terça-feira, 6 de maio de 2014

Déficit de civilização - por Luiz Gonzaga Belluzzo (Carta Capital)

     Quando as opiniões são bloqueadas pela intimidação, o debate escapa às normas da razão e pode ser manipulado


     Em sua coluna na Folha de S.Paulo, o jornalista Clóvis Rossi acusou a emergência de um perigoso déficit de civilização na vida brasileira. Enquanto se discute o tamanho do superávit primário, os ganhos seculares do doloroso e secular processo civilizador se transformam em pesados prejuízos na Terra de Santa Cruz. Não há sucesso econômico que possa contrabalançar os déficits de civilidade.

     Há que ressalvar os resistentes nas barricadas do projeto humano nascido na idade do Esclarecimento. São brasileiros que ainda apresentam sintomas da sobrevivência em seus espíritos do DNA do processo civilizador e dos valores que a sociedade moderna pretexta ostentar. Muitos arriscam a pele e ousam escrever para as seções de Cartas ao Leitor ou cometem a imprudência de comentar nos blogs os comentários dos fanáticos. Quase sempre, os ululantes retrucaram com as armas do preconceito, da intolerância e da apologia da violência, seja ela física, seja ela moral.  Entre as vítimas, sucumbe a última flor do Lácio, inculta e bela.

     Alguém já dizia que há método na loucura, mas, no Brasil do Terceiro Milênio, a democratização da grosseria empenha-se em aperfeiçoar a metodologia da brutalidade. Expressões como “idiotas politicamente corretos”, “elite vagabunda” poucas vezes foram utilizadas com tanta liberalidade. A generosa distribuição de adjetivos não raro é acompanhada de exaltadas conclamações para o retorno dos militares ou sugestões para que os calabouços voltem a abrigar os adversários.

     Peço licença aos leitores para repetir o que já escrevi nesta coluna: os estudiosos do totalitarismo sabem que a “autovitimização” da “boa sociedade” e a inculpação do “outro” foram métodos eficientes para a conquista do poder absoluto. Vejo nos blogs: os mais furiosos se apresentam como paladinos dos “humanos direitos”, em contraposição aos defensores dos “direitos humanos”. Fico a imaginar como seria a vida dos humanos direitos na moderna sociedade capitalista de massas, crivada de conflitos e contradições, sem as instituições que garantam os direitos civis, sociais e econômicos conquistados a duras penas. A possibilidade da realização desse pesadelo, um tropismo da anarquia de massas, tornaria o Gulag e o Holocausto um ensaio de amadores.

     Hannah Arendt em “As Origens do Totalitarismo” abordou as transformações sociais e políticas na era do capitalismo tardio e da sociedade de massas. A economia dos monopólios promoveu a substituição da empresa individual pela coletivização da propriedade privada e, ao mesmo tempo, a “individualização do trabalho”, engendrada pelas novas modalidades tecnológicas e organizacionais da grande empresa. A isso se juntou a conversão ao regime salarial das profissões outrora conhecidas como liberais. A operação impessoal das forças econômicas produziu, em simultâneo, o declínio do homem público e a ascensão do “homem massa, cuja principal característica não é a brutalidade ou a rudeza, mas o seu isolamento e a sua falta de relações sociais normais”.

     Trata-se da abolição do sentimento de pertinência, sem a supressão das relações de dominação.  “As massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cujas estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas quando se pertencia a uma classe. O fato de que o ‘pecado original’ da acumulação primitiva de capital tenha requerido novos pecados para manter o sistema em funcionamento foi eficaz para persuadir a burguesia alemã a abandonar as coibições da tradição ocidental... Foi esse fato que a levou a tirar a máscara da hipocrisia e a confessar abertamente seu parentesco com a escória.” A escória, na visão de Arendt, não tem a ver com a situação econômica e educacional dos indivíduos, “pois até os indivíduos altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos movimentos da ralé”.

     Hannah Arendt escreveu sobre o totalitarismo no século XX e ressaltou a importância da esfera pública onde se formam os consensos pelo livre debate de ideias. O único remédio contra o mau uso do poder público pelos indivíduos privados esta na constituição de um espaço público capaz de avaliar os procedimentos de cada cidadão, submetendo todos os indivíduos à visibilidade. Quando as opiniões são bloqueadas pela intimidação e desqualificação sistemáticas, a meritocracia das ideias sofre um grave dano e o debate democrático escapa às normas da razão e pode ser manipulado.