Instituição de 2 mil anos, a Igreja Católica é craque em auto-preservação. Algum bom motivo haveria de ter para impor um período mínimo de cinco anos entre a morte e o início do processo de canonização de um candidato a santo. Mas os gritos de “Santo Subito!” (“Santo Já!”, em italiano) ecoados durante os funerais de João Paulo II, em abril de 2005, atropelaram a tradição. Um mês depois, começou o processo de canonização.
As quatro etapas do processo de canonização –declaração de “Servo de Deus”, depois “Venerável”, “Beato” e, por fim, “Santo”--, vencidas no prazo recorde de 9 anos, resultaram no recém-proclamado São João Paulo II. Foi o processo de canonização mais rápido da Igreja dos últimos 700 anos. Para efeito de comparação, a canonização de São José de Anchieta só aconteceu agora, em abril de 2014, 417 anos depois de sua desaparição física.
Pois qual seria o bom motivo para o passo lento preconizado pela tradição da Igreja? Um boa explicação é a prudência. Assim como o tempo descarna os cadáveres, também descarna a memória. Morrem os desafetos, esquecem-se os rancores.
É isso o que não acontece com o agora santo, João Paulo II.
Vivas ainda estão as lembranças de como o papa polonês acobertou os casos de pedofilia que envolveram dignitários da igreja. Vivas ainda são as vítimas a apontar o dedo acusador sobre o Vaticano e obrigando a Igreja ao desembolso de fortunas a título de indenização.
Um dos casos mais ruinosos foi o do padre mexicano Marcial Maciel (1920-2008), fundador da poderosa congregação dos Legionários de Cristo (fortuna avaliada em 30 bilhões de dólares) e do grupo sacerdotal Regnum Christ.
Depois de um processo que enfrentou todos os percalços do corporativismo religioso, restou comprovado que o padre era um notório pedófilo abusador de meninos, que ele mantinha aterrorizados e cativos à custa de um “voto de silêncio” que os ameaçava, caso rompido, com o fogo do inferno e da danação.
As denúncias contra Marcial relatam ainda que ele manteve relações maritais com duas mulheres, das quais resultaram três filhos, dois dos quais também teriam sido abusados por ele. E, ainda, que era usuário compulsivo de morfina.
Foi do cardeal Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (antiga Congregação do Santo Ofício), mais tarde consagrado papa Bento XVI, a iniciativa de investigar o horror praticado nos Legionários de Cristo. Mas esse ímpeto foi logo freado por João Paulo II, que também silenciou e acobertou a avalanche de denúncias de casos de pedofilia envolvendo prelados da Irlanda, Alemanha, Espanha, Estados Unidos e Grã-Bretanha.
Só depois da morte do papa polonês, as investigações e sanções contra o padre Maciel e outros prosperaram. Em um documento público que impressiona pela dureza de diagnóstico, o Vaticano tardiamente atestou que “os atos objetivamente imorais” de Maciel, “confirmados por testemunhos incontestáveis” representam “verdadeiros crimes e manifestam uma vida sem escrúpulos ou sentimento religioso autêntico”.
Já seria uma grande nódoa sobre o novo santo, João Paulo II. Mas o que dizer do silêncio do papado a respeito das atrocidades cometidas na América Latina contra os opositores dos regimes ditatoriais aqui implantados? Durante 15 anos, o braço direito de João Paulo II foi Angelo Sodano, ex-secretário de Estado do Vaticano e ex-núncio apostólico do Chile, amigo pessoal do terrível ditador Augusto Pinochet.
Aconselhado por Sodano e anti-comunista visceral, João Paulo II desmantelou todo o incrível esforço da Teologia da Libertação na América Latina, desmoralizou a ideia da “opção preferencial pelos pobres”, desdenhou do trabalho de base e sua mística religiosa, condenou ao silêncio os teólogos opositores, marginalizou hierarcas da própria igreja que denunciavam a violência política e a opressão contra o povo desvalido.
Foi assim que a Igreja Católica no Brasil, que desempenhou papel tão importante na denúncia das violações de Direitos Humanos cometidas pela Ditadura Militar, que esteve à frente do incrível projeto “Brasil Nunca Mais”, de desnudamento dos assassinatos, torturas e prisões ilegais durante o regime dos generais, foi-se calando, calando, ensimesmando-se.
Recuou para a posição de um grupo religioso ressentido com as conquistas feministas e com os avanços na compreensão da sexualidade humana. Contra o uso da camisinha, contra direitos dos homossexuais, contra o uso de métodos de contracepção etc. etc.
Na orfandade religiosa em que a Igreja deixou os mais pobres e os horrorizados com os casos de corrupção e de abusos pedófilos, o Brasil descobriu o neo-pentecostalismo, que preencheu o súbito vazio religioso com a promessa de salvação e prosperidade individual pela intercessão do Espírito Santo.
Em 2000, cerca de 26,2 milhões de brasileiros se disseram evangélicos. Em 2010, o número já havia crescido 61,5%, resultando em 42,3 milhões de adeptos motivados, combativos, jovens. Enquanto isso, o rebanho católico, embora ainda majoritário, decresceu e envelheceu.
Seria impossível prever essa imensa transmutação religiosa há 30 anos. Se os dois milagres atribuídos a João Paulo II podem ser questionados pela melhor ciência, o mesmo não se pode dizer do milagre da multiplicação de evangélicos e descrentes no Brasil.
Deviam ter esperado um pouco mais para que a gente esquecesse.
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