Ilustração: César Lobo |
É um vídeo forte,
poderoso, cortante: sobre a imagem noturna e estática do temporal na cidade, as
vozes se sobrepõem para falar que o Rio de Janeiro CHORAVA com a notícia de
“mais uma mulher ASSASSINADA”; porém, “não apenas uma MULHER”, “mas uma mulher
NEGRA”, “uma MILITANTE”, que movia estruturas e foi “EXECUTADA a sangue frio”,
e apela: “GENTE, PAREM DE MATAR GENTE, esse assunto é URGENTE. MARIELLE,
PRESENTE”.
O vídeo original
termina assim. Mas, ao final do Jornal Nacional do dia seguinte à execução da
vereadora Marielle Franco, do PSOL, numa ação que vitimou também seu motorista,
Anderson Pedro Gomes, esse vídeo foi
exibido com o acréscimo deste texto: “Esta homenagem a Marielle
Franco foi feita por Ana de Cesaro e circulou na internet. Agora está sendo
mostrada para todo o Brasil. Para que seja uma homenagem e também um alerta.
Tudo começa pelo respeito. À vida”.
Estudiosos de
linguística e comunicação teriam aqui um prato cheio para discorrer sobre essa
manobra discursiva muito óbvia: um vídeo que circula “na internet” – ou seja,
potencialmente, no mundo inteiro – finalmente é apresentado a um país. Pela
Globo, que é – com trocadilho – a voz do Brasil.
Mas isso é o de
menos. O principal é o que essa manobra revela como apropriação do discurso de
protesto contra a execução de uma vereadora jovem, negra, “cria da favela” (da
Maré), que estreava na Câmara um mandato promissor, com votação surpreendente –
foi a quinta mais votada em 2016, com mais de 46 mil votos – e se dedicava à
denúncia da violência contra os marginalizados de modo geral, com uma atuação
que expressava múltiplas causas identitárias associadas à questão fundamental
do pertencimento de classe.
Certamente tudo
começa pelo respeito à vida, mas estas serão apenas belas palavras se
desprovidas de seu conteúdo concreto. O que significa, exatamente, respeitar a
vida, quando se negam as condições objetivas de existência?
“Reforma
trabalhista, PEC dos Gastos, reforma da Previdência”, essas medidas que jogam
“um contingente de cidadãos e cidadãs para uma espiral de pobreza”, estão na
base do tal “respeito à vida” por onde tudo começa, e por onde começou o
artigo que Marielle enviou ao Jornal do
Brasil – esse jornal recentemente ressuscitado em papel,
numa iniciativa cheia de críticas, incertezas e suspeitas que não cabe aqui
discutir, mas que se diferenciou dos demais no dia seguinte às manifestações de
protesto que se espalharam pelo país. A edição, para quem tem memória, lembrou
a do dia 12 de setembro de 1973, quando a censura da ditadura impediu manchetes
ou fotos sobre o golpe no Chile de Allende, e o JB driblou
brilhantemente a proibição com uma primeira página sem título, apenas com um
texto em corpo maior, relatando o ocorrido, e com isso se destacou de todos os
outros jornais.
JB de 1973 e o de 2018 |
O JB valoriza
– e valoriza-se com – as “últimas palavras” de Marielle, destacando a sua
condenação à intervenção militar na segurança do Rio, que é, na prática, uma
intervenção no estado. Entretanto, publica no rodapé uma ressalva que conduz ao
editorial, onde defende a intervenção até mesmo como “forma de honrar a memória
da vereadora”, que estaria equivocada: os beneficiários da medida seriam
justamente “os que ela supunha vítimas”.
Os demais jornais
cariocas incorporaram o discurso de protesto: O Globo manchetou
“MARIELLE PRESENTE” em maiúsculas, os outros repetiram a indignação da
vereadora ao denunciar mais uma morte atribuída à polícia: “Quantos mais terão
de morrer para que essa guerra acabe?”
Em tese, a
imprensa abraça uma causa que é de “todos”. No entanto, nos editoriais e nos
espaços de colunistas, usa esse episódio para inverter a lógica do argumento da
vereadora/militante executada e esvaziar sua causa, reforçando a atuação do
governo federal: a morte de Marielle e seu motorista seria, para O
Globo, “um símbolo contundente do descontrole a que chegou a
segurança do Rio, situação de anomia que levou à intervenção federal”.
Considerando que o Rio é um “laboratório” – como declarou recentemente o
general responsável pela intervenção –, não custa imaginar o que pode acontecer
às cobaias. Diante da “insana escalada de violência”, por que não a decretação
do estado de sítio?
É a mesma
operação discursiva que, em 2013, transformou uma reivindicação contra o
reajuste das passagens de ônibus – uma pauta claramente de esquerda, que tinha
o alcance mais amplo da luta pela melhoria do transporte público e, no fim das
contas, pelo direito à cidade – num protesto contra a corrupção na política,
rapidamente identificada ao governo federal, e resultou nas primeiras
manifestações de massa de direita desde o golpe de 64, que explodiriam em 2015
e dariam sustentação popular à derrubada de Dilma Rousseff.
A história se repete
Protestos
genéricos contra a “violência” têm esse poder alienante. Em 2001, na esteira do
episódio do ônibus 174 – um cerco policial a uma suposta tentativa de assalto
que resultou no sequestro dos passageiros, transmitido ao vivo por mais de
quatro horas, e que acabou com a morte de uma refém e do próprio pretenso
assaltante –, criou-se o movimento “Basta! Eu quero paz!”, que convocava para
um ato público encampado por toda a mídia. Rara voz dissonante acolhida nos
jornais, o historiador Joel Rufino dos Santos escreveu no Jornal do
Brasil de 11/7/2001 um artigo no qual rejeitava participar daquela
manifestação porque a considerava uma forma de preparar o espírito da população
para “indultar os produtores da violência” e dizia que não participaria daquele
ato justamente porque os violentos dissimulados, porém mais importantes, também
estariam lá.
“Há os que sofrem
a violência e os que a produzem. Estes têm interesse em esvaziar a violência do
seu conteúdo concreto. Num golpe inconsciente, mas de mestre, mobilizam as
vítimas para ato cívico, altamente emotivo, contra a violência. Gritam e fazem
a população gritar “Basta!”. Com isso, dão à violência, de que são os
produtores, um caráter abstrato. Eximem-se de qualquer responsabilidade. Os
violentos são os outros. Na verdade, não são ninguém. Podem, portanto, ser
demonizados – livrando a cara deles, os reais produtores de violência. Põem, no
lugar sua cara, a cara do pobre-coitado do ônibus 174” .
Hoje, a história
se repete. No Jornal Nacional – que abriu sua edição de 15 de março com um
editorial que reverberava a indignação dos “cidadãos de bem” –, o senador Jorge
Vianna, do PT, aparecia para dizer que “nós não podemos estar nos dividindo,
[discutindo] se a intervenção é boa ou não na área de segurança no Rio de
Janeiro, eu queria uma intervenção no Brasil inteiro”. E o presidente Temer,
como tantos outros políticos aliados, como tantos editorialistas e colunistas,
diluía o assassinato de Marielle no caldeirão genérico da insegurança pública:
“É inaceitável, inadmissível, como todos demais assassinatos que ocorreram no
Rio de Janeiro, é um verdadeiro atentado ao Estado de direito e um atentado à
democracia, por isso aliás nós decretamos a intervenção, para acabar com esse
banditismo desenfreado que se instalou naquela cidade por força das
organizações criminosas”.
A “afronta à
democracia”, não por acaso, foi o título do editorial do Globo no
dia seguinte.
Por isso é tão
importante definir bem as coisas, nesse momento em que as emoções afloram e
podem ser tão facilmente manipuladas. Ricardo Queiroz, mestre em Ciência da
Informação que trabalha na Biblioteca Monteiro Lobato, em São Bernardo do
Campo, resumiu exemplarmente a questão num post no Facebook:
“Marielle Franco acreditou na via política.
Morreu porque se posicionou claramente na luta de classes, demarcou sua posição
e sabia quais eram seus inimigos. Impossível despolitizar a sua morte.
Portanto, não é com niilismo, desqualificação
da política e discurso difuso, que vamos fazer o combate àqueles que mataram Marielle.
Se até Temer se diz indignado pela morte da
jovem, é fundamental o discernimento dessas indignações todas. Para que os
responsáveis não se passem por indignados”.
Sylvia Debossan Moretzsohn - Professora
aposentada de jornalismo na UFF, pesquisadora do ObjETHOS
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