A história de Brant foi e é ilustrativa. À época parlamentar pelo PFL, o mineiro apareceu na lista dos beneficiários dos repasses do publicitário Marcos Valério. A contribuição, não declarada, veio da Usiminas. A exemplo dos demais, o pefelista justificou o recebimento como contribuição de campanha (segundo ele, repassada ao partido). Na sanha udenista das CPIs, Brant foi chamado de “mensaleiro”, apesar de integrante da oposição e sem nunca ter votado a favor do governo federal. Acabou absolvido na Câmara, mas desistiu de disputar eleições. Brant integra hoje o PSD em Minas Gerais.
O ex-deputado Roberto Brant participa de seminários CNA em 2009. Foto: Agência Brasil |
CartaCapital: Em um trecho do seu discurso de defesa, o senhor afirma: “Infelizmente há setores no Brasil que gostam da aparência da civilização, mas não estão dispostos nem preparados para as exigências rigorosas e às vezes exasperantes da civilização”. O senhor poderia identificar esses setores?
Roberto Brant: Todo esse processo é um caso típico em que não houve julgamento em nenhuma etapa. Não houve na CPI (dos Correios), até porque o próprio relator (Osmar Serraglio) disse que não iria fazer juízo de valor. A corregedoria disse que não faria julgamento, que o fórum de defesa era na Comissão de Ética. Esta, por seu lado, relatou que, no meu caso, fazia um juízo de acusação. Então, não houve julgamento, mas uma organização das provas para apresentar a acusação. O momento do julgamento era no plenário. Mesmo assim, havia de antemão uma inconformidade de determinados setores com a possibilidade de absolvição. Ou seja, esses setores não permitiam nem que houvesse o trâmite normal de um julgamento. E isso se vê em outras instâncias. Toda vez que os tribunais superiores dão liberdade a réus que estão presos sem ter sido julgados, há manifestações indignadas. São setores primitivos. Submeter-se a essas regras, que chamei até de exasperantes e que pressupõem o direito à defesa, é exigência absoluta da Democracia e da Justiça.
CC: O senhor não identificou os setores.
RB: Parte do Congresso, da imprensa, da sociedade também. Quando falo da mídia, refiro-me a um pedaço dela. Vários jornalistas não seguiram a linha da condenação prévia. A própria CartaCapital fez uma cobertura da minha absolvição corretíssima. O jornal Valor Econômico também. O Jânio de Freitas (colunista da Folha de S.Paulo) fez uma matéria enorme, absolutamente correta. Não é porque é a meu favor, esses veículos não são nem a meu favor nem contra. Apenas registraram com correção os fatos. Mas há sempre um ou outro mais adepto ao jornalismo do espetáculo.
CC: O senhor chegou a ser classificado de mensaleiro…
RB: Pois é, um absurdo. O que seria o mensalão? Recursos que o Executivo teria repassado a integrantes da base aliada em troca de votos no Congresso. Sou do PFL, o partido que mais faz oposição ao governo. Muito mais até do que o PSDB. Como posso ser chamado de mensaleiro? Há falta de apreço pela exatidão e pela verdade. Acredito que um cidadão tem o direito de manter sua imagem preservada se a verdade está do seu lado. Enquanto se descrevem fatos, tudo bem. Mas alguns se recusam a escrever os fatos. Considero isso uma má imprensa. Como a imprensa tem responsabilidade enorme na formação da consciência pública, é algo extremamente negativo. Isso estabelece um fosso. A sociedade moderna só existe se a imprensa merece grande confiança da população.
CC: A resposta remete a outro ponto de seu discurso, quando o senhor alerta: “Desconfiem dessa agenda moralista”. A quem interessa essa agenda?
RB: Aos grupos que controlam o Estado brasileiro, independentemente de quem esteja no governo. São herdeiros dos privilégios seculares que o Estado distribui. A sociedade brasileira é injusta dessa forma porque o Estado é um agente da injustiça. Esses grupos não querem reforma de coisa nenhuma. O moralismo só interessa aos grupos que querem mobilizar o Estado brasileiro, ou pelo menos o sistema político brasileiro, para não deixar que ele opere com liberdade. Isso já aconteceu outras vezes. Quando o Juscelino (Kubitschek) começou a mudar o Brasil, aquilo assustou tremendamente as elites urbanas. O resultado foi a criação de uma série de escândalos que a história provou ser completamente infundada, inconsistente e falsa. Todos os personagens morreram pobres. Depois veio o quê? Jânio Quadros, apoiado pela opinião pública. Opinião construída pelo (jornalista Carlos) Lacerda, pela UDN nos grandes centros urbanos. Em São Paulo, inclusive. Foi lá que ele venceu. E deu no quê? Desorganização, populismo e aventura. Depois do Jânio, veio o golpe militar. Como tachar de corrupto um partido inteiro, o sistema de forças inteiro? Isso é falso. Há políticos que desviam de conduta no PT, no PFL, no PSDB. A agenda do moralismo não leva a nada. Ou leva a coisas piores.
CC: O partido do senhor é uma das forças que alimentam essa sanha moralista.
RB: Não é de hoje que digo que o caminho de desconstruir moralmente o adversário é um equívoco. Essa desconstrução global do governo Lula e do PT não é boa para o Brasil. Divirjo do governo Lula não pelos padrões morais, mas pelas opções políticas equivocadas. Também pela incompetência para lidar com certos problemas. Acho que todos somos responsáveis. A imprensa e o sistema político.
CC: Mas a imprensa atua em uma faixa própria, se auto-alimenta, não?
RB: Até certo ponto. Isso é mais a imprensa escrita, que gira em torno de um universo limitado. Por isso afirmo que a opinião pública é muito menor que o povo, porque na verdade existe um fosso entre a sociedade brasileira como um todo e a opinião pública. A opinião pública são aquelas pessoas que lêem jornais, revistas. São quantos? Um milhão, dois, três. Quem lê o Estadão, a Folha, o Globo, a CartaCapital?
CC: Aquelas 20 mil famílias que têm aplicações nos bancos.
RB: Exatamente, a Veja vende, sei lá, um milhão de exemplares… Mas, na verdade, muita gente assina e nem lê. Para essas pessoas, não importa que o Brasil continue como está. Se o País continuar a crescer a 3% ao ano, com taxa de juros elevada, em parceria com o mundo econômico, elas vão continuar felizes. Para elas, não precisa mudar quase nada. E por quê? Porque elas vivem à custa do Estado. O discurso moralista serve maravilhosamente bem porque se põe uma cortina de fumaça. Imobilizar o PT no moralismo é uma beleza. Mas isso terá conseqüências graves. O debate eleitoral agora será horrível.
CC: E diminui a margem de um governo para empreender mudanças.
RB: A margem será mínima. Se depender do apoio da opinião pública, você não faz a reforma da Previdência, não faz nenhuma reforma tributária justa. Porque a justa mexe em privilégios que eles querem manter intocados. A opinião pública só é a favor de coisas superficiais, como o nepotismo. Tudo bem lutar contra. Mas, com ou sem ele, você não altera um grama. Isso é menos que um satélite de Plutão na Via-Láctea, em todo o Universo. Uma sociedade só consegue progredir quando é capaz de identificar os verdadeiros problemas, quando os reconhece. Esses não são os verdadeiros problemas do Brasil. São desvios morais a ser coibidos, mas não merecem todo esse destaque, porque isso não muda nada. São falsas questões.
CC: Isso mudaria como?
RB: Esses episódios de agora serão sentidos a longo prazo. Novas lideranças políticas terão de surgir. É um processo lento, com outros personagens. Há 25 anos crescemos a uma média de 2,3% ao ano. Um quarto de século, uma geração inteira. Não vejo horizonte pela frente. Uma das razões de eu não querer seguir na vida política é um protesto pessoal contra a injustiça que sofri. A outra é que não vejo qual papel construtivo posso ter na seqüência dos acontecimentos que virão.
CC: A recuperação do presidente Lula nas pesquisas seria um exemplo da dissociação entre o povo e a opinião pública?
RB: Remédio em dose demais acaba fazendo efeito contrário. Os cidadãos confundem, não distinguem muito Lula do PSDB, do PFL. A maioria não sabe bem. Falo do povo. Na opinião pública, Lula está muito mal, mas entre o resto da população, não. Essa agenda moralista igualou todos por baixo. Não acho que tenha sido a oposição que criou isso. Foi a incompetência do governo de lidar com a questão. Mas, de qualquer forma, o País não ganha nada com isso. Nos tempos do (ex-presidente Fernando) Collor, todo mundo repetia o bordão “vamos passar o Brasil a limpo”. O Brasil depois do Collor ficou melhor? As coisas fundamentais mudaram? Mudou a maneira de fazer negócios, de realizar obras públicas? Não acho que se tenha de passar o País a limpo. É preciso transformar a nação. O que causa a imoralidade é a profunda desigualdade.
CC: O senhor é parlamentar respeitado, com uma longa ficha de serviços prestados ao Congresso. Por que tão poucos saíram em sua defesa publicamente?
RB: Medo. Essa agenda do moralismo é apavorante, um monstro. Alguns jornalistas disseram em segredo que estavam torcendo por mim. Mas, na hora de escrever, não tiveram coragem de assumir essa posição. A não ser o Jânio de Freitas, um camarada acima de qualquer coisa e que não tem medo de nada. Para a civilização do espetáculo, a inocência não causa nenhum impacto, nenhum choque. Atacar um deputado sim, e quanto melhor e mais puro ele for, mais vistoso será o ataque. Vira troféu. Como diz a Hannah Arendt, isso não chega a ser um problema, porque problema tem solução. É uma realidade com a qual temos de viver. Para enfrentar, é preciso ter homens públicos corajosos. E isso está em falta. Houve um tempo em que existia Lacerda, Juscelino, Ulysses (Guimarães), Tancredo (Neves), o (Leonel) Brizola. Eles iam além da corrente. Caminhavam junto com a corrente, mas iam além dela. Hoje você não tem líderes que sejam capazes de sair da corrente.
CC: O senhor acredita na existência do mensalão?
RB: Minha impressão é a de que realmente existiu algum mecanismo em torno do governo para financiar partidos aliados. Agora, para pagar mensalmente deputados para votar, não acredito. Acabaram desviando o foco das investigações. No fim, estavam discutindo a minha cassação, que sou da oposição, e de deputados do PT. Pergunto: qual a razão que o governo teria para pagar mesadas a parlamentares do PT? O (Professor) Luizinho, líder do governo na Câmara, precisava receber dinheiro para defender o Executivo? No meio da crise misturou-se tudo, até porque não se podia separar. Se começa a separar, fica racional. Se ela for racional, aquilo deixa de ser um instrumento político. Vendo o noticiário e filtrando os exageros, parece que realmente houve remessas de dinheiro para partidos, que usavam para fazer política. Mas não naquela dimensão que o Roberto Jefferson denunciou. Não tem como administrar um esquema que paga mensalmente a deputados, isso não existe. Só pegou pelo inusitado, pela diversão. Virou algo caricato. A caricatura marca mais do que o retrato.
CC: No ano passado, o líder do Partido Republicano no Congresso dos Estados Unidos renunciou após a descoberta de que ele havia recebido cerca de 20 mil dólares via caixa 2. O senhor, mesmo que indiretamente, está envolvido em um caso de caixa 2. Não seria o caso de renunciar?
RB: Não usei o dinheiro para mim ou na minha campanha. Captei para o meu partido. Não há crime fiscal, nenhum imposto deixou de ser pago. Nos Estados Unidos, ficou comprovado que o líder recebeu uma contribuição em troca de um posicionamento parlamentar. Se ficasse provado que a Usiminas foi beneficiada em qualquer decisão no Congresso da qual eu tenha participado, seria o caso de uma cassação instantânea. Não há nenhum. Repassei a contribuição para o partido cobrir parte das despesas com programas eleitorais em Minas Gerais. Não o declarei na minha campanha porque não usei a contribuição.
CC: Por que o senhor citou o obituário do ex-deputado Ricardo Fiúza?
RB: O Fiúza foi um deputado muito acima da média. Na Constituinte, queria-se fazer uma revolução socialista no Brasil. Se não fosse o Centrão, essa Constituição teria inviabilizado o País. Eu estava do outro lado, no PMDB. Ele foi um líder. Mas acabou acusado na CPI do Orçamento, sofreu um processo de cassação e acabou absolvido, com larga margem. Recentemente, quando ele morreu, li um obituário em um grande jornal. Não havia nenhuma linha sobre a história dele, sobre seu desempenho na vida pública. O texto apenas mencionava que ele tinha sido absolvido de uma cassação por causa de um acordão político.
CC: O senhor teme ser lembrado da mesma forma?
RB: Não tenho dúvidas de que serei, se, no dia da minha morte, alguém lembrar que fui político.
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