sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Acusados e acusadores - por Francisco Bosco (O Globo)

Melhor nos preocuparmos com os verdadeiros inimigos da democracia

Começo com uma declaração sobre meu lugar de enunciação, como diz o jargão teórico: estou mais para mainstream do que para independente; a experiência de obras de arte tem lugar fundamental na minha vida; sou a favor de licenças que flexibilizem os direitos autorais, sem me confundir com os que se engajam em práticas de esvaziamento da ideia de autoria ou defendem a supressão dos direitos a ela atrelados; meu devir revolucionário, isto é, minhas propostas de reinvenção da vida se situam mais no campo das ideias e das relações afetivas privadas do que no campo da política (considerada no sentido que lhe dá Badiou: O que pode uma coletividade?); finalmente, sou associal, e em boa parte do tempo até antissocial, logo estou mais para Thoureau que para Fourier, mais para solitário que para comunidade.

Digo isso para esclarecer que não tenho nenhuma razão de interesse pessoal no Fora do Eixo, já que eles praticam quase tudo o que não sou e não quero ser: circuito independente, privilégio da experiência da política em detrimento da experiência da arte; ataque à ideia de autoria individual; reinvenção de formas de vida com ênfase nas potências da coletividade; vida em comunidade, com esvaziamento radical da esfera privada. Não me interesso, pessoalmente, por nada disso, mas tenho todo o interesse em que pessoas diferentes de mim tenham resguardado o seu direito de reinventar as formas de vida da maneira como melhor lhes convir sem que sejam denunciadas, moralizadas, criminalizadas ou simbolicamente linchadas por causa disso. Pois foi exatamente o que sofreu o Fora do Eixo nos últimos dias.

Deflagrada sobretudo pelo depoimento pessoal da cineasta Beatriz Seigner, uma enxurrada de comentários e compartilhamentos chegou ao veredito mais rápido de que já tive notícia na era das redes sociais. De herói e arauto da contemporaneidade, Pablo Capilé (e o Fora do Eixo) subitamente se transformou em ditador, estelionatário, sexista, explorador da força de trabalho alheia, manipulador de jovens mentes indefesas, líder de seita, entre outros epítetos igualmente glamourosos. Mas na transformação do príncipe em sapo há mais economia do narcisismo do que revelações factuais ou argumentações arrasadoras.

Pois chamam a atenção os erros de interpretação e a natureza gravemente equivocada do relato pessoal de Seigner (que entretanto transborda de imaginário). Atravessa o seu texto um problema lógico: ela acusa o coletivo de não ser algo que, precisamente, ele não quer mesmo ser (reprodução da autoria individual com todos os seus corolários). E, pior, um problema ético: confunde crítica com denuncismo, esfera simbólica com esfera penal. Uma coisa, cabível e desejável, é interpretar fenômenos públicos, com o mais radical dissenso, se for necessário. Outra coisa é fazer acusações legais (ruptura de contrato), morais (manipulação de vítimas psicológicas) ou absurdas e irresponsáveis (trabalho escravo). Pois bem, acusações legais pertencem ao domínio jurídico, onde se devem apresentar provas, sem as quais cabe ao acusador o ônus da calúnia e suas consequências penais. Isso vale para as acusações de Seigner (sobre o caso Sesc, por exemplo), para a Veja (que os acusou de estelionato, segundo o FDE), e para todos que embarcaram no uso irresponsável de termos como trabalho escravo.

Sem ter mais espaço, observo que, para mim, o essencial sobre o FDE se resume a isso: entra quem quiser, ninguém é obrigado. Há críticas interessantes que foram feitas (o produtivismo desenfreado em contradição com a crítica ao capitalismo, a desmonetização como uma mais-valia às avessas, a concentração da obtenção de editais), mas é fundamental jogar o jogo da crítica e, nesse momento rico em aberturas, manter a independência de pensamento, recusar os julgamentos apressados, distinguir crítica de denúncia e não se deixar levar pelos mecanismos imaginários de reversão que transformam a admiração em inveja, a generosidade em vingança principalmente se eles forem disparados por uma mobilização grupal, com a covardia que isso implica. Caso contrário, os acusadores assemelhar-se-ão realmente aos seus acusados imaginários.

Enquanto isso, até o dia em que escrevo, 13 bravos cidadãos permanecem ocupando a Câmara dos Vereadores. Não percamos de vista os verdadeiros inimigos da democracia: os vereadores que se apoderaram da CPI dos Ônibus para esvaziá-la, e que com isso reproduzem os procedimentos de blindagem da classe política e seus cupinchas contra os interesses dos cidadãos. Nesse caso, é possível, sim, evocar esse sujeito coletivo, pois são os elementos mais básicos do pacto social que estão sendo desrespeitados, mais uma vez.

Comentário
Este aviso de não criminalizar o "fora do eixo" deveria servir, primeiramente, a própria Globo e congêneres, claro.

Mas, na verdade, não influirá em nada na linha editorial da emissora e afins. Por todos os meios eles sabotarão, bombardearão alternativas de comunicação populares. Daí põem um ou outro artigo favorável para posar de plurais.

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