sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Arte digital - por Marcela Bolivar (marcelabolivar.deviantart.com)

Obsessão anti-Dilma ajuda Marina – por Paulo Moreira Leite (ISTOÉ)

A atitude generosa dos meios de comunicação diante das dificuldades de Marina Silva para registrar a Rede de Sustentabilidade no TSE só se explica pela obsessão conservadora de impedir de qualquer maneira a reeleição de Dilma Rousseff.

Basta ler as pesquisas eleitorais recentes para constatar o óbvio. Entre tantos concorrentes oposicionistas, o único nome que aparece como concorrente competitiva é Marina Silva.

Outro candidato, Aécio Neves, pode até ganhar fôlego e demonstrar maior musculatura. No momento, enfrenta, mais uma vez, o apetite de José Serra de roubar-lhe a faixa de concorrente.

A obsessão em impedir a reeleição de Dilma cresceu depois que sua recuperação junto ao eleitorado foi confirmada pelo Ibope e ajuda a entender o caráter desonesto da campanha contra a vinda de médicos cubanos.

Numa atitude que demonstra até onde o interesse eleitoral pode chegar, nosso conservadorismo deixa claro que prefere sacrificar a saúde da população mais pobre, sem assistência médica de nenhum tipo, apenas para tentar impedir que Dilma possa apresentar alguma – modesta mesmo, vamos reconhecer – melhoria numa área tão abandonada do serviço público.

Enquanto isso, Marina tem sido tratada a pão de ló.

Agora, ela procura um tratamento preferencial: seus advogados querem ampliar o prazo legal para o exame e aprovação das 492.000 assinaturas necessárias para legalização de seu partido, a Rede de Sustentabilidade.

Certo? Errado?

Não se preocupe. Se for preciso, dá-se um jeito.

Há antecedentes no tratamento especial a Marina.

Numa decisão que mais tarde seria revertida pelo plenário do STF, em abril o ministro Gilmar Mendes fez um momento brusco em benefício da sua candidatura, acolhendo um mandato de segurança que a beneficiava. O Congresso debatia naquele momento uma medida que, ao atrapalhar a criação de novos partidos num universo com 29 siglas já existentes, poderia dificultar a formação da Rede.

Ao justificar uma intervenção insólita no processo, o ministro empregou um argumento de natureza política. Sugeriu que, ao prejudicar a formação do partido de Marina, a medida poderia prejudicar o equilíbrio entre as candidaturas em 2014.

A medida em debate no Congresso até poderia estar errada, vamos admitir. O problema é que, num país onde a Constituição diz que todos os poderes emanam do povo, quem tem o direito de decidir se os pleitos serão equilibrados, desequilibrados, uma barbada ou uma disputa aflita até o último minuto é o eleitor – e mais ninguém.

Capaz de obter a marca respeitável de 20 milhões de votos em 2010, Marina Silva demonstra uma imensa dificuldade para construir uma organização coletiva e estabelecer um projeto coerente de disputa pelo poder político. Sua dificuldade para reunir quase meio milhão de assinaturas certificadas pela Justiça eleitoral não envolve um problema burocrático nem se explica pela má vontade de cartórios eleitorais. A causa é política.

“O que é a Rede?”, podemos perguntar.

Marina já declarou que a Rede não é da situação nem da oposição. Mesmo assim, foi poupada de qualquer crítica impiedosa, ao contrário do que ocorreu com Gilberto Kassab, quando disse que seu PSD não era de direita nem de esquerda.

O fiasco na coleta de assinaturas tem uma causa óbvia. Marina não tem uma máquina política profissional, com um mínimo de articulação nacional, como acontece com todo partido que tem ambições reais de chegar ao poder de Estado.

Tampouco conseguiu construir um movimento social orgânico, estruturado, para bater pernas voluntariamente em busca do apoio do cidadão comum.

Isso acontece porque até agora Marina não conseguiu entrar no debate político real sobre o país.

Existe como mito, o que tem inegável valor eleitoral enquanto permanecer sob proteção dos meios de comunicação.

Mas até agora não formulou um projeto coerente para o país, o que tem seu preço quando se tenta construir um partido, formar alianças, cobrar lealdades, definir prioridades e preferências.

Sua bandeira maior, o ambientalismo, tem um inegável poder de atração, em especial junto a eleitores jovens.

Falta explicar, no entanto, como se pretende combinar o controle ambiental com outras necessidades. Não estamos na Alemanha. (Eu acho que nem na Alemanha as discussões ocorrem como se pensa que elas ocorrem, mas deu para entender, certo?)

Até as crianças sabem que não existe ecologia grátis. Exigências ambientais têm a contrapartida inevitável de reduzir a velocidade do crescimento econômico, o que coloca uma questão essencial, que é saber como Marina pretende combinar um discurso que faz do meio ambiente a prioridade número 1 com a necessidade de o país desenvolver-se, criar empregos e gerar riquezas para garantir uma situação de bem-estar à maioria de sua população.

Economistas de extração tucana e até mais conservadora que hoje cercam a candidata se dão bem com a ecologia porque ela ajuda a falar -- com elegância -- sobre limites naturais para o crescimento, em decrescimento, que é uma recessão programada, e outros eufemismos de quem considera que o desenvolvimento e a criação de empregos deixaram de ser prioridade mesmo no Brasil. Essa aproximação não surpreende, portanto, e ajuda Marina a ser abençoada pelo grande capital financeiro.

Mas economistas disputam votos na academia, costumam brilhar em reuniões fechadas e cobram somas milionárias para fazer profecias em encontros com empresários. Marina irá procurar votos junto ao povão pregando medidas recessivas e corte em gastos públicos e políticas sociais, como reza a cartilha de princípios de austeridade de seus economistas?

Irá dizer que o Estado de Bem-Estar Social é meio caminho andado para a servidão humana, como afirma Friederich Hayek, guru austríaco da maioria deles?

Outro aspecto é que a maior parte dos 20 milhões de votos de Marina são fruto de um casamento que juntou duas conveniências. O cansaço de uma parcela da juventude com o PT e o conservadorismo de setores evangélicos mobilizados contra a legalização do aborto e os direitos dos gays.

Embora candidatos que mobilizam grandes parcelas do eleitorado sejam capazes, normalmente, de conseguir votos em setores diferenciados e mesmo em conflito permanente, estamos falando de um casamento-relâmpago entre parcelas da sociedade que se detestam e se excluem.

Resumindo: foram eleitores de Marina, em grande parte, que organizaram grandes protestos para denunciar Feliciano. São eleitores de Marina, também, que lhe dão apoio.

Como combinar tudo isso e fazer um partido?

Essa é a pergunta.

Fotografia da guerra civil Síria - por AFP/Yahoo!


Homs, Síria – Imagem aérea mostra a destruição na cidade de Homs, na Síria, maior foco de confronto entre forças rebeldes contra o governo do ditador Bashar al-Assad.

Depois da tempestade, a decepção – por Anahuac de Paula Gil (Blog do Nassif)

Passada a tempestade provocada pelo impacto dos anúncios feitos pelo Snowden, a situação fica ainda mais sinistra. Infelizmente nenhuma das partes envolvidas parece disposta a ceder ou reconhecer que há algo errado, e que é necessário dar uns trinta passos atrás para começar. Há um catatonismo frio e triste no ar.

Mas, o menos disposto, é exatamente o mais atingido. É como se esses loucos, aqueles do outro planeta, de uma galaxia muito, muito distante, estivessem tendo algum tipo de problema que não me diz respeito. A amostra de pessoas que entendem a gravidade do que está acontecendo é tão pequena que a considero desprezível, portanto ninguém está dando a mínima para as denúncias de monitoramento global.

Sejamos honestos: o único que realmente entendem a gravidade da situação, e tem reagido com a ferocidade coerente, é o governo dos USA. Porque será? Porque o governo mais poderoso do Mundo se importa em ser descortinado quando mais ninguém reage. Meu recado imediato ao Obama é que ele pode ficar tranquilo, ninguém fará nenhuma oposição contundente. Pode vestir sua camisa florida e ir surfar no Havaí, pois a “tchurma tá de boa” atualizando seus perfis no Facebook como se não houvesse amanhã.

As pessoas não mudaram seu cotidiano, não se indignaram, nem se manifestaram, nem removeram seus perfis das redes sociais devassas, nem mudaram de e-mail. Nada mesmo. “E para que o mal prevaleça, basta que os bons não façam nada”, então o mal prevaleceu. Ninguém desligou seu celular, ninguém ligou para sua operadora de telefonia para questionar, ninguém mandou uma mensagem para a Microsoft para se queixar, ninguém removeu a sua conta do Gmail do seu Android. Nenhum governo decretou a remoção dos sistemas operacionais envolvidos, nem adoção de políticas de encriptação de dados, nem auditoria de código computacional, nem qualquer tipo de embargo, nem mesmo uma queixa formal.

A falta de reação é tamanha que as vezes me pergunto se não foi um sonho. Talvez uma ressaca daquelas!? Nem mesmo os mais aguerridos defensores da privacidade, da liberdade computacional e da democratização do conhecimento tecnológico, parecem convencidos da gravidade da situação. Movimentos como o do Software Livre, Cultura Digital, Ética Hacker, Dados Abertos e Inclusão digital, estão completamente inoperantes. As vozes dissidentes, antes orgulhosos de serem os “radicais livres”, hoje se escondem por trás de desculpas meramente humanas e mundanas, para continuar com suas contas do Gmail, Facebook e usar seus iPads e iPhones. Sinto um pesar desmedido ao escrever estas linhas.

As redes sociais devassas, com o apoio massivo das mídias tradicionais e o uso perverso do marketing, conseguiram incutir na cabeça dos supostos revolucionários digitais, que está tudo bem, ou que é aceitável, ou que é inevitável reagir, ou que se ganha mais do que se perde, ou que não há nada a esconder, ou que “eles” não estão interessados em você. Se qualquer uma dessas opções fosse verdade, não teriam sido investidos bilhões de dólares na criação de ferramentas, propaganda, e análise de dados. Você é muito importante para “eles”, então não desligue agora. Especialmente você que acha que o Mundo deve ser um lugar melhor, pois você é a verdadeira ameaça.

Quanto vale saber com a devida antecedência a opinião pública? Esse é o sonho mais sonhado pelo capitalismo, saber antes para poder se alinhar e explorar em seu benefício essa “tendência”. E não estou me referindo ao simples alinhamento econômico, não estou me referindo ao lançamento de mais um produto da cultura Yankee que você e seus filhos vão adorar. Estou me referindo ao alinhamento político que permite controlar países e o destino de milhões de uma vez só. Assim não é preciso esperar as próximas eleições para ter certeza se os atos políticos estão surtindo o efeito desejado. Basta analisar os dados do “Face”. É por isso que estão estimulando que todos façam parte. É a chamada rede social revolucionária! A responsável pela libertação dos países árabes. Mentiras puras e maquinadas para te estimular a ficar por lá.

Faça algo pela sua liberdade e pela do resto do Mundo. A moda é imbecilizante por que ela atende a interesses maiores. Saia da Matrix!

Então nos veremos por ai, no mundo real, na Internet livre, segura, encriptada e das redes sociais federadas. Ou não nos veremos.

Saudações Livres!

Perseguição - por Coolvibe (Arte digital)

Ofensas a "Médicos Cubanos" expõem o pior do Brasil - por Bob Fernandes (Terra Magazine)

Segue o debate sobre os médicos estrangeiros do programa "Mais Médicos". Programa e debate que tentaram encaixotar no alvo ideológico rotulado de "Médicos Cubanos".

Quem pensou que o rótulo serviria para desgastar, e para obter dividendos políticos, deve ter se arrependido. O debate está pondo a nu deficiências não apenas no setor de Saúde.

Expõe também o que pensam e como veem o país lideranças de uma corporação, a dos médicos. Mas não só. Os embates públicos permitem quase uma tomografia, um exame clínico do próprio Brasil.

Há argumentos sólidos, ou risíveis, de parte a parte; dos que são a favor e dos que são contra a vinda dos médicos. Dos que são contra, incontáveis relatos sobre o evidente descaso com a infraestrutura da Saúde país afora.

Tais relatos embutem algo precioso a ser discutido. O Brasil tem 513 anos, tem 27 estados e 5.564 municípios. Por que, até hoje, o país não tem nem um médico em 700 municípios? Por que outro milhar de cidades só tem um ou dois médicos?

A resposta é quase automática e parece fácil: "Porque o governo é incompetente". Como o Brasil tem 513 anos, pergunte-se: qual dos governos? E de qual dos 5 séculos?

Os governos da União? Os de 26 estados e DF, ou os de mais de 5 mil prefeituras e seus 60 mil vereadores?

Além da União e seu ministério, os estados e municípios têm Secretarias da Saúde e verbas. Por que não resolvem, ou ao menos amenizam o problema?

Será que o descaso com a Saúde Pública não tem relação com o fato de o país produzir a 2ª pior distribuição de renda do mundo?

Brasileiros ricos têm pelo menos U$$ 520 bilhões depositados em paraísos fiscais. Cidadãos devem mais de R$ 1 trilhão ao fisco. E União e Estados devem mais de R$ 100 bilhões aos cidadãos.

Será que isso não caracteriza uma maneira de encarar a vida em sociedade? Em especial, de parte da sociedade que tem e sempre teve poder de fato?

Até que viessem o anúncio do "Mais Médicos" e os tais "médicos cubanos", quando e com que vigor entidades de classe e médicos saíram às ruas para protestar contra o escândalo que é a Saúde Pública?

Quando protestaram, por exemplo, contra Planos de Saúde que maltratam milhões de pacientes e também os próprios médicos?

Médicos cearenses vaiaram colegas cubanos em Fortaleza. E não nasceu do nada a opinião da jornalista Micheline Borges, que no facebook disse:

- Médicas cubanas têm cara de empregada doméstica. Será que são médicas mesmo? Afe, que terrível. Médico tem postura, cara de médico, se impõe a partir da aparência.

As vaias cearenses não são únicas. E Micheline não é, infelizmente, voz isolada. Elas representam uma porção importante do país. A que resistiu, por exemplo, à PEC das empregadas domésticas. E que pensa exatamente da mesma forma.

Ao supor que defendem a Saúde, pessoas como Micheline ajudam a explicar porque, com 513 anos, o Brasil tem a Saúde Pública que tem.

Fotografia - por James P. Blair (National Geographic)

O vandalismo - por Lincoln Secco (blog da Boitempo)

“Os protestos são legítimos desde que não haja vandalismo”. Quem nunca ouviu este mantra nos últimos tempos? Não vale a pena buscar no velho socialista Houaiss a definição do vocábulo. Vandalismo é tudo aquilo que destoa da mensagem dos monopólios dos meios de comunicação. Assim, compara-se a quebra de uma vitrine de um Banco a um ato violento. Ora, a violência é uma relação social entre pessoas.

É estranho que o espancamento de manifestantes seja tratado como “confronto” e o ataque a símbolos da ostentação capitalista seja algo violento. É só assim que a desumanização do discurso burguês chega ao paroxismo. A reunião para protestar nas ruas torna-se formação de quadrilha, especialmente se pretende denunciar a verdadeira quadrilha do PSDB que assaltou o Estado de São Paulo ou a administração desavergonhada de Cabral no Rio de Janeiro.

É verdade que manifestantes cometem excessos. Atacam por vezes o bem público. Além disso, as manifestações são infestadas por grupelhos fascistas e policiais infiltrados. Mas mesmo quando se excedem os manifestantes jamais podem ser comparados à violência do opressor. Afinal, por que aquele jovem negro e mascarado da periferia que disse que a polícia matou o seu pai não colocaria pedras na mochila?  É mais do que um ato pessoal. É um ato político. Deixo aos especialistas a análise antropológica de Black Blocs, “estética” das manifestações etc.

Um jovem massacrado pelas dimensões desumanas da cidade, impossibilitado de se apropriar dela pela configuração do espaço urbano desenhado pela malha viária capitalista (como mostra Ivan Illich em seu estudo “Energia e equidade”) tende a protestar sem luvas de pelica. Mesmo os de classe média, agora acordados pelo caos da retomada do desenvolvimento capitalista periférico.

Recordo-me quantos jovens de periferia nos anos 1980 não hesitavam entre o sufocado ranger de dentes e a raiva aberta aos que simplesmente tinham automóvel, telefone em casa* ou moravam em bairros “nobres”. Quantas vezes não cuspiam na vidraça de um restaurante que supunham luxuoso ou chutavam uma lixeira, aliviados. Ou permaneciam sem dinheiro na porta da velha Ledslay vendo os “playboys” da Zona Leste (!) paulistana entrar. Bem, para falar a verdade eles estavam longe de serem playboys

O ódio da Polícia era unânime. As batidas terminavam com armas de grosso calibre nas nucas. Coisas piores podem ser lidas no excelente Rota 66 de Caco Barcelos. Ao contrário de muitos militantes atuais da ação direta, eram desenraizados e só mais tarde “educados” pela pedagogia de uma esquerda que não chegava à periferia, mas nascia nela. Numa pequena área da Zona Leste (Cangaíba e Engenheiro Goulart) havia 4 núcleos: dois do PT, um do PMDB e outro do PCB. O PC do B, MR-8 e tendências de esquerda do PT tinham militantes nas escolas secundárias.

Hoje o bairro é muito melhor. A estação de trem foi remodelada e há até um campus da USP. Mas a política do protesto foi embora e a violência persistiu. Um sofista diria que a periferia não é um “sujeito abstrato” que gera violência. Claro, ela é um resultado concreto de uma violência que não provêm dela, mas da política consciente de governantes que perpetuam a desigualdade social.

A verdade é que uma adequada quantidade de violência é inerente ao regime de classes. O que incomoda os de cima não é a violência inorgânica. Como sabemos, ela é dispersa em baixo, de modo a justificar o apoio das classes trabalhadoras à ideologia da segurança, como mostrava Florestan Fernandes num texto seminal chamado “Nos marcos da violência”.

Todavia, ela é concentrada no topo e subdividida em algumas corporações especializadas no seu uso funcional para a reprodução da ordem burguesa: a polícia, as forças armadas e os órgãos de vigilância legais e ilegais.

Que tipo de violência realmente incomoda os porta-vozes das classes dominantes? Os tipos disfuncionais. São eles: a contra-violência dos protestos das classes subalternas quando ultrapassam os “limites” e a violência revolucionária. Estamos longe desta, portanto é a simples autodefesa dos movimentos das ruas que se torna um problema para a ordem.

Para a direita, toda violência permitida deve vir de cima e de maneira concentrada. Toda violência tolerada deve vir de baixo desde que de maneira desorganizada.

O que choca é o fato de grupos de jovens se organizarem para proteger os manifestantes desarmados, resistindo à violência e à identificação policial com as “armas” que as ruas sempre forneceram: paus, pedras, estilingues, bolinhas de gude, vinagre, keffiyeh palestino para cobrir o rosto, escudos, tocas, máscaras, casacos e calças jeans resistentes a arranhões, lixeiras arrancadas, mastros de bandeira de caibro (e não de PVC), miguelitos, coquetéis de garrafas plásticas com busca-pé de pavio e a simulação de uma “guerra de movimento”: desaparecer e aparecer em outro local para confundir e dividir a repressão. Cada geração reaprende que a pressão é uma dada força sobre determinada área: basta aumentar a zona de cobertura que o contingente de repressão se rarefaz.

Evidentemente a polícia sabe disso tudo, mas o seu contingente é limitado pelas liberdades democráticas conquistadas nos anos 1980 e pela difusão de imagens de desmandos policiais em tempo real via telefones móveis. A “publicidade” das lutas é que garante o sucesso das “armas” de rua.

No Brasil vivemos um descompasso entre a dinâmica da economia capitalista do centro e o funcionamento daquilo que Carlos Marighella denominava “democracia racionada”. A forma desta democracia é a rotinização da violência burguesa e a condenação perene da autodefesa dos que lutam.

O que os protestos do Movimento Passe Livre conquistaram não pode ser perdido e sim aprofundado. Trata-se da absorção construtiva da violência organizada dos trabalhadores, dos jovens e inconformados na construção de uma democracia anticapitalista.

Não é justo que o povo tenha medo da polícia. E que a polícia continue a ter o papel que lhe parece natural: o poder de vida e morte de pobres e pretos. É preciso ensinar respeito à polícia. Pela primeira vez na história recente do país ela experimentou o medo das multidões.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Fotografia da terra à noite - por Nasa / Pravda / Blog do Nassif

Barroso foi o triunfo da esperança sobre a experiência - por Paulo Nogueira (Diário do Centro do Mundo)

Sua contribuição para o julgamento pode ser representada numa palavra: zero.

Ele vai entrar para o anedotário jurídico nacional


O ministro Luís Roberto Barroso rapidamente demonstrou que foi o triunfo da esperança sobre a experiência.

Alguns otimistas imaginavam que ele traria um pouco mais de nexo ao STF no julgamento do Mensalão. Mas o que ele fez foi reforçar as fileiras do absurdo.

Há de entrar para a antologia das asneiras jurídicas brasileiras sua frase segundo a qual, embora discordasse de muitas coisas, votaria com a manada barbosiana por entender que não se deveria mexer num processo já na etapa final.

Eu não gostaria nada de ver Barroso entrar num grupo já formado de juízes para deliberar sobre minha sentença de enforcamento. Fico imaginando-o dizer que embora discorde da forca vota nela porque assim os outros juízes decidiram. Adeus, pescoço.

Não me incluí entre os esperançosos ao saber da sua indicação.

Ao pesquisar sobre ele, a primeira luz amarela que me veio foi saber que ele fora advogado da Abert, a associação que faz lobby para a Rede Globo.

Ninguém tem este tipo de cargo à toa.

O amarelo ganhou intensidade quando vi a alegria com que comentaristas da Globo o saudaram. Era como se dissessem: “É dos nossos!”

A luz amarela se converteu em vermelho depois que li um artigo no qual Barroso defendia a reserva de mercado para as empresas de mídia – um privilégio que fere visceralmente a livre concorrência.

No texto, publicado no Globo, Barroso exaltava as novelas como “patrimônio cultural” brasileiro. Deviam ser preservadas da sanha estrangeira.

Pausa para rir.

Devemos, portanto, proteger novelas que empurram o futebol para horas tardias e que fazem coisas como, por meio de merchandisings milionários, estimular os brasileiros a tomar cerveja em todas as ocasiões.

Nova pausa para a risada.

Um advogado comprometido com o interesse público lutaria por banir o merchandising – a propaganda que é infiltrada numa trama como se não fosse propaganda.

O espectador é, em suma, ludibriado.

Mas o apogeu do artigo de Barroso veio num risco que ele identificou caso caísse a reserva: uma emissora chinesa poderia fazer propaganda do maoísmo a brasileiros desavisados.

Uma nova pausa, agora para gargalhar.

Para evitar as perigosas pregações de Mao, viciemos os brasileiros em cerveja, portanto, para benefício do patrimônio da família Marinho e dos fabricantes de cerveja.

Este é Barroso.

Um homem que escreve um texto como aquele poderia ser um contraponto à brutalidade sem freios de Joaquim Barbosa?

Poderia dizer para JB que a civilizada, exemplar Noruega condenou um assassino como Breivik a 21 anos e ele pede penas muito maiores para os acusados do Mensalão?

Jamais esperei isso.

Mas muitos sim. E eles agora se vêem na triste, na desolada condição de vítimas do triunfo da esperança sobre a experiência.

Fotografia - por National Geographic

O repórter que descobriu o whistleblower da Siemens - por Bryan Gibel (Agência de reportagem e jornalismo investigativo)



Há três anos, o jornalista Bryan Gibel veio da Universidade de Berkeley para o Brasil para investigar a corrupção no metrô de São Paulo; aqui, o jornalista encontrou o ex-executivo da Siemens que revelou quase tudo que se publica hoje sobre a relação entre Alstom, Siemens e o PSDB paulista


Segue o link com a sequência da reportagem:
http://www.apublica.org/2013/08/reporter-desacobriu-whistleblower-da-siemens/


Comentário
Colocarei somente o link da postagem, posto que ela é demasiado extensa.
De qualquer forma, é escancarada a corrupção do governo paulista e do Distrito Federal, incluindo os governos de Joaquim Roriz, José Roberto Arruda, Covas, Serra e Alckmin.
É pena que o MP paulista seja completamente dominado pelos tucanos. Há anos escuto estes comentários sobre a Alston e só agora, depois de delação por conta de problemas da empresa na Europa é que a coisa começa a apertar por aqui.
Ademais, mesmo com fartas provas e valores extravagantes, muito maiores do que até mesmo os da acusação do mensalão, como podemos verificar, não é dada nem um centésimo da importância que foi dada ao mensalão a este escândalo. É só mais um dos múltiplos exemplos de quão honesta, imparcial e ética é a nossa imprensa marrom.

domingo, 25 de agosto de 2013

Pintura - por Tokuhiro Kawai (cristinafaleroni.blogspot.com)

Em vez Havana? - por Paulo Moreira Leite (ISTOÉ)

O debate sobre a chegada de médicos cubanos é vergonhoso

Do ponto de vista da saúde pública, temos um quadro conhecido. Faltam médicos em milhares de cidades brasileiras, nenhum doutor formado no país tem interesse em trabalhar nesses lugares pobres, distantes, sem charme algum – nem aqueles que se formam em universidades públicas sentem algum impulso ético de retribuir alguma coisa ao país que lhes deu ensino, formação e futuro de graça.

Respeitando o direito individual de cada pessoa resolver seu destino, o governo Dilma decidiu procurar médicos estrangeiros. Não poderia haver atitude mais democrática, com respeito às decisões de cada cidadão.

O Ministério da Saúde conseguiu atrair médicos de Portugal, Espanha, Argentina, Uruguai. Mas continua pouco. Então, o governo resolveu fazer o que já havia anunciado: trazer médicos de Cuba.
Como era de prever, a reação já começou.

E como eu sempre disse neste espaço, o conservadorismo brasileiro não consegue esconder sua submissão aos compromissos nostálgicos da Guerra Fria, base de um anticomunismo primitivo no plano ideológico e selvagem no plano dos métodos. É uma turma que se formou nesta escola, transmitiu a herança de pai para filho e para netos. Formou jovens despreparados para a realidade do país, embora tenham grande intimidade com Londres e Nova York.

Hoje, eles repetem o passado como se estivessem falando de algo que tem futuro.

Foi em nome desse anticomunismo que o país enfrentou 21 anos de treva da ditadura. E é em nome dele, mais uma vez, que se procura boicotar a chegada dos médicos cubanos com o argumento de que o Brasil estará ajudando a sobrevivência do regime de Fidel Castro. Os jornais, no pré-64, eram boicotados pelas grandes agencias de publicidade norte-americanas caso recusassem a pressão americana favorável à expulsão de Cuba da OEA. Juarez Bahia, que dirigiu o Correio da Manhã, já contou isso.

Vamos combinar uma coisa. Se for para reduzir economia à política, cabe perguntar a quem adora mercadorias baratas da China Comunista: qual o efeito de ampliar o comércio entre os dois países? Por algum critério – político, geopolítico, estético, patético – qual país e qual regime podem criar problemas para o Brasil, no médio, curto ou longo prazo?

Sejamos sérios. Não sou nem nunca fui um fã incondicional do regime de Fidel. Já escrevi sobre suas falhas e imperfeições. Mas sei reconhecer que sua vitória marcou uma derrota do império norte-americano e compreendo sua importância como afirmação da soberania na América Latina.

Creio que os problemas dos cidadãos cubanos, que são reais, devem ser resolvidos por eles mesmos.

Como alguém já lembrou: se for para falar em causas humanitárias para proibir a entrada de médicos cubanos, por que aceitar milhares de bolivianos que hoje tocam pedaços inteiros da mais chique indústria de confecção do país?

Denunciar o governo cubano de terceirizar seus médicos é apenas ridículo, num momento em que uma parcela do empresariado brasileiro quer uma carona na CLT e liberar a terceirização em todos os ramos da economia. Neste aspecto, temos a farsa dentro da farsa. Quem é radicalmente a favor da terceirização dos assalariados brasileiros quer impedir a chegada, em massa, de terceirizados cubanos. 

Dizem que são escravos e, é claro, vamos ver como são os trabalhadores nas fazendas de seus amigos.

Falar em democracia é um truque velho demais. Não custa lembrar que se fez isso em 64, com apoio dos mesmos jornais que 49 anos depois condenam a chegada dos cubanos, erguendo o argumento absurdo de que eles virão fazer doutrinação revolucionária por aqui. Será que esse povo não lê jornais?

Fidel Castro ainda tinha barbas escuras quando parou de falar em revolução. E seu irmão está fazendo reformas que seriam pura heresia há cinco anos.

O problema, nós sabemos, não é este. É material e mental.

Nossos conservadores não acharam um novo marqueteiro para arrumar seu discurso para os dias de hoje. São contra os médicos cubanos, mas oferecem o que? Médicos do Sírio Libanês, do Einstein, do Santa Catarina?

Não. Oferecem a morte sem necessidade, as pragas bíblicas. Por isso não têm propostas alternativas nem sugestões que possam ser discutidas. Nem se preocupam. Ficam irresponsavelmente mudos. É criminoso. Querem deixar tudo como está. Seus médicos seguem ganhando o que podem e cada vez mais. Está bem. Mas por que impedir quem não querem receber nem atender?

Sem alternativa, os pobres e muito pobres serão empurrados para grandes arapucas de saúde. Jamais serão atendidos, nem examinados. Mas deixarão seu pouco e suado dinheiro nos cofres de tratantes sem escrúpulos.

Em seu mundo ideal, tudo permanece igual ao que era antes. Mas não. Vivemos tempos em que os mais pobres e menos protegidos não aceitam sua condição como uma condenação eterna, com a qual devem se conformar em silêncio. Lutam, brigam, participam. E conseguem vitórias, como todas as estatísticas de todos os pesquisadores reconhecem. Os médicos, apenas, não são a maravilha curativa. Mas representam um passo, uma chance para quem não tem nenhuma. Por isso são tão importantes para quem não tem o número daquele doutor com formação internacional no celular.

O problema real é que a turma de cima não suporta qualquer melhoria que os debaixo possam conquistar. Receberam o Bolsa Família como se fosse um programa de corrupção dos mais humildes. Anunciaram que as leis trabalhistas eram um entrave ao crescimento econômico e tiveram de engolir a maior recuperação da carteira de trabalho de nossa história. Não precisamos de outros exemplos.

Em 2013, estão recebendo um primeiro projeto de melhoria na saúde pública em anos com a mesma raiva, o mesmo egoísmo.

Temem que o Brasil esteja mudando, para se tornar um país capaz de deixar o atraso maior, insuportável, para trás. O risco é mesmo este: a poeira da história, aquele avanço que, lento, incompleto, com progressos e recuos, deixa o pior cada vez mais distante.

É por essa razão, só por essa, que se tenta impedir a chegada dos médicos cubanos e se tentará impedir qualquer melhoria numa área em que a vida e a morte se encontram o tempo inteiro.

Essa presença será boa para o povo. Como já foi útil em outros momentos do Brasil, quando médicos cubanos foram trazidos com autorização de José Serra, ministro da Saúde do governo de FHC, e ninguém falou que eles iriam preparar uma guerrilha comunista. Graças aos médicos cubanos, a saúde pública da Venezuela tornou-se uma das melhores do continente, informa a Organização Mundial de Saúde. Também foram úteis em Cuba.

Os inimigos dessas iniciativas temem qualquer progresso. Sabem que os médicos cubanos irão para o lugar onde a morte não encontra obstáculo, onde a doença leva quem poderia ser salvo com uma aspirina, um cobertor, um copo de água com açúcar. Por isso incomodam tanto. Só oferecem ameaça a quem nada tem a oferecer aos brasileiros além de seu egoísmo.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Perseguição - por Matthieu Roussel (Arte digital - Coolvibe)

O Black Bloc está na rua - por Piero Locatelli e Willian Vieira (CartaCapital)

Nem grupo nem movimento, essa tática de guerrilha urbana anticapitalista pegou carona nos protestos atuais. Como esse fenômeno pode impactar o Brasil

O bloco não é centralizado nem permanente.
São desconhecidos com anseios similares,
unidos para uma única ação.
E, por isso, incontroláveis
Com um martelo em punho, uma jovem de rosto coberto vestida de preto tenta destruir um Chevrolet Camaro (de 200 mil reais) em uma concessionária na Avenida Rebouças, São Paulo. Outros trajados da mesma forma, paus e pedras nas mãos, estilhaçam a parede de vidro de uma agência bancária. Uma faixa pede a saída do governador Geraldo Alckmin – o A do nome traz o símbolo de anarquia. Até chegarem as bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo da tropa de choque da PM. Sem movimento social ou partido à frente, o protesto reuniu cerca de 200 jovens, deixou lojas pichadas e 20 detidos na terça 30 de julho. Mas as cenas parecem repetidas, a ecoar os eventos que há meses têm chacoalhado o País.

Desde o princípio das manifestações de rua no dia 6 de junho de 2013 em São Paulo contra o aumento nas passagens de ônibus, muito ficou por ser entendido. Seria a carestia a motivação dos protestos que cruzaram a barreira de 1 milhão de pessoas em todo o Brasil ou o esgotamento do sistema político? E os manifestantes, eram jovens anarquistas sem partido ou seriam necessários novos conceitos para dar conta de tantas vozes? De todas as perguntas, a que mais intrigou o País segue sem resposta clara: em meio ao mar de cabeças e punhos em riste, quem eram e o que queriam aqueles jovens de preto dispostos a destruir bancos e lojas e enfrentar a polícia com as próprias mãos?

Black Bloc foi o termo surgido de forma confusa na imprensa nacional. Seriam jovens anarquistas anticapitalistas e antiglobalização, cujo lema passa por destruir a propriedade de grandes corporações e enfrentar a polícia. Nas capas de jornais e na boca dos âncoras televisivos, eram “a minoria baderneira” em meio a “protestos que começaram pacíficos e ordeiros”. Uma abordagem simplista diante de um fenômeno complexo. Além da ameaça à propriedade e às regras do cotidiano (como atrapalhar o trânsito e a visita oficial do papa), as atuações explicitaram a emergência de uma faceta dos movimentos sociais, de cunho anarquista e autonomista, que vão do Movimento Passe Livre (MPL) e outros coletivos até a face extrema dos encapuzados. Corretos ou não, a tática Black Bloc forçou a discussão sobre o uso da desobediência civil e da ação direta, do questionamento da mobilização pelo próprio sistema representativo. Ignorá-los não resolve a questão: o que faz um jovem se juntar a desconhecidos para atacar o patrimônio de empresas privadas sob risco de apanhar da polícia?

“O que nos motiva é a insatisfação com o sistema político e econômico”, diz Roberto (nome fictício), 26 anos e três Black Blocs na bagagem. Ele não se identifica por razões óbvias: o que faz é ilegal. Roberto já havia ido às ruas contra a alta da tarifa, sem depredar nada. Conheceu a tática e decidiu pelas vias de fato. “Nossa sociedade vive permeada por símbolos. Participar de um Black Bloc é fazer uso deles para quebrar preconceitos, não só do alvo atacado, mas da ideia de vandalismo”, diz. As ações de depredação não seriam violentas por não serem contra pessoas. “Não há violência. Há performance.” Roberto confia em coletivos como o MPL e a Marcha das Vadias. Mas não em partidos políticos. “Não me sinto representado por partidos. Não sou a favor de democracia representativa e, sim, de uma democracia direta.”

Estudar política e quebrar bancos caminham juntos. “Não se trata de depredar pelo simples prazer de quebrar ou pichar coisas, mas de atacar o símbolo representado ali. Quando atacamos uma agência bancária, não somos ingênuos de acreditar que estamos ajudando a falir um banco, mas tornando evidente a insanidade do capitalismo. Política também se faz com as próprias mãos.” Como Roberto, milhares de jovens simpatizam com a causa e o modo de defendê-la. Juntas, as páginas do Black Bloc no Facebook receberam 30 mil “likes”. Novas surgem a cada dia. Páginas fechadas têm centenas de membros. E eles já se encontram fora da internet. Após o protesto em São Paulo no dia 11, participantes fizeram uma reunião espontânea e sem líderes.

“O Black Bloc no Brasil veio para ficar”, afirma Pablo Ortellado, professor da USP. O pesquisador participou de protestos antiglobalização no começo dos anos 2000, quando o termo apareceu pela primeira vez no País. Hoje estuda a emergência de tais grupos. Para entendê-los, diz, é preciso voltar no tempo. A denominação surgiu na Alemanha nos anos 80, com uma pauta (ecologia radical) e uma função específica: isolar manifestantes e polícia, evitando cassetetes e agitadores infiltrados. Em 1999, manifestaram-se com violência em Seattle (EUA), quando a Organização Mundial do Comércio ali se reuniu. Protestos terminaram com pichações e depredação de empresas como Starbucks. “É quando o anarquismo dominou e o Black Bloc ficou associado ao uso da violência como ação direta, passando a ter caráter mais estético, espetacular, de intervenção urbana.” Por aqui, ambos os momentos ocorreram. “No Brasil, eles cumpriram as duas tarefas”, diz Ortellado. Num primeiro ato, protegeram os manifestantes da repressão policial, tradição alemã. Depois, sobrou o modelo americano, de ataque simbólico a grandes corporações, de espetáculo midiático.

No fim de junho, o País viu o MPL conseguir, na base dos protestos nas ruas, baixar a tarifa de ônibus Brasil afora. Sem sua organização, os protestos continuaram com bandeiras confusas e reivindicações mais amplas – exatamente a conjuntura na qual os Black Blocs florescem. Se no começo eles tomavam carona em protestos organizados por entidades com pautas claras, pouco a pouco passaram a agir sozinhos. O protesto de terça 30, por exemplo, teve convocação apócrifa. Tais manifestações tendem a ocorrer cada vez mais desse jeito: instantâneas, acéfalas, impossíveis de controlar. Como não são uma organização, mas uma tática condicionada a contextos políticos, os Black Blocs devem surgir com mais frequência. A Copa do Mundo e as Olimpíadas, com seus espaços delimitados, gastos controversos e simbologias fartas, são alvos esperados.

O arcabouço teórico e prático paira na rede. Uma espécie de biblioteca virtual, com links para o “cânone” do Black Bloc, é replicada nas páginas dos seguidores da tática. Há o “Manifesto Black Bloc”, com máximas de caráter político, e o “Manual de Ação Direta”, espécie de treinamento a distância para a ação direita, com as seções: desobediência civil (e temas como “usando escudos”, “apanhando da polícia” e “lidando com animais”); primeiros socorros (além dos itens “gás lacrimogêneo” e “spray de pimenta”, há dicas de como lidar com queimaduras e traumatismos cranianos); e “leis, direitos e segurança” (“sendo preso”, “na delegacia” e “como deve ser a sua mochila” são os tópicos). Uma frase do manual dá o tom: “Lembre que o que eles fazem conosco todos os dias é uma violência, a desobediência violenta é uma reação a isso e, portanto, não é gratuita, como eles tentam fazer parecer”.

O surgimento de um bloco não é centralizado nem permanente. É o encontro de indivíduos com propósitos similares, mas nunca coibidos pela coletividade. “Uma formação temporária, sem identidade, na qual os indivíduos podem nem saber quem é a pessoa ao lado. Por isso é difícil controlá-los”, diz Saul Newman, professor de teoria política da Goldsmiths University, de Londres. Newman cunhou o termo pós-anarquismo para abarcar formas de resposta direta, às vezes radicais, a um Estado que interfere cada vez mais na vida de seus cidadãos. A sociedade estaria subestimando esse potencial político. “Ainda que os Black Blocs representem uma minoria no movimento anarquista, são um importante símbolo da emergência de novas formas de políticas antiautoritárias. Seus rostos cobertos se tornaram a imagem do ativismo radical contemporâneo.”

Entre os manifestantes não ligados ao Black Bloc, duas posturas ganham espaço. Por um lado, certo romantismo idealista alimentado pelas redes sociais. Pois eles agiriam como “linha de frente no enfrentamento com a polícia”, diz um blog anarquista. De outro há uma ojeriza irredutível. Em uma democracia jovem, desacostumada com manifestações difusas, qualquer protesto fora do script é temido. Durante os atos de junho, não faltaram críticas: eles só seriam válidos se pacíficos, por meio da palavra. “Mas como protestar pela palavra se é ela o suporte por meio do qual o Estado de Direito exerce violência?”, indaga o professor de teoria política Nildo Avelino, do Grupo de Estudos e Pesquisas Anarquistas da UFPB. “É preciso criar novas formas de comunicar: o Black Bloc pode ser uma delas.”

Para Avelino, o Black Bloc pode ser visto como a retomada de um tipo de ação praticada pelos anarquistas no século XIX, a propaganda pelo fato, ali para suprir a insuficiência da propaganda oral e escrita quando a prática eleitoral ganhava influência. A razão desse retorno à ação direta adviria da paulatina perda da dignidade imposta pelo capitalismo. O que explica a aceitação dos Black Blocs entre jovens na rede: o fenômeno daria voz a anseios difusos de quebrar a ordem, longe das vias institucionais. Mesma opinião tem o ativista americano John Zerzan, um dos primeiros a defender a tática nos EUA. Em 1999, a mídia associou os protestos de Seattle à sua influência. À época, o centro financeiro da cidade foi destruído. “Não será surpresa ver novas e maiores manifestações do Black Bloc no futuro”, afirma. “Demonstrações pacíficas não alcançam nada. Os protestos de 2003 contra a Guerra do Iraque foram os maiores da história e não conseguiram nada.”

Um veredicto temerário, não só por instaurar o embate físico em detrimento do debate político como regra, mas por alimentar justamente a opressão combatida. Não sendo possível separar ativistas encapuzados de policiais infiltrados e com a expansão da tática, seria possível realizar no futuro ações diretas de massa não violentas, sem embates violentos televisionados e criticados por setores amplos da sociedade? “A proeminência das táticas dos Black Blocs em insurreições recentes ao redor do mundo, inclusive no Brasil, tem alimentado o estereótipo dos anarquistas como destrutivos”, alerta Newman. “A mídia e as elites os demonizam e usam seus confrontos espetaculares para deslegitimar protestos mais amplos.” Um problema mais sério que as depredações.

A discussão não passou ao largo de quem foi às ruas em junho no Brasil, quando bases policiais e bancos foram destruídos em protestos organizados pelo MPL. O coletivo prestou ajuda jurídica a todos os presos nos protestos, independente do crime a eles imputado. Todas as prisões eram políticas e arbitrárias, diziam. “A gente tentava evitar que houvesse treta entre os manifestantes. Tão ruim quanto o que aconteceu na Paulista, quando os militantes de partidos foram atacados, era quando havia desentendimentos entre manifestantes que optam por uma tática ou outra, entre os chamados de pacíficos e os chamados de baderneiros”, diz Caio Martins, do MPL. Movimentos sociais e partidos (do PSTU à CUT), tradicionais portos para insatisfações juvenis nas ruas, mostraram-se contrários à depredação e à tática em geral. Mas, confusa diante dos novos atos, a “esquerda tradicional” evita falar do assunto. Ninguém os defende, com receio de perder apoio de setores mais conservadores, e poucos os criticam, temendo prejudicar a união da chamada voz das ruas.

Fora do País, o mesmo ocorre. Mal os Black Blocs apareceram nos protestos no Cairo, manifestantes passaram a ser presos aleatoriamente sob a acusação de “terrorismo”. O mesmo oportunismo aconteceu com o Occupy Wall Street. Em 2012, o ativista Chris Hedges os descreveu como o câncer que debelou o movimento, até então bem-sucedido em debater a tirania do capitalismo financeiro. O artigo virou um manifesto anti-Black Block. Derrick Jensen, a voz mais crítica contra a tática, concorda. “Sua antipatia contra qualquer forma de organização que iniba sua liberdade de ação faz com que eles tentem destruir até organizações lutando pela revolução social”, diz. Jensen é taxativo: para quem busca alcançar conquistas sociais concretas, a tática é um desserviço. “Atos gratuitos de destruição com espírito de carnaval não vão arranhar o capitalismo”, defende. “É preciso estratégia, objetivos. E certa ética.”