do PIB sem esboçar um gesto de resistência.
O ciclo se fecha com sua teimosia em se candidatar à reeleição e a falta de vontade de Lula de enfrentar a bucha que surgia no horizonte.
Dilma não entendeu o terceiro tempo das eleições, que se iniciou no dia seguinte à abertura das urnas, trancou-se no Palácio, fez dieta e reapareceu em público no dia da posse, com um ministério tirado do colete, sem nenhuma espécie de articulação política e com um pacote econômico desastroso.
Consumou-se o desastre com o plano Joaquim Levy, uma tragédia óbvia e cantada, de que ajuste fiscal com recessão seria um desastre econômico e uma sinuca política.  Aliás, mote repetido várias vezes por Dilma em sua apresentação no Senado – mostrando que sempre descobre o caminho certo com alguns anos de atraso.
Dilma foi apenas o desastre que facilitou o golpe, mas que jamais poderia servir de álibi para a implantação do estado de exceção. A economia teria condições de se recuperar, não fosse o cerco do Congresso e da mídia. Estava-se longe do estado de caos retratado na cobertura jornalística, especialmente na pregação massacrante da Globo. Mas, o cavalo de Troia do governo – a PGR – já tinha deflagrado a ofensiva final.

Peça 5 – a corrida contra o relógio

Agora se entra naquele período crítico previsto por Friedman, de seis a nove meses sob a égide do “vazio primitivo” para enfiar goela abaixo do país as reformas previstas. Daí esse braço de guerra, com jornais abrindo manchetes esbaforidas, tipo se a reforma da Previdência não acontecer nos próximos dias, o futuro estará comprometido, e outras baboseiras destinadas à ralé da opinião pública. Ou a pressa de Serra e associados de correr com a lei do petróleo e a privatização acelerada na Petrobras, mesmo com a economia na bacia das almas.
A blitzkrieg esbarra, no entanto, nos seguintes fatores:
O Fora Temer
É o fato novo, que vem em um crescendo, entrando por todos os poros do mercado de opinião, inclusive nas brechas abertas inadvertidamente pela mídia, é o Fora Temer. Há o risco concreto de que o tema ganhe os leitores de jornais. Daí a montagem do sistema de repressão e da tentativa de envolver as Forças Armadas, através dos factoides dos supostos terroristas islâmicos, como têm demonstrado as extraordinárias reportagens de Marcelo Auler (https://is.gd/kX67p6).
Há alguma probabilidade de que pegue o discurso das “diretas-já”.
A ilegitimidade das reformas
Nenhum investidor minimamente informado apostará em reformas que dependem de um golpe para serem implementadas. Lula e Dilma avançaram em algumas reformas relevantes, pelo fato de possuírem credibilidade junto aos movimentos sociais e às esquerdas. Temer não tem nem credibilidade institucional nem pessoal. O que acontecerá a partir de 2018?
A construção de Temer
Daí, a uma tentativa bisonha de construir uma imagem pública minimamente defensável para Temer. Repare na foto ao lado. É a cara do governo, Eliseu Padilha, cercado pelos holofotes da mídia. Uma breve pesquisa no Google mostrará uma extensa capivara do Ministro-Chefe da Casa Civil. Como tornar o governo legítimo? É o Eliseu de Canoas, do DNIT, dizendo-se defensor da Lava Jato e das reformas.
../../Pictures/Fototeca.photoslibrary/Masters/2016/09/12/20160912-141359/IMG_2384.JPGA tentativa de isolar Temer, como se fosse uma jovem virginal envolvida por malandros, não cola. Só o eminente jurista Celso Antônio Bandeira de Mello tenta acreditar nisso. A vida política de Temer está estreitamente ligada às de Eliseu Padilha, Eduardo Cunha, Moreira Franco, José Serra, Geddel Vieira Lima.
Mesmo abstraindo a biografia, Temer não conseguirá compor o figurino do estadista, ou meramente do presidente que paire acima das quizílias do dia-a-dia. É miúdo, vingativo, tem um linguajar antiquado, baixíssimo nível de informação, nenhuma empatia com o público. O jornal O Globo abriu uma enorme oportunidade para mostrar o lado “humano” de Temer e ele jogou fora dando um golpe no rei Arthur e colocando em seu lugar Carlos Magno, que, por sua vez, abriu mão dos Doze Pares de França para comandar os Cavaleiros da Távola Redonda, provavelmente em uma escaramuça lá em Diamantina, onde nasceu JK.
A alternativa encontrada foi focar em uma primeira dama jovem, bonita, discreta e... muda. Foi ridícula a solução encontrada, de tirar conclusões políticas do “look” branco que ela utilizou em uma solenidade qualquer. Ridícula por expor a necessidade dos jornais de arrostar o impossível e o ridículo para atender o governo Temer e fazer jus à bolsa mídia prometida por Eliseu Padilha.
O fator Lava Jato
Na Lava Jato há dois personagens acusados de jogo político, de perseguição ao PT e de proteção ao PSDB: o PGR Rodrigo Janot e o juiz Sérgio Moro. Janot não conseguirá desvencilhar-se do estigma simplesmente por não ter nem vontade nem condição política de indiciar Aécio Neves.
No entanto, há alguns sinais no horizonte de que Moro pretenda passar no teste de imparcialidade investindo na delação de Eduardo Cunha.
Consumada a cassação de Eduardo Cunha, a maior probabilidade é de que em poucos dias ele seja conduzido preso à Curitiba e submetido a uma delação conduzida por Moro. Isso ocorrendo, sairia das asas de Janot e se abriria alguma possibilidade de rompimento da blindagem sobre Aécio Neves e de ameaças concretas contra o governo Temer.
Há uma probabilidade - pequena, por enquanto - de crescimento do "diretas já" e de abreviação do governo Temer.