quinta-feira, 23 de abril de 2009

A caderneta e a taxa Selic - Por J. Carlos de Assis (blog do Nassif)

SALVANDO A CADERNETA E A POLÍTICA MONETÁRIA
J. Carlos de Assis*

Há anos, talvez décadas, em artigos e em livros, tenho batido na tecla de que uma taxa básica de juros, como a Selic, não pode funcionar ao mesmo tempo como indexador de parte da dívida pública.

Recentemente, tive a grata surpresa de ver que também o ex-ministro tucano, Bresser Pereira, passou a defender a mesma tese. A razão é óbvia: se a taxa básica remunera a dívida, qualquer aumento dos juros para controlar a demanda eleva o custo da dívida sem contrapartida de gasto público.

Há outra disfuncionalidade: os títulos de dívida pública no Brasil são virtualmente líquidos. São emitidos com um determinado prazo nominal mas, na realidade, acabam transformados em dinheiro a qualquer tempo no caixa do Banco Central, à simples apresentação. Com isso, não há distinção no Brasil entre mercado monetário, onde se transacionam reservas bancárias, e mercado financeiro, onde, em tese, deveria ser transacionada a poupança privada, com algum desconto.

Tudo isso junto, a conclusão é que não temos realmente condições institucionais de fazer política monetária. Uma elevação na taxa de juros, que deveria contrair a liquidez, aumenta a disponibilidade de dinheiro líquido em mãos dos titulares da dívida pública. Como Alice, estamos num mundo de faz de conta, onde tudo funciona (ou não funciona) ao contrário. E quem menos funciona são os economistas ditos ortodoxos, que fingem não perceber isso.

Levas de ministros da Fazenda e de presidentes do Banco Central entraram e saíram de seus postos ignorando solenemente essa institucionalidade disfuncional. Ao que tudo indica, era necessário uma crise para sacudir os preconceitos. Parece que chegou a hora. Na medida em que o rendimento da Selic se aproxima do rendimento da caderneta de poupança, acendeu o sinal de aviso de que algo pode estar fundamentalmente errado. Mas Alice, de novo, está vendo as coisas pelo espelho.

Não é a caderneta que vai render muito. Na verdade, ela rende isso que está aí desde a criação da TR no governo Collor. É a Selic que não pode remunerar a dívida pública. Portanto, em lugar de cortar o rendimento na caderneta, levando a um desgaste inútil do presidente Lula, é o momento de descolar a Selic da dívida, e construir uma institucionalidade monetário-financeira que permita ao Banco Central fazer política monetária “ortodoxa”, ou seja lá o que isso significa no Brasil.

Um caminho de transição é a criação de um título público que remunera à mesma taxa da caderneta, com iguais isenções fiscais, e por prazo mínimo de um mês, como é a poupança. Não teria liquidez automática antes do vencimento, também como a poupança. Com isso se liberaria a Selic para cair à vontade, acompanhando o que está acontecendo, em matéria de juros básicos, no resto do mundo. Os atuais aplicadores em títulos públicos indexados à Selic migrariam normalmente para esses títulos, sem qualquer risco para o gerenciamento da dívida pública.

O custo de rolagem da dívida cairia inicialmente até o nível da poupança. Se, por uma questão de preferência irracional, os titulares de fundos indexados à Selic decidissem migrar para a poupança, e não para os novos títulos, os recursos correspondentes seriam automaticamente lastreados pelos novos títulos na forma de depósitos compulsórios. Quanto aos títulos públicos com outros indexadores, perderiam também sua qualidade de liquidez garantida pelo Banco Central, exceto para operações de gerenciamento de reservas bancárias no mercado aberto. E para reestruturar de vez o sistema, poderia se estabelecer um escalonamento de taxas de juros segundo o prazo, e não o valor dos títulos, estimulando-se a criação de um verdadeiro mercado secundário privado para sua negociação antes do fim do prazo.

Reduzir a taxa básica de juros é hoje um imperativo de salvação da economia nacional. O truque que está sendo discutido pela imprensa de baixar o rendimento da caderneta, em nome da estabilidade do gerenciamento da dívida, não resolverá o problema da indexação da dívida à Selic: o mesmo problema se recolocaria num nível da Selic mais baixo, de tal forma que seria necessário mexer de novo no rendimento ou nas vantagens fiscais da caderneta para reequilibrar o processo.

A origem da caderneta de poupança é o financiamento da construção e da comercialização de moradias.

Ao longo do tempo, essa finalidade foi distorcida em razão da conglomeração bancária e da pressão dos bancos para operar livremente parte dos recursos nela captados. Em face da crise de emprego que estamos enfrentando, o Governo, sabiamente, está retomando o programa de construção de moradias. Não faz nenhum sentido desvirtuar seu principal instrumento de financiamento.

*Economista e professor, presidente do Instituto Desemprego Zero

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