“A Campanha da Legalidade traduz seus próprios propósitos: a manutenção da ordem legal, a preservação do sistema político, o cumprimento da Constituição. Essas bandeiras mobilizaram a sociedade brasileira”. A constatação é do professor Jorge Ferreira, da Universidade Federal Fluminense – UFF, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Ele compara o Brasil da legalidade, em 1961, quando “a luta era pela defesa da ordem constitucional vigente, (...) as esquerdas e os setores progressistas e democráticos infligiram grande derrota aos golpistas e direitistas”, com o Brasil de 1964, quando “o movimento das esquerdas foi outro. A luta não era pela defesa da Constituição, mas pela implantação de reformas. Reformas que necessitariam de revisão constitucional – para viabilizar, por exemplo, a reforma agrária. As direitas, de maneira hipócrita, defenderam o lema de que ‘a Constituição é intocável’”.
Ferreira ainda destaca que “Brizola recusou-se a acatar o golpe de Estado. Ele foi a única liderança civil na história contemporânea brasileira a resistir a um golpe militar, dividir as Forças Armadas e derrotar os golpistas”.
Jorge Ferreira é professor de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense e autor de Jango. Uma biografia (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011).
Jorge Ferreira estará na Unisinos, no dia 18 de agosto, no Seminário “50 anos da Campanha da Legalidade: memória da democracia brasileira (1961-2011)”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que aspectos da biografia de Jango são fundamentais para entender o processo da Campanha da Legalidade?
Jorge Ferreira – Creio que duas questões são fundamentais. A primeira, sua formação política fundamentada no regime da democracia representativa. Jango ingressou na política em tempos de grande prestígio da democracia-liberal, em 1945-1946. Esse é um aspecto importante a ser ressaltado. Ele nunca esteve envolvido com propostas de golpes contra as instituições democráticas. Daí sua determinação em tomar posse na presidência da República em cumprimento da Constituição. A segunda, uma característica de sua personalidade. Jango era homem do diálogo, do entendimento, do acordo. Mas acordos que avançassem na questão política e social. Assim, entre aceitar o acordo que implantou o parlamentarismo e o confronto que poderia resultar em guerra civil, ele preferiu a primeira opção.
IHU On-Line – O que significava, naquele contexto, a posse de João Goulart?
Jorge Ferreira – O cumprimento da Constituição e a continuidade do processo democrático. Isso foi conseguido por um amplo acordo no Congresso Nacional e por diversas forças políticas com a implantação do parlamentarismo.
IHU On-Line – Como entender a força da figura política de Brizola no sentido de conseguir levantar o movimento da legalidade aqui do Rio Grande do Sul para todo o país?
Jorge Ferreira – Leonel Brizola despontou na política brasileira, desde 1945, com arrojo político. Ele e Goulart eram amigos, parentes e correligionários do mesmo partido. Criou-se uma interdependência entre eles. Goulart, no plano nacional, apoiava Brizola no Rio Grande do Sul. Brizola, por sua vez, apoiava Jango nos momentos difíceis. Foi o que ocorreu em agosto/setembro de 1961. Brizola recusou-se a acatar o golpe de Estado. Ele foi a única liderança civil na história contemporânea brasileira a resistir a um golpe militar, dividir as Forças Armadas e derrotar os golpistas. Ele convocou a população para a resistência e, inclusive, distribuiu armas ao povo. A causa era justa e legítima: defender o regime democrático. Daí que seus argumentos foram ouvidos e a população se engajou na luta pela posse de Goulart.
IHU On-Line – O que motivou a atitude de solidariedade política ao governador Brizola por parte da multidão de voluntários civis que aderiram à Campanha da Legalidade?
Jorge Ferreira – Havia na sociedade brasileira fortes vínculos com o sistema de democracia representativa. As tentativas de golpes em agosto de 1954, novembro de 1955 e agosto/setembro de 1961 demonstram que os grupos golpistas não conseguiram arregimentar amplos setores sociais – e inclusive das próprias Forças Armadas – para a consumação do golpe. No Rio Grande do Sul, a população da capital e das cidades do interior engajou-se nesse sentido: a defesa da legalidade e da Constituição. Em Goiás, o governador Mauro Borges, também agiu no mesmo sentido, encontrando amplo apoio de estudantes e operários. No Rio de Janeiro ocorreu o inverso: a população foi para as ruas exigir a posse de Goulart e a polícia civil e militar, a mando do governador Carlos Lacerda, reprimiu duramente as manifestações. Em outras palavras, não foi apenas no Rio Grande do Sul que o povo se engajou na defesa da Constituição, embora tenha sido no estado em que o destino do país foi decidido.
IHU On-Line – O que fez com que o exército mudasse de lado e apoiasse o movimento liderado por Brizola?
Jorge Ferreira – Os militares têm seus códigos de conduta baseados na disciplina e na hierarquia. Contudo, eles não são obrigados a obedecer a ordens esdrúxulas ou absurdas. Exemplo disso foi a ordem do ministro da Guerra, Odílio Denys, para que o comandante do III Exército, José Machado Lopes, bombardeasse o Palácio Piratini. O general Machado Lopes tomou uma decisão junto com seu Estado-Maior baseado em cálculos políticos. Para obedecer ao ministro do Exército, teria que matar centenas de pessoas no Palácio Pirantini. Depois, praticar verdadeira carnificina no estado do Rio Grande do Sul. Somente assim ele conseguiria impor a “ordem”. Diante de tamanho custo, ele e seu Estado-Maior preferiram o bom-senso: obedecer à Constituição e à legalidade democrática.
IHU On-Line – Qual o significado político, na época, da mudança de regime de governo para parlamentarismo?
Jorge Ferreira – O parlamentarismo resultou de amplo consenso no Congresso Nacional e entre as forças políticas em conflito. Goulart assumiria a presidência, mas teria seus poderes restringidos.
IHU On-Line – O que caracterizou a resistência popular que levou Jango ao poder?
Jorge Ferreira – A característica marcante daqueles acontecimentos foi a defesa da continuidade do processo democrático. Federações de empresários e associações comerciais, em nota, exigiram o cumprimento da Constituição; sindicatos de trabalhadores em várias partes do país declaram-se em greve, enquanto a diretoria da UNE foi para Porto Alegre; os partidos políticos, inclusive a UDN, defenderam a posse de Goulart, rejeitando a coação dos ministros militares que queriam a votação do impeachment dele; a OAB, a ABI e a CNBB também reiteraram a necessidade do cumprimento da Constituição; as Forças Armadas se dividiram; diversas religiões, de católicos a umbandistas, defenderam a posse de Goulart; até mesmo diretorias de clubes de futebol apoiaram a posse de Jango. O que se observa, nesse momento, é a sociedade brasileira organizada em suas entidades representativas na luta pela continuidade do processo democrático.
IHU On-Line – Como o senhor define a crise política que se abriu com a renúncia de Jânio Quadros e que herança essa crise deixa para a trajetória histórica da política brasileira?
Jorge Ferreira – Jânio Quadros, nos poucos meses na presidência da República, realizou um governo conservador. Nesse sentido, nada de surpreendente. Mas uma única atitude dele foi extremamente negativa para o processo democrático brasileiro: a renúncia. Com o ato, ele desacreditou o sistema democrático, as eleições, os partidos políticos e todo o sistema representativo. Mais ainda, ele apostou na crise institucional, pois sabia que a posse do vice-presidente criaria graves conflitos políticos no país. Jânio apostou no que poderia acontecer de pior no sistema político brasileiro: o colapso das instituições democráticas.
IHU On-Line – Quais eram os bens simbólicos que estavam em jogo na disputa pela autoridade e legitimidade política durante a Campanha da Legalidade?
Jorge Ferreira – O que estava em jogo, em termos simbólicos, era o significado de democracia. Para os conservadores e direitistas, Goulart e o Partido Trabalhista Brasileiro mantinham diálogo constante com os trabalhadores e o movimento sindical. Para o conservadorismo político brasileiro, a participação do movimento sindical na política era uma ameaça às instituições democráticas. As notas dos ministros militares e os pronunciamentos de Carlos Lacerda são claros nesse sentido. Democracia, nessa concepção, era uma prática elitista que excluía os trabalhadores da participação política. Daí o perigo que a posse de Jango representava. Para as esquerdas e amplas parcelas da população, democrático era manter os fundamentos da Constituição de 1946.
IHU On-Line – Quem foi o grande mito político da Campanha da Legalidade?
Jorge Ferreira – Em termos políticos, sem dúvida Leonel Brizola saiu do episódio com a imagem engrandecida. No governo do Rio Grande do Sul, ele havia adquirido a admiração das esquerdas e dos nacionalistas com o projeto desenvolvimentista e a escolarização em massa. Seu prestígio cresceu ainda mais quando nacionalizou duas empresas norte-americanas. Lembro que estatizar multinacionais era o grande programa das esquerdas latino-americanas. Mas com o destemor que enfrentou os ministros militares na Campanha da Legalidade, Brizola alcançou prestígio político difícil de ser mensurado. Ao se candidatar como deputado federal pela Guanabara, obteve votação extraordinária. A partir daí, ele aglutinaria diversas esquerdas sob a Frente de Mobilização Popular, radicalizando cada vez mais à esquerda.
IHU On-Line – Em que medida a Campanha da Legalidade influenciou no cenário que constituiu o golpe militar, três anos mais tarde?
Jorge Ferreira – É muito curioso que a sociedade brasileira, tão ciosa da democracia e da legalidade em agosto/setembro de 1961, tenha assistido, praticamente de braços cruzados, à marcha de recrutas do general Mourão em março de 1964. A Campanha da Legalidade traduz seus próprios propósitos: a manutenção da ordem legal, a preservação do sistema político, o cumprimento da Constituição. Essas bandeiras mobilizaram a sociedade brasileira: em 1961, a luta era pela defesa da ordem constitucional vigente. Nesse sentido, as esquerdas, os setores progressistas e democráticos infligiram grande derrota aos golpistas e direitistas. Em 1964, o movimento das esquerdas foi outro. A luta não era pela defesa da Constituição, mas pela implantação de reformas. Reformas que necessitariam de revisão constitucional – para viabilizar, por exemplo, a reforma agrária. As direitas, Carlos Lacerda em particular, de maneira hipócrita, defenderam o lema de que “a Constituição é intocável”. As direitas aprenderam com os acontecimentos de 1961.
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