O verdadeiro juiz é feito de discernimento e caráter. O conhecimento é o complemento necessário.
Ao contrário do que Ricardo Noblat apregoou, Joaquim Barbosa tem currículo e conhecimento, mais currículo até que Ricardo Lewandowski. Mas este é mais juiz, pois tem o discernimento.
Mas não basta o discernimento. É fundamental o caráter, a força interna que permite ao magistrado colocar a sede da justiça acima das conveniências, a coerência acima das circunstâncias, sua consciência acima de todas as formas de opressão, das quais a mais deletéria é a dos movimentos de manada, a sede de sangue, de vingança, especialmente quando orquestrada por grandes órgãos de informação.
O desembargador paulista que autorizou a prisão do japonês da Escola Base sabia-o inocente. Mas só ganhou coragem para voltar atrás quando parte dos jornalistas - em um tempo que os jornais permitiram o contraditório - insurgiu-se contra o linchamento.
O homem público nos tempos de Internet
Nesses tempos de Internet, rádios, TVs a cabo, em que toda intimidade é devassada e todos são expostos às refrações provocadas pelo caos da informação, os homens públicos perderam a aura, caem as blindagens da impessoalidade e, mais do que nunca, o caráter torna-se qualidade fundamental.
Dia desses discutia esse tema com um Ministro (corajoso) do Supremo, sobre a possibilidade de seus pares curvarem-se às pressões externas. Ele argumentou que o magistrado possui defesas constitucionais, como a inamovibilidade do cargo.
Ora, o temor maior de um magistrado sério não é mais a pressão política, mas o achincalhe, a exposição ao ridículo, as ofensas por colunistas agressivos, a exposição aos mastins insuflados pela mídia, como ocorreu com Lewandowski, ofendido em público e atacado pelas redes sociais.
É a maneira de encarar essas pressões que permite diferenciar os verdadeiramente corajosos dos meramente verborrágicos.
Foi o que aconteceu em vários episódios recentes, especialmente na superexposição da AP 470 e na votação da Lei da Anistia.
Alguns Ministros reagiram ao medo com discursos altissonantes e vazios, como Celso de Mello. Na discussão da Lei da Anistia, outros recuaram de bandeiras históricas, como Eros Grau e Sepúlveda Pertence, este na condição de ex-STF.
A desenvoltura excessiva foi praticada por poucos, como Gilmar Mendes, exercitando até o limite da falta de pudor a militância partidária; e Joaquim Barbosa, debochando até o limite da inconveniência das pompas e fricotes da corte.
Alguns revelaram a face mais esperrrrrrta da advocacia, como Luiz Fux. Mas a malandragem explícita é ponto fora da curva. O ponto na curva é a esperteza dos que se escondem atrás do vazio altissonante.
Por vários motivos, pensava-se que Luís Roberto Barroso, o mais novo Ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) seria uma figura referencial, em um período de transição em que não há mais figuras referenciais. Sabia-se que possuía o conhecimento. Suas manifestações, antes e durante a indicação ao STF, comprovaram discernimento. Sua sabatina no Senado foi uma aula inesquecível de cidadania. O país estava prestes a conquistar sua primeira referência pública em muitos anos.
Em um jantar com advogados e juristas ouvi de vários deles que "Barroso é maior que o Supremo".
Faltava apenas comprovar o caráter, se sólido, se água - e a prova do pudim seria suas sentenças, assinar votos corajosos sem tremer a mão.
Pausa para entender o discurso e a prática
Aí me vem na lembrança o livro "A cara do brasileiro", do cientista social Alberto Carlos Almeida. Nela mostra como a elite conhece bem os princípios éticos, verbaliza o discurso da solidariedade, sabe o que é politicamente correto, a ponto da supina ignorância da revista Veja ter produzido uma capa clássica, comprovando que só rico ia para o céu.
Na mesma época, uma pesquisa do Datapopular analisava classes sociais pela prática, não pelo discurso. Mostrava a classe C solidária; a classe A individualista. A classe C compartilhando bens e dicas de consumo, ficando com os filhos dos vizinhos quando solicitada; a classe A exigindo a exclusividade e sem cultivar os prazeres da boa vizinhança. Nenhuma das duas classes é portadora de todas as virtudes ou dos defeitos fundamentais. Basta salientar o que se pretende elogiar ou criticar.
Este é o retrato acabado do Brasil.
Para os muito sofisticados, o discurso de princípios éticos, valores contemporâneos ou intemporais, são como um colar de brilhantes, um anel da moda, um terno bem cortado, a dica do último escritor de sucesso em NY, do filme "cult".
Barroso, o "in" dos salões
Em todos os sentidos, Barroso é um fino provedor de ideias contemporâneas. Ilumina os ambientes sociais que frequenta com as novas ideias sobre aborto, casamento homossexual, células tronco, as últimas modas do pensamento jurídico internacional, colocando o interlocutor "up to date" com o estado da arte do direito, sentindo-se "in", da mesma maneira com que socialaites se sentem sendo informadas sobre a última moda de Nova York ou Paris, sobre os intelectuais da moda, sobre as últimas temporadas líricas.
Em um encontro da OAB, antes de assumir o cargo, Barroso se superou, ao homenagear a coragem silenciosa de Lewandowski. Apenas os muito corajosos e muitos íntegros têm a coragem de se voltar contra a maioria, ou coisa do gênero - teria dito, segundo testemunhas do encontro.
No jantar com juristas, ouviam-se "ohs!" de admiração com o desassombro de Barroso, a próxima referência nacional, ao se insurgir contra o pensamento dominante. Seria o jurista capaz de redimir o Supremo das fraquezas expostas, quando concordou em abrir mão do papel de guardião de direitos individuais.
No entanto, no exercício do cargo, os ecos de sua atuação se resumem, até agora, a isso:
1. Na estreia, uma aula de sociologia de irmão da estrada sobre a compulsão do brasileiro à esperteza. E a constatação de que a AP 470 é um ponto fora da curva, mas que não caberia a ele colocá-la (ou colocar-se) na reta.
2. Ao contrário do calado e anti-marqueteiro Teori Savascki, Barroso foi incapaz de se insurgir uma vez sequer contra o que ele próprio qualificou de exageros do julgamento. Não precisava absolver mensaleiros, livrar a cara de políticos. Apenas dar uma demonstração objetiva de que haveria contraponto ao espírito de manada. Marco Aurélio de Mello desgarrou-se da manada. Barroso juntou-se a ela.
3. Agora, o episódio da cassação do deputado Donadon. Em um dos primeiros votos que proferiu, Barroso resolveu uma das pendências graves do STF: o confronto com o Legislativo. Reconheceu o direito do Legislativo em cassar seus parlamentares. Bastou a não cassação de Donandon, a grita justificada da opinião pública, para voltar atrás com uma argumentação que mereceu a definição arrasadora de Gilmar Mendes: Barroso criou o mandato salame.
É cedo para a decepção definitiva com Barroso, para não se repetir o entusiasmo precoce com que foi saudado – e no qual também embarquei.
Há que se dar mais tempo para saber se existe um Ministro referencial ou um Ministro salame.
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